Polónia abre batalha legislativa com Israel pela memória do Holocausto
Senado polaco aprova lei que impede menção a "campos polacos" e participação da "nação polaca" nos crimes do Holocausto. Israel acusa a Polónia de "institucionalizar a negação do Holocausto".
Todos os historiadores concordam que não houve “campos de extermínio polacos” mas sim “campos de extermínio nazis, geridos por alemães, na Polónia ocupada”. Fartos de ouvir a expressão (um dia até o então Presidente dos EUA, Barack Obama, falou dos "campos polacos"), dirigentes do país resolveram tomar um passo mais radical para impedir a repetição de um erro.
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Todos os historiadores concordam que não houve “campos de extermínio polacos” mas sim “campos de extermínio nazis, geridos por alemães, na Polónia ocupada”. Fartos de ouvir a expressão (um dia até o então Presidente dos EUA, Barack Obama, falou dos "campos polacos"), dirigentes do país resolveram tomar um passo mais radical para impedir a repetição de um erro.
A lei que foi aprovada esta quinta-feira no Senado não proíbe, no entanto, apenas o uso da expressão “campos polacos”, mas também qualquer acusação contra “o Estado polaco, ou a nação polaca, de responsabilidade ou cumplicidade nos crimes cometidos pelo Terceiro Reich alemão”. A pena é de multa ou até três anos de prisão. A lei prevê uma excepção para trabalhos académicos ou artísticos.
A aprovação no Senado com 57 votos a favor e 23 contra deixa a lei prestes a entrar em vigor – falta apenas uma assinatura do Presidente, Andrej Duda, que já disse ser apoiante da medida. "Nós, como Estado, temos o direito de nos defender de uma falsificçaão evidente da verdade histórica que, neste caso, é uma estalada na cara para nós", declarou recentemente.
A lei provocou uma autêntica tempestade em Israel, com o centro Yad Vashem, académicos e políticos de todos os campos a reagir ao que vêem como uma proibição de afirmação de simples verdades históricas, de mais investigação, ou mesmo de simples testemunhos de sobreviventes (há vários que falam de judeus mortos por polacos sem qualquer intervenção alemã, em várias circunstâncias).
As menções aos “campos polacos” implicam cumplicidade e para muitos polacos esta é uma suprema injustiça: terem sido vítimas e ainda serem acusados de cumplicidade. Não é uma questão apenas para o Governo nacionalista: quando Barack Obama usou a expressão em 2012 o então primeiro-ministro – hoje presidente do Conselho Europeu – Donald Tusk reagiu com violência, acusando-o de “ignorância e más intenções”. Entre 2008 e 2015, segundo a Bloomberg, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Polónia fez 913 declarações a responder a menções aos “campos polacos”.
Histórias de heroísmo
Na Polónia há alguma dificuldade em sair do papel principal de vítima da Alemanha nazi. A ocupação alemã no país foi especialmente brutal, a resistência polaca foi notável, o número de vítimas polacas foi enorme. Mas os judeus polacos mortos foram muitos (quase três milhões), e parte foram vítimas de polacos, fossem eles da polícia, informadores, ou cidadãos comuns a aproveitar para ficarem com dinheiro ou bens dos judeus mortos.
Um inquérito do ano passado mostrou que 55% dos polacos se sentem “incomodados” por menções a cumplicidade de polacos com crimes contra judeus durante a II Guerra. A maioria acredita que os seus antepassados ajudaram a salvar judeus e nunca os denunciaram – as histórias de sacrifício heroico de muitos polacos que arriscaram morrer, ou morreram, para ajudar judeus são as mais repetidas, e para muitos, são mesmo as únicas conhecidas.
Nem sempre é boa a recepção a livros sobre episódios concretos que mostrem crimes de polacos, como o de Jan Thomasz Gross (publicado em 2000), sobre um massacre em Jedwabne, considerado o tiro de partida para uma discussão pouco confortável sobre a participação polaca nos crimes (em 2016, o Presidente Duda ordenou uma revisão do processo de atribuição de uma condecoração do Estado polaco por mérito a Gross). Ou de Jan Grabowski, que no seu livro Hunt for Jews calcula que mais de 200 mil judeus tenham sido mortos directa ou indirectamente por polacos, e que num site polaco foi retratado como um Goebbels, o ministro nazi da propaganda (Grabowski processou o site e ganhou).
Contra-legislação
Em Israel, logo após o início da discussão da lei na Polónia foi posta em marcha a aprovação de legislação para a contrariar: o deputado do partido de centro-esquerda União Sionista Itzik Shmuli propôs uma lei que prevê ajuda legal para quem quer que venha a ser acusado no âmbito da lei polaca, e uma segunda aumenta penas no âmbito da já existente lei de negação do Holocausto para cinco anos de prisão para quem minimizar o papel dos colaboracionistas, incluindo polacos, nos crimes cometidos no Holocausto.
A Polónia “terá a honra dúbia de ser o primeiro Estado a institucionalizar a negação do Holocausto na lei”, disse Schmuli no Twitter. “Não vamos permitir aos colaboracionistas esconder-se atrás dos nazis e esquecer a sua responsabilidade histórica.”
Também o político israelita Yair Lapid, que participou na proposta de lei, afirmou no Twitter que “houve centenas de milhares de judeus assassinados sem terem sequer encontrado um soldado alemão”. “Nenhuma lei polaca pode mudar a História”, concluiu.
O centro Yad Vashem de Jerusalém concorda com a inexactidão do uso da expressão “campos polacos” mas diz numa nota que a lei “põe em risco a discussão livre e honesta do papel de membros da sociedade polaca na perseguição de judeus durante esse período [do Holocausto]”.
Os Estados Unidos manifestaram preocupação não só com os efeitos da lei na liberdade de expressão mas também nas relações estratégicas da Polónia.
Mesmo que leve a condenação externa, a apresentação da Polónia como um país com um passado heróico faz parte da estratégia para ganhar apoio interno do Governo nacionalista do PiS (Lei e Justiça). Por exemplo, o seu apoio tácito a uma marcha nacionalista no dia da independência da Polónia em Novembro do ano passado provocou indignação externa, mas não prejudicou politicamente o Governo.