Uma volta ao mundo em 80 minutos com Stephan Micus a dar as coordenadas

O multi-instrumentista alemão, pela primeira vez no Porto, apresentou o último álbum Inland Sea e revisitou o repertório do passado para o público do ciclo Solilóquios que esgotou as duas datas.

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Se a world music é um rótulo lato, muitas vezes usado para arrumar composições musicais de difícil catalogação, a Stephan Micus serve-lhe na perfeição o termo. O alemão de 65 anos, muitas vezes associado de uma forma redutora ao espectro da new age, personifica em pleno o significado da primeira categoria aqui referida.

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Se a world music é um rótulo lato, muitas vezes usado para arrumar composições musicais de difícil catalogação, a Stephan Micus serve-lhe na perfeição o termo. O alemão de 65 anos, muitas vezes associado de uma forma redutora ao espectro da new age, personifica em pleno o significado da primeira categoria aqui referida.

Mais músico do que místico e mais complexo do que minimal, recorrendo a uma miríade infinita de instrumentos tradicionais de vários pontos do globo, proporciona a quem assiste às suas actuações uma viagem pelo mundo sem sair do lugar. Essa experiência teve quem se deslocou ao terceiro andar do número 100 da Rua das Carmelitas, para esgotar as duas datas únicas em Portugal (27 e 28 de Janeiro) no espaço Sobre o Porto, em concerto integrado no ciclo Solilóquios, que encerra o primeiro ano de programação. Estivemos na segunda noite.

De costas para a varanda do espaço com vista privilegiada para a Torre dos Clérigos, sentado no palco com as pernas cruzadas, de túnica bege e descalço, não está longe da imagem de um guru espiritual. Aqui parecemos entrar em contradição com o que foi dito antes. É um facto que há algo de litúrgico na actuação do alemão, mas há muito mais além de toda a mise en scène que transporta para o palco, que passa sobretudo pela capacidade que o músico tem para criar composições sólidas e muitas vezes intricadas.     

No mapa sonoro de Micus não há fronteiras. O início da viagem começa na Irlanda. Assinala o ponto de partida com o sopro de duas tin whistles (flautas tradicionais irlandesas) que toca ao mesmo tempo. Uma num tom alto e outra num tom baixo, em segundos transporta-nos para o destino que escolheu.

De um ambiente mais celta e esperançoso, viajamos até aos Alpes conduzidos pelo som da cítara da Baviera, que se caracteriza pelo som metálico das cordas mais agudas e pelo tom aveludado de uma secção de cordas na parte superior do instrumento que se assemelha a um baixo. Há um mundo de possibilidades por explorar. Com a ponta dos dedos toca uma melodia etérea nas cordas mais agudas, enquanto marca o ritmo nas cordas mais graves, acrescentando à melodia uma atmosfera mais obscura. Por cima desta base entoa uma linha de voz que nos remete para outra época que não esta.

Há algo de ancestral na música de Micus, que o aproxima de bandas como Dead Can Dance. De resto, o timbre do compositor, em certa medida, tem algumas semelhanças com o de Brendan Perry, vocalista e compositor dos australianos. 

Ao contrário do que acontece com os Dead Can Dance, o alemão apresenta-se a solo. Sem a uma banda de suporte, recorre nalguns momentos a linhas musicais pré-gravadas. Quando escolhe tocar o nohkan usa um desses samples com uma atmosfera sinistra como base. O nokhan é uma flauta japonesa que na sua tradição é usada para ser tocado com bombos. É ao som dos bombos que executa um solo que nos leva ao Japão.

É a capacidade de a partir de um instrumento associado a uma área geográfica específica nos fazer desviar para outra zona que nada tem a ver com a origem do mesmo que torna as suas composições coesas, sem que pareçam uma manta de retalhos mal cosida sem qualquer tipo de coerência. Há uniformidade na música que faz porque consegue com êxito juntar mundos que à partida não se cruzariam. Faz isso quando usa um slide guitar na cítara e aproxima o Oriente do Ocidente ou quando usa outra flauta japonesa, a shakuhachi, e ainda assim, num encontro perfeito entre duas realidades diferentes, nos consegue transportar para o Médio Oriente.  

Antes de terminar a actuação de oitenta minutos, com intervalo pelo meio, entre composições do último álbum, Inland Sea, e reportório mais antigo, ainda tocou a kalimba, um instrumento tradicional da África central e o duduk, instrumento de sopro da Arménia, cuja sonoridade por vezes se assemelha a um saxofone.

Antes de ir embora, voltou para encore e para regressar ao ponto de partida, com mais uma composição para as tin whistles irlandesas, aqui a roçar o barroco.

Stephan Micus, com mais de duas dezenas de álbuns, que por ano não dá mais do que 10/15 concertos, tocou pela primeira vez no Porto, em duas salas esgotadas, com cerca de 50 pessoas por noite. O concerto está integrado no ciclo de solos de cariz intimista, Solilóquios, que encerrou o primeiro ano de actividades com a actuação do alemão.

Em 2017 passaram pelo espaço, em sessões quase todas esgotadas, 21 artistas nacionais e internacionais, como por exemplo, Peter Evans, Gary Lucas, João Barradas ou Fatima Miranda.   

Em Fevereiro, em ciclo que assinala o primeiro aniversário e o arranque do segundo ano dos solos de improvisação, tocam no penúltimo fim-de-semana do mês Barry Guy, a 16, Joe Morris, a 17, e Pedro Melo Alves no dia seguinte. Até Maio há outras datas marcadas.