A escuridão e a luz em forma de quarteto de cordas
O Festival Quartetos de Cordas da Gulbenkian deu a ouvir seis agrupamentos de qualidade numa sucessão de programas aliciantes, com obras desde o século XVIII ao século XXI.
Em parceria com a Bienal de Quartetos de Cordas da Philharmonie de Paris, a Fundação Gulbenkian apresentou entre os dias 27 e 29 de Janeiro o Festival Quartetos de Cordas, durante o qual foi possível ouvir seis agrupamentos de qualidade numa sucessão de programas aliciantes, com obras desde o século XVIII ao século XXI. Desde que se tornou uma formação paradigmática na época do Classicismo, o quarteto de cordas permaneceu um meio privilegiado da criatividade dos compositores, os quais frequentemente se aventuraram por caminhos mais ousados e pessoais ao abordar este tipo de formação instrumental.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em parceria com a Bienal de Quartetos de Cordas da Philharmonie de Paris, a Fundação Gulbenkian apresentou entre os dias 27 e 29 de Janeiro o Festival Quartetos de Cordas, durante o qual foi possível ouvir seis agrupamentos de qualidade numa sucessão de programas aliciantes, com obras desde o século XVIII ao século XXI. Desde que se tornou uma formação paradigmática na época do Classicismo, o quarteto de cordas permaneceu um meio privilegiado da criatividade dos compositores, os quais frequentemente se aventuraram por caminhos mais ousados e pessoais ao abordar este tipo de formação instrumental.
Que o quarteto de cordas continua a ser fonte de inesgotáveis desafios no nosso tempo tornou-se evidente no concerto do Jack Quartet, agrupamento norte-americano especializado na música contemporânea. A sua actuação em Lisboa deu a ouvir em estreia mundial o Quarteto de Cordas nº1, Unvanquished Space, uma encomenda da Gulbenkian a Andreia Pinto Correia (n. 1971), compositora portuguesa a residir nos Estados Unidos, onde tem desenvolvido uma bem sucedida carreira. O contacto regular com o Jack Quartet, cujos membros são os dedicatários de cada um dos quatro andamentos da obra, determinou uma estreita cumplicidade criadora/intérpretes, que se traduz num domínio bastante idiomático da escrita para quarteto. Múltiplos recursos no plano rítmico e harmónico são engenhosamente articulados e contribuem para a criação de inquietantes ambientes e diversificados coloridos sonoros. Tal como noutras obras de Andreia Pinto Correia, o mote por trás do edifício sonoro é literário, neste caso o poema época A Ponte, de Hart Crane (1899-1932), percorrido por labirínticas referências e metáforas relativas à experiência americana. Segundo a própria compositora, o Quarteto nº1 é inspirado na secção IV, Cabo Hatteras (na Carolina do Norte), na qual se faz alusão aos “cantos reluzentes de um espaço por conquistar”.
Seguiu-se Tetras, peça fundamental da produção de Iannis Xenakis (1922-2001) encomendada pela Gulbenkian em 1983, numa avassaladora e virtuosística prestação do Jack Quartet. Trata-se de uma obra complexa, assente em contínuas transformações texturais e na manipulação de material musical característico como os glissandi, que tem um forte impacto no ouvinte através das suas explosões de energia e intensa teatralidade. Mas a experiência mais marcante surgiria com o Quarteto nº9 (2016), de Georg Friedrich Haas (n. 1953), por coincidência este ano compositor em residência na Casa da Música. Esta obra deve ser interpretada na mais completa escuridão, o que proporciona uma experiência de absoluta concentração aos músicos e ouvintes. Para os instrumentistas constitui um ambicioso desafio, mas o tipo de linguagem musical, com pilares pré-definidos e predomínio de amplos gestos musicais que favorecem a continuidade do discurso em detrimento de passagens que pudessem exigir especial controlo de sincronização nas entradas, ajuda a criar um universo sonoro de imersão total e uma forte experiência sensorial.
O encerramento do ciclo coube ao Quarteto Chiaroscuro, fundado pela talentosa violinista russa Alina Ibragimova, que tem visitado a Gulbenkian várias vezes nos últimos tempos. Para um grupo que se tem especializado no repertório setecentista, esperava-se que as três peças de A Arte da Fuga, de J. S. Bach (Contrapunctus I, IV e IX), que abriram o programa, tivessem uma interpretação mais transparente da sua textura polifónica através de um recorte de fraseado e de uma articulação mais variada. O programa anunciava a seguir o Quarteto de Cordas, de Fanny Mendelssohn, proporcionando assim uma rara oportunidade de ouvir ao vivo a música desta compositora, cuja actividade ficou na sombra do seu irmão Felix e se viu afectada pelas contigências da sociedade patriarcal oitocentista, mas inexplicavelmente foi trocada pelo Quarteto op. 76, nº 4, de Haydn. Esta obra que faz alternar páginas sublimes como a original introdução lenta inicial (que lhe valeu o nome de Nascer do Sol) e o Adagio com danças de contagiante tom popular nos últimos andamentos teve uma eloquente interpretação, com nítida liderança de Ibragimova. Foi contudo na segunda parte, com uma interpretação notável do visionário Quarteto nº 14, op. 131, de Beethoven, que o Quarteto Chiaroscuro se mostrou no auge das suas potencialidades técnicas e expressivas, fechando com chave de ouro um estimulante ciclo de concertos.