Banco da Economia Social
Só as caixas económicas bancárias podem assumir contornos de um “banco” da economia social.
A propalada expressão “banco da economia social” é vaga e sem qualquer substrato jurídico. Parece referir-se à ideia de um banco universal que possua uma relação especial (sem definição satisfatória, para já) com o conjunto das instituições que integram a economia social definida pela Lei n.º 30/2013, de 8 de maio.
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A propalada expressão “banco da economia social” é vaga e sem qualquer substrato jurídico. Parece referir-se à ideia de um banco universal que possua uma relação especial (sem definição satisfatória, para já) com o conjunto das instituições que integram a economia social definida pela Lei n.º 30/2013, de 8 de maio.
Atualmente, existem dois tipos de instituição de crédito pertencentes a esse conjunto, as caixas económicas e as caixas de crédito agrícola mútuo, ambas reconhecidas pelo regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras fixado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro. Alguma delas poderá ser o tal “banco” da economia social?
As caixas económicas nasceram, no século XIX, focalizadas no aforro. Como escreveu Alexandre Herculano, a caixa económica era “o mealheiro tornado produtivo, fecundado pela inteligência e pelo princípio de associação”. Desenvolveram-se como instituições “especiais” de crédito necessariamente “anexas ou pertencentes a associações de socorros mútuos, misericórdias ou outras instituições de beneficência”, com atividade bancária sujeita a restrições várias, podendo operar em todo o território nacional (DL nº 136/79, de 18 de maio, já revogado).
Diversamente, as caixas de crédito agrícola mútuo, criadas no início do século XX, tiveram âmbito local desde a origem, constituindo-se como cooperativas concelhias focadas no apoio à iniciativa económica dos cooperadores através da concessão de crédito e outras operações ativas em favor dos seus associados e de forma exclusiva. A existência de uma caixa central de crédito agrícola mútuo de natureza federativa e âmbito nacional foi prevista (DL nº 231/82, de 17 de junho, entretanto revogado) e subsequentemente concretizada.
Ventos de mudança. Fortes ventos de mudança económica, financeira e tecnológica obrigaram caixas económicas e cooperativas de crédito a aproximarem-se do modelo de banco universal para ganharem escala. O que se traduziu aqui e ali em deriva capitalista, perdendo características fundadoras e mudando de natureza jurídica, em certos casos. Necessitaram ainda de uma nova abordagem competitiva que fizesse incidir o foco estratégico cada vez mais no cliente e menos no produto, empenhando-se ao mesmo tempo na sustentabilidade social, regional e ambiental.
As caixas de crédito agrícola estão naturalmente orientadas para esta abordagem competitiva. A especificidade do figurino cooperativo atual e as limitações às suas operações ativas, regulados pelo DL nº24/91, de 11 de janeiro, limitam, porém qualquer veleidade de atuar plenamente como um “banco” da economia social.
As caixas económicas “bancárias”. As caixas económicas conheceram novo enquadramento jurídico com o DL nº 190/2015, de 10 de setembro. Este diploma veio diferenciá-las segundo o respetivo volume de ativos, abaixo ou acima de 50 milhões de euros. No primeiro caso, são designadas por caixas “anexas” a uma instituição da economia social, cuja atividade é realizada exclusivamente em prol dos associados ou beneficiários da respetiva instituição titular e de forma limitada, com vista a diminuir os riscos operacionais e de exposição. No segundo, são classificadas como caixas económicas “bancárias”, equiparadas a bancos e constituídas como sociedades anónimas atuando “sob uma licença de atividade bancária universal”, nos termos do DL nº 298/92.
Uma disposição importante deste decreto é “instituição titular” definida como a entidade detentora, direta ou indiretamente, da maioria das participações, dos direitos de voto ou de uma quota maioritária naquelas. Só as associações mutualistas, as misericórdias e outras “instituições de beneficência” podem ser titulares das caixas bancárias, não podendo existir mais do que uma por caixa económica.
Às caixas económicas bancárias é permitido abrir o respetivo capital societário a terceiros mesmo que operem fora da economia social, salvaguardada “a prossecução do intuito assistencialista” daquelas instituições.
O presente quadro legislativo parece, assim, apontar para que só as caixas económicas bancárias possam assumir contornos de um “banco” da economia social, definindo-se este como um banco universal cuja titularidade o mantém ancorado na economia social e cuja atividade se norteia pela sustentabilidade social, regional e ambiental. Ao mesmo tempo, pode adaptar a sua estrutura acionista às necessidades de forte capitalização dos bancos.
Mas quem poderá assumir as finalidades das caixas bancárias, investindo nelas sem ser titular das mesmas? Entidades do sector da economia social, como sejam: fundações de filantropia individual ou empresarial, misericórdias e outras IPSS, são óbvias candidatas ainda que com escassos recursos quase todas. Isso sugere a abertura a entidades da economia social europeia. Quanto a entidades do sector privado, é concebível que algumas pequenas e médias empresas possam ter interesse em fazê-lo. No entanto, a proeminência da titular será sempre uma limitação de monta a que tal se concretize, suscitando porventura a necessidade de se rever esta limitação e permitir a cotitularidade.
Tem-se aventado também a hipótese de abandono do campo da economia social, criando entidades financeiras tipo holding que aportassem capitais às caixas económicas e, até, de crédito agrícola mútuo. Mas tal acarreta um alto risco de desmutualização e abandono dos princípios cooperativos de governo da economia social e implicariam deriva capitalista idêntica à que em outros países tem ocorrido.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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