A relação difícil de Trump com a ciência
O rol de confrontos com a ciência é extenso, com a saída do Acordo de Paris e a Marcha pela Ciência – e contra Donald Trump – a marcarem um ano do novo Presidente dos EUA na Casa Branca. Das alterações climáticas às nomeações (ou falta delas), o segundo ano de mandato antevê novas batalhas.
Elizabeth Southerland trabalhou como quadro superior na Agência de Protecção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) norte-americana durante 30 anos. A 1 de Agosto de 2017, demitiu-se numa carta em que culpava o novo rumo da agência sob a Administração de Trump. “O campo ambiental está a sofrer um triunfo temporário do mito sobre a verdade”, escrevia.
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Elizabeth Southerland trabalhou como quadro superior na Agência de Protecção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) norte-americana durante 30 anos. A 1 de Agosto de 2017, demitiu-se numa carta em que culpava o novo rumo da agência sob a Administração de Trump. “O campo ambiental está a sofrer um triunfo temporário do mito sobre a verdade”, escrevia.
A Marcha pela Ciência é o marco que nos indica como em poucos dias Donald Trump virou a comunidade científica contra ele. Passaram apenas cinco dias da tomada de posse quando, no Facebook, um grupo de mais de 11.500 pessoas se juntou para condenar as primeiras medidas do novo Presidente. A 22 de Abril, a marcha grita “Ciência e não silêncio”, juntando mais de 600 cidades, cada uma com milhares de apoiantes a defender que “não há um planeta B”.
A lista de “trapalhadas” desta Administração, desde que tomou posse há quase um ano, é longa e envolve um duro combate entre o Presidente norte-americano e a ciência. Existem três protagonistas que coadjuvam Donald Trump: Scott Pruit (director da EPA), Rick Perry (secretário da Energia) e Ryan Zinke (secretário do Interior). As três nomeações de Trump para cargos centrais na agenda ambiental e científica tiveram o mesmo impacto: a desaceleração nas energias renováveis e no combate às alterações climáticas, e o aumento do cepticismo em torno do aquecimento global.
As “horas” estão a contar no Relógio do Apocalipse, acertado na última quinta-feira em relação ao ano de 2017. O painel de cientistas que girou os “ponteiros” deste relógio metafórico colocou-nos mais perto da meia-noite, como no tempo da Guerra Fria e da corrida ao armamento nuclear. Além das incertezas em relação às armas nucleares, as alterações climáticas e a perda de confiança na ciência estão também agora entre os motivos para que 2017 tivesse ficado, tal como aconteceu em 1953, a apenas dois minutos do fim do mundo.
O relatório Changing the Digital Climate, da Iniciativa para a Governação e Dados Ambientais (organização internacional de investigadores e grupos activistas), comprova as acusações que circularam durante o primeiro ano de Trump como líder dos Estados Unidos: há alterações nas referências ambientais e, em particular às mudanças climáticas, nas páginas do Governo. Publicado no início de Janeiro, o relatório fala em mudanças na secção sobre as alterações climáticas do site da EPA e de endereços removidos que continham informações e dados sobre o aquecimento global do planeta. Um dos casos mais criticados foi o desaparecimento do Guia dos Estudantes para as Alterações Climáticas, que estava disponível no site da EPA.
As “trapalhadas” não são erros. No caso do aquecimento global, o cepticismo da Administração em relação a um consenso generalizado sobre as causas das alterações climáticas tem resultado em cortes e posições contrárias ao conhecimento científico. “Estamos num caminho insustentável? E qual é o prejuízo… está a causar alguma ameaça existencial?”, questionava o director da EPA numa entrevista à agência de notícias Reuters, em Julho. No final de 2017, Trump usou o Twitter para lançar nova provocação: “Talvez pudéssemos usar um pouco do velho aquecimento global no nosso país”, referindo-se ao frio que se sentia em Los Angeles.
O “pico da incompetência”, como o apelida Carlos Fiolhais, físico e co-autor com David Marçal do livro Os Inimigos da Ciência (editora Gradiva), e deste cepticismo é anunciado a 1 de Junho de 2017: “Para proteger a América e os seus cidadãos, os Estados Unidos vão sair do Acordo de Paris.” Aquilo a que Trump chamou “reafirmação da soberania”, gerou uma onda de críticas em relação a um dos países que liderava o combate às alterações climáticas – e um dos países que mais lança para a atmosfera gases com efeito de estufa. A resposta veio das cidades norte-americanas, de investidores, empresários, investigadores e académicos, comprometendo-se a continuar as políticas de combate ao aquecimento global.
“A [remoção da] regulação ambiental é uma das duas áreas onde a Administração de Trump tem tido mais sucesso”, explica Robinson Meyer, editor de ciência da revista norte-americana The Atlantic. A outra área é a imigração.
Para Robinson Meyer, o foco de Donald Trump está mais na política do que na ciência. O jornalista afirma que Trump “não tem incomodado as agências científicas, como o Serviço Nacional de Meteorologia ou a Fundação Nacional de Ciência”. E acrescenta: “Mesmo a equipa de ciência climática da NASA – que tem falado bastante sobre os perigos do aquecimento global – tem sobrevivido. Agências como a EPA, que podem efectivamente punir os poluentes, é que têm visto maiores mudanças.”
Para lá do aquecimento global
As primeiras controvérsias surgiram com os primeiros nomes. Scott Pruit chegou ao cargo de director da EPA como firme opositor às políticas climáticas de Barack Obama e após ter entrado numa disputa para eliminar o Clean Power Plan (Plano de Energia Limpa) – aprovado para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa no sector eléctrico. Em Outubro, enviou uma proposta para reverter este plano.
O nome de Rick Perry entrou em jogo lado a lado com afirmações que negavam a produção científica sobre o clima e a recusa de que a acção humana influencia o aquecimento do planeta. O “terceiro cavaleiro” de Donald Trump é Ryan Zinke, um defensor da gestão estatal das terras e contrário à imposição de limites no metano libertado pelas companhias energéticas. Ryan Zinke acredita nas alterações climáticas, mas “não são ciência provada”, diz.
Uma contagem do jornal The Washington Post, que tem acompanhado os cargos que continuam vazios após um ano de presidência, indica que na ciência sobram quase metade dos postos por nomear. Carlos Fiolhais destaca o vazio no Gabinete de Política Científica e Tecnológica, incumbido de dar conselho técnico e sustentado sobre as matérias que o Presidente tem de decidir. “É um cargo importantíssimo que fornece conselho independente sobre política em geral, mas também em casos de crise. E ele não tem ninguém que o ajude”, explica, acrescentando que isto torna explicita a “aversão à ciência” de Trump.
Os problemas para a comunidade científica agravam-se na apresentação do orçamento federal para 2018. O crescimento da despesa com a segurança e a defesa do país forçam cortes em todos os outros sectores, com especial foco nos que respeitam à ciência. O corte de 31% na EPA é o mais notório, mas a saúde também sai afectada, com uma diminuição de 16%, com quase 6000 milhões de dólares (4800 milhões de euros), segundo o Washington Post, retirados aos Institutos Nacionais de Saúde, responsáveis por muita investigação médica e atribuição de bolsas de investigação.
A “cirurgia” à saúde não pára aqui. Trump retrocedeu na lei que garantia que os seguros de saúde cobriam métodos contraceptivos como a pílula e, segundo a revista Forbes, retirou mais de 200 milhões de dólares (170 milhões de euros) em programas e investigação para evitar a gravidez na adolescência, por exemplo. E, atenção, neste texto – tal como nas agências de saúde pública dos EUA – não vai ler palavras como “vulnerável”, “transgénero”, “diversidade” ou “baseado na ciência”. É proibido.
Nos primeiros dias do novo ano surgiram notícias do Departamento do Interior. Uma directiva assinada antes do Ano Novo, obtida pelo Washington Post, deu conta de mudanças na atribuição de bolsas e financiamento de investigação que, a partir de agora, devem assegurar o respeito pelas prioridades da Administração dos EUA.
O passado como visão de futuro?
A política de recuo face a várias medidas de combate ao aquecimento global tem criado espaço para que a indústria energética possa voltar a ter menos restrições na exploração de recursos. Em Março do ano passado, uma directiva do Presidente norte-americano voltava a permitir a exploração de carvão em terrenos do Estado. A luta em prol do carvão continuou até há bem pouco tempo, quando a Comissão Regulatória Estatal da Energia rejeitou, por unanimidade, a proposta que visava subsidiar a queima de carvão e centrais nucleares. “Por vezes, o Presidente parece obcecado em desfazer o legado de Obama”, aponta Robinson Meyer.
No petróleo, a Administração começou por se tornar polémica com a reversão da suspensão dos projectos petrolíferos Keystone XL e Dakota Access. Os locais onde estes pipelines iam ser construídos foram palco de protestos. A resposta política, pela voz de Sean Spicer, então porta-voz da Casa Branca: “A Administração apoia projectos energéticos como os pipelines Dakota e Keystone, que criam empregos, promovem crescimento económico e permitem explorar as fontes de energia norte-americanas.”
A perspectiva do jornalista Robinson Meyer é precisamente essa: “A Administração vai continuar a expandir a produção de gás e petróleo nos EUA, enquanto reduz a regulação ambiental.” No futuro, o olhar centra-se no acordo com o Irão, nas restrições à entrada de estrangeiros ou nas medidas que estão por revogar – e a ciência como dano colateral.
A gestão das terras tem sido marcada pela redução de áreas protegidas – a maior da história dos EUA – e pela abertura dos oceanos à exploração de gás e petróleo, com a justificação de Ryan Zinke para tornar mais de 90% da plataforma continental disponível para a indústria: “Queremos fazer crescer a nossa indústria energética nacional.”
Mesmo no espaço – onde Fiolhais esperava uma maior aposta –, o balanço é tímido. “A NASA não tem tido objectivos nem meios. Obama deixou alguns projectos nada ambiciosos, e agora o Trump voltou com a ideia, que não é nova, de ir à Lua”, diz o físico e divulgador de ciência português, que aproveita para apontar críticas a mais uma nomeação polémica: o primeiro político, ou o primeiro não cientista, a ser administrador da NASA – Sam Clovis.
Carlos Fiolhais tem um entendimento alargado da política de Trump. “A ciência representa a livre iniciativa de pensar o mundo e é isso que nos tem proporcionado desenvolvimento. Trump baseia-se na ideia de desenvolvimento dos anos 50 ou 60, da big industry”, diz, definindo o momento como um “divórcio” entre a ciência e a Casa Branca.
Texto editado por Teresa Firmino