“Cannabis”, as partes e o todo

Porque é que uma discussão técnica, se o medicamento é mesmo medicamento, se cura ou se mata, acontece no Parlamento?

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Stringer/Reuters

O debate sobre a regulamentação da cannabis medicinal foi lançado no Parlamento no passado dia 11 mas baixou à especialidade, e por isso a votação ficou adiada por 60 dias. A proposta prevê que os médicos possam ser autorizados a prescrever cannabis e que os doentes aviem a receita na farmácia. Define ainda que os detentores de receita médica podem cultivar um número limitado de plantas de cannabis mediante autorização do Ministério da Saúde.

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O debate sobre a regulamentação da cannabis medicinal foi lançado no Parlamento no passado dia 11 mas baixou à especialidade, e por isso a votação ficou adiada por 60 dias. A proposta prevê que os médicos possam ser autorizados a prescrever cannabis e que os doentes aviem a receita na farmácia. Define ainda que os detentores de receita médica podem cultivar um número limitado de plantas de cannabis mediante autorização do Ministério da Saúde.

Pela primeira vez uma proposta que visa a regulamentação do uso da cannabis para fins medicinais é apresentada em separado do uso recreativo, talvez uma estratégia para desarmar os opositores desse acto imoral e deletério que é fumar charros para desanuviar, como se de vinho se tratasse. Mesmo assim, não reuniu consenso no Parlamento, e no espaço público activistas do sim e do não continuam a discutir as propriedades médicas e não-médicas da cannabis.

Pelo que percebo, e deixando o auto-cultivo para outro momento, existe um contra-argumento principal à proposta apresentada: não é necessário legalizar a planta da cannabis pois os supostos compostos activos com interesse terapêutico, o delta-9-tetrahidrocannabinol (THC) e cannabidiol (CBD), podem seguir a sua via até ao mercado pela mesma forma que qualquer outro medicamento, isto é, são submetidos para avaliação ao Infarmed e, após aprovação, podem ser prescritos pelos médicos e comercializados nas farmácias.

A planta da cannabis contém mais de 100 canabinóides actualmente conhecidos e o seu uso médico está descrito desde o início do século XIX. Por essa altura o mais comum era os farmacêuticos prepararem a tintura de cannabis, um extracto à base de álcool que continha uma grande parte dos componentes bioactivos presentes na planta. Vários registos da época reportam o uso desta tintura no tratamento de inúmeras maleitas, como o reumatismo, dor crónica, espasmos, epilepsia infantil e perda de apetite. No início do século XX, para a maioria destas condições, a cannabis foi substituída por outros fármacos obtidos na forma pura, preferidos pelos médicos e restantes pessoas da ciência, pois desta forma evitavam extractos derivados de plantas da qual não conheciam a composição exacta.

Só décadas mais tarde, já nos anos 60, foi possível isolar e preparar na sua forma pura os seus componentes principais, THC e CBD, e iniciar os primeiros estudos à luz da ciência moderna da sua aplicação terapêutica. Os/as cientistas preferem sempre estudar compostos isolados para poderem controlar a dose e medir o efeito. A capacidade terapêutica de uma planta na sua forma botânica é algo difícil de investigar, os inúmeros compostos que a constituem interagem entre si actuando de forma complexa no organismo. O efeito global normalmente não corresponde à soma dos efeitos isolados de cada substância que a compõe. Ou seja, o todo não é igual à soma das partes. Na cannabis alega-se que acontece o mesmo, alguns/as investigadores/as defendem que o efeito terapêutico é superior ao consumir a planta na forma natural do que ao tomar um comprimido que contém apenas THC e/ou CDB na sua forma isolada — "the entourage effect". Não é caso único, o mesmo se apregoa de algumas plantas como a conhecida valeriana, ou a curcuma e a erva-de-são-joão usadas no tratamento da malária.

Digo "alega-se", pois não há uma evidência que se considere robusta. Faltam estudos, o PCP tem razão. A ciência define que há vários níveis de evidência, consoante o número e a qualidade dos estudos existentes, e é muito conservadora a afirmar que há evidência forte que um determinado fenómeno acontece. Isto ainda é mais verdade na área da medicina. Faltam sempre estudos, uma grande parte dos medicamentos que se usam todos os dias nos hospitais carecem de mais e mais estudos. Mas quem é que define o mínimo de estudos necessários para assegurar a segurança e eficácia de um medicamento? Eu não tenho habilitações para isso, e acho que o PCP e os outros partidos também não. Em condições normais, para um medicamento poder ser comercializado são exigidos ensaios randomizados controlados e duplamente cegos, preferencialmente envolvendo um número elevado de pacientes. Ensaios em que os/as participantes são recrutados/as de forma aleatória e em que as variáveis parasitas são controladas. Estudos deste tipo sobre a aplicação da cannabis há alguns, nomeadamente no tratamento da esclerose múltipla e dor neuropática. A Organização Mundial de Saúde refere que há alguma evidência que para o tratamento de certas condições o uso da planta na sua forma natural é segura e mais eficaz que outras opções disponíveis, mas que carece de ensaios clínicos randomizados.

A cannabis, no entanto, não está em condições normais. É uma planta da qual se conhece o potencial terapêutico há mais de dois séculos, mas para a qual a guerra às drogas embargou a investigação nos últimos 100 anos. Ainda hoje é extremamente difícil, em qualquer país, obter licenças para poder investigar a planta da cannabis. A acrescentar, a própria Organização Mundial de Saúde reconhece que o facto da cannabis possuir efeitos psicoactivos muito característicos torna difícil o desenho de ensaios clínicos randomizados duplamente cegos. Por outro lado, ao contrário de outros medicamentos, a cannabis mesmo de forma ilegal esteve sempre disponível para quem a quisesse utilizar, incluindo doentes, e desta forma existem hoje milhares de casos descritos de uso terapêutico desta planta. Foi baseado nestes casos de estudo, que apesar de evidência anedótica devido ao seu número são incontornáveis, e nas centenas de estudos científicos não randomizados mas que evidenciam a sua aplicação terapêutica, que países como Alemanha, Dinamarca, Noruega, Itália, Holanda, Canadá, Israel, metade dos estados americanos, entre outros, legalizaram a cannabis para fins medicinais. Ou seja, estes países reconheceram que a evidência que existe é suficiente. Até porque, não obstante os estudos randomizados serem o golden standard da evidência científica, há excepções, todos os anos são aprovados medicamentos sem evidência randomizada de eficácia. Mas isto é uma discussão estritamente técnica e que deverá ser deixada na mão de especialistas.

Assim, pergunto-me: porque é que uma discussão técnica, se o medicamento é mesmo medicamento, se cura ou se mata, acontece no Parlamento?

A resposta curta é que a cannabis tem uma bagagem cultural e moral pesada. A discussão que, na verdade, se trava é se a sociedade permite a prescrição de um medicamento que também é droga, e não propriamente se a cannabis é eficaz a fazer o que alegadamente faz. E o problema é que as discussões sobre "a droga" raramente envolvem ciência. Parte-se do pressuposto que os desvios decorrentes do seu uso são intrínsecas e podem ser abstraídas do contexto. Assume-se que está na substância a origem e causa das suas consequências, como o uso problemático ou o crime. Assume-se que a cannabis, mesmo em contexto terapêutico, no meio da relação médico-doente, regulada de forma restrita como está proposto, irá cumprir-se e causar danos. E fazer isso é ignorar tudo o que se sabe sobre a cannabis.