Tantas vezes se ia às fontes... no Porto
As fontes do Porto estão agora inventariadas em livro, numa iniciativa de uma equipa do Clube UNESCO, que quer não só dar a conhecer o mapa deste património da cidade como intervir na sua preservação e requalificação. Porque, fontes há mais de cem, e todas contam histórias, mesmo se nem de todas brota água.
“Descalça vai para a fonte/ Leonor, pela verdura;/ vai formosa e não segura…”
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“Descalça vai para a fonte/ Leonor, pela verdura;/ vai formosa e não segura…”
Os versos de Luís de Camões identificam uma época e um imaginário que marcou sobremaneira a sociedade portuguesa até há menos de um século. E não apenas no mundo rural.
Como outras, a cidade do Porto tem um património de fontes que, na maior parte dos casos, passa despercebido aos seus habitantes e visitantes. Ou porque nos habituámos a vê-las desde sempre, ou porque deixaram de ser usadas, ou porque secaram, ou então porque estão escondidas por detrás do novo urbanismo, dos painéis publicitários, dos contentores do lixo, dos automóveis estacionados…
Foi sobre este contexto que Arminda Santos, professora reformada com formação em Escultura na Escola de Belas Artes do Porto, investigadora e amante da história da cidade, decidiu avançar para o levantamento do património das fontes do Porto.
A aventura começou no início da década de 2000, no âmbito da sua associação ao Clube UNESCO do Porto, a quem apresentou o projecto. “Por via da minha formação nas Belas Artes, interesso-me muito por tudo o que é património da cidade. Eu nasci em Ermesinde, mas estudei e conheço muito bem o Porto, os seus jardins, os museus, as quintas, os palácios, etc. E foi por andar muito na cidade que verifiquei que as fontes estavam num caos. Decidi então dedicar-me a esse tema, de alma e coração”, conta Arminda Santos ao PÚBLICO, no início de uma visita a uma selecção, sua, de uma dezena de fontes paradigmáticas do parque portuense neste domínio.
O pretexto para este percurso foi o relançamento, realizado na sexta-feira, no Palacete do Visconde de Balsemão, do 2.º volume de As Nossas Memórias – As Fontes do Porto (edições Afrontamento), registo de um trabalho de vários anos, em que Arminda Santos coordenou uma equipa que incluiu também os historiadores Maximina Girão e Rui Clare, e Luís Pacheco, com formação em Engenharia, outro amante da história do Porto.
Dentro do Clube UNESCO, a historiadora fundou o Observatório do Património do Porto, e foi através dele que lançou, em 2011, o projecto de inventariação das fontes, que, antes de ser assumido pela Afrontamento, foi divulgado na Internet. O bom acolhimento da ideia levou a uma primeira edição em livro, lançada em 2015, com um levantamento inicial de 39 fontes inventariadas em duas rotas: seguindo o rio Douro e em volta da Sé.
Aquando do lançamento desse primeiro volume, foi prometida uma segunda parte, que saiu em Setembro de 2017, com o acrescento de 76 fontes (incluindo a referência a cinco já desaparecidas) – e que agora foi relançado, numa edição mais cuidada.
Pedaços do passado
“Nesta cidade onde impera o granito, numa estranha e subtil combinação com os azulejos, as camélias e as névoas matinais, ou os laivos ainda existentes dos jardins românticos, emergem fontes, como pedaços do passado que resistem às mudanças e à voracidade do fluir do tempo”, escrevem os autores fixando o retrato de uma cidade onde as fontes poderão ser uma espécie de guia para contar a sua história. “Quisemos fazer o enquadramento histórico do local, com as lendas respectivas, mas também o enquadramento estético: o estilo, os volumes, as diversas maneiras de talhar a pedra, desde a mais ingénua até ao desenho barroco com as suas volutas e as representações da natureza, as taças, as conchas, as terrinas que guardam o precioso líquido que é a água”, nota Arminda Santos.
Nos dois volumes de As Fontes do Porto, os autores tiveram também o cuidado de deixar apontamentos críticos sobre o estado de cada uma das peças inventariadas, incluindo ainda sugestões pedagógicas e pistas de intervenção: anotar o estado de cada fonte ou chafariz, sugerir o seu restauro ou limpeza, além de sinalização, iluminação e acrescento de informação histórica, ou mesmo trasladação para lugares de maior visibilidade.
“Nós fazemos um enquadramento crítico, de uma maneira objectiva, e fazemos propostas. Se a fonte está pichada, deteriorada, mal restaurada, damos pistas para que isso seja minimizado”, reforça a coordenadora.
Respondendo ao desafio do PÚBLICO, Arminda Santos seleccionou uma dezena de fontes e chafarizes para uma visita guiada histórico-estilística, mas também cronológica e geográfica, a este património que também faz a história do Porto. De lado ficaram, propositadamente, os exemplares mais conhecidos, como a fonte das Virtudes (Miragaia), a fonte-chafariz do Jardim do Passeio Alegre (Foz), ou o chafariz de Santo António (Biblioteca Municipal, Bonfim) – as três classificadas como Monumento Nacional –, além de outras peças icónicas, como a fonte da Praça da Ribeira, as do Palácio de Cristal ou aquelas que podemos encontrar nos jardins da empresa municipal Águas do Porto, actualmente ainda em obras de requalificação, e que Arminda Santos classifica como “o museu vivo das fontes” da cidade, onde se encontram reinstaladas muitas fontes que foram sendo retiradas dos seus lugares históricos desde o tempo dos Almadas – um parque que, no ano passado, foi também enriquecido com uma nova fonte-escultura de Julião Sarmento.
Entre dois polos de ainda notória ruralidade, da fonte da Igreja de Campanhã até à do Revilão, em Aldoar, percorrem-se exemplares com história bem antiga (Fonte da Colher), esculturas em granito recheadas de referências (Fonte do Pelicano) ou ainda peças em ferro forjado a marcar o imaginário romântico (Fonte das Três Graças).
“Mas há muitas mais fontes ainda a inventariar”, atesta Arminda Santos, referindo-se, entre outras, aquelas que podemos encontrar em quintas e propriedades privadas, com acesso mais ou menos reservado. “Também neste domínio, o Porto é uma cidade bem mais rica do que aquilo que possamos imaginar”, assegura a historiadora.
Dez fontes e chafarizes
1 – Fonte da Igreja de Campanhã
Rua do Falcão
Situada bem perto da Igreja de Campanhã, esta é uma fonte de enquadramento rural, com uma tipologia ancestral, instalada abaixo do nível da rua, como que a brotar da terra. Há referências, no século XVIII, às características “muito saluferas” das suas águas, consideradas como “uma das melhores de Entre-Douro e Minho”. É uma estrutura rudimentar, com uma bica a brotar água num pequeno tanque, rodeado de couves-galegas e flores, e “santificada” com uma imagem de N. Sra. de Fátima.
2 – Fonte dos Três Anjos
Palacete Ramos Pinto
Rua de São Roque da Lameira, n.º 2092
É uma das várias fontes existentes neste palacete adquirido pela Câmara do Porto e integrado, desde 1979, no Parque de São Roque. É certamente contemporânea do edifício, mandado construir por António Ramos Pinto, e que teve também a mão do arquitecto Marques da Silva. Está em avançado estado de ruína (como o próprio palacete), mas permite ainda adivinhar o fausto decorativo que marcou este género de edificações na viragem dos séculos XIX/XX, e de que os três anjos (ou “putos”) e o fundo em azulejo são expoentes.
3 – Fonte de Vila Parda
Rua do Bonjardim
Está datada de 1859, com restauro efectuado em 1940 e arranjo envolvente muito recente. Fica num pequeno largo na embocadura da rua do Paraíso com a do Bonjardim e mostra uma arquitectura simples, mas de grande elegância, na sua estrutura em granito, com um tanque semicircular – para onde vertiam duas bicas, actualmente secas – e uma parede encimada por um jarrão decorado com motivos florais. O pequeno largo foi agora equipado com dois bancos públicos, e só falta mesmo a água a cair para aí apetecer estar.
4 – Chafariz do jardim do CCD dos Trabalhadores da CMP
Rua de Alves Redol, 292
Na antiga Quinta do Salgueiro, o Centro Cultural e Desportivo dos Trabalhadores da Câmara do Porto edificou a sua sede em 1988. Para decorar o jardim, foi aí instalado um chafariz que estava em depósito nos armazéns da autarquia: é uma elegante escultura em ferro forjado no centro de um pequeno lago, imagem de uma deusa clássica sobre uma taça ondulada e decoração com motivos animais (aves, tartarugas, sapos) e vegetalistas (canas de água, cachos de uva…). O elogio da natureza e da juventude, no feminino.
5 – Fonte/chafariz do Convento de Santa Clara
Largo 1.º de Dezembro
É um caso que documenta bem a história das fontes do Porto, com altos e baixos, pompa e ruína, inaugurações e trasladações… Esta fonte/chafariz em granito que se crê remontar ao século XV, altura do início da construção do convento feminino de Santa Clara (Ordem de São Francisco) – e cuja igreja é um expoente na talha dourada –, está presentemente desmontada por causa das obras de restauro do convento. Resta saber se, no final, ela regressará ao terreiro onde se encontrava, ou se irá ser mudada para o exterior da igreja, no Largo 1.º de Dezembro, como sugerem os autores do livro, para abrir a sua fruição a quem passa.
6 – Fonte de São Sebastião
Largo Dr. Pedro Vitorino
Tem outros nomes, como Fonte da Rua Escura por ter sido inicialmente edificada, no século XVII, nesta rua do bairro da Sé, ou do Pelicano pela imagem desta ave que simboliza a misericórdia, e que aqui abre o seu peito para dar de beber aos filhotes. Numa frontaria monumental em granito, a fonte apresenta ainda duas cariátides laterais, e dois bicos de água em caras de “putos”, além de elementos decorativos vegetalistas num alto-relevo profusamente talhado e trabalhado. É indubitavelmente uma das fontes mais valiosas no parque portuense, e está classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1938 (quando ainda se encontrava na vizinha Rua Escura).
7 – Fonte da Colher
Rua de Miragaia
Será uma das mais antigas fontes da cidade. Não esta, que hoje podemos ver ao fundo das Escadas do Monte dos Judeus, e deverá remontar a meados do século XIX, mas a sua antecessora, instalada do século XIII, ainda na praia de Miragaia, para uso comunitário. O nome “da colher” virá do imposto que se tinha de pagar pela entrada dos produtos na cidade (medidos numa colher); ou, segundo outras versões, pela colher (de madeira ou metal) com que se dava a água a beber. Mas a fonte actual continua a ser uma relíquia, com a sua estrutura em granito e estranhamente rematada com a varanda de uma casa. Está classificada como Imóvel de Interesse Público, mas merecia maior visibilidade.
8 – Chafariz do Palacete Silva Monteiro
Rua da Restauração, 318
O antigo Palacete Silva Monteiro (1822-1885), comerciante emigrado no Brasil, onde conquistou o sucesso e depois regressou à sua cidade natal, é agora a sede da Comissão de Viticultura dos Vinhos Verdes. Tem nos seus jardins sobre o Douro um chafariz que diz bem com a patine do edifício: é a Fonte das Três Graças, representando em ferro forjado três mulheres de mãos dadas de perfil jovem e delicado, e suportando uma taça com um anjo que segura um peixe. O imaginário marinho, com ornamentação de peixes e plantas, é uma espécie de serenata a cantar os sons e as cores da natureza.
9 – Fonte das Três Bicas
Quinta da Macieirinha
Rua de Entre-Quintas
A antiga Quinta da Macieirinha, contígua aos jardins do Palácio de Cristal, tem várias fontes. Entre elas, Arminda Santos realça “a simplicidade e a harmonia” da das Três Bicas. Situa-se num patamar ligeiramente elevado em relação à entrada, num ambiente bucólico e aprazível. Tem três bicas activas e percebe-se, pelo pouco que resta numa delas, que a água brotava de outras tantas carrancas (com carapinha) feitas em argila vermelha vidrada. O espaldar em forma de U invertido é encimado por cinco urnas decorativas, diferentes uma das outras, o que pode significar não serem já as originais. Detrás dele, há um banco em granito onde nos podemos sentar e ouvir a água a correr. “Ouça o sossego que isto dá!”, diz a guia.
10 – Fonte do Revilão
Rua do Jornal de Notícias, Aldoar
É uma das fontes mais recentes no mapa da cidade. Foi construída em 1956, segundo um projecto da escultora Lídia Vieira (1936-2005), num lugar próximo da Rua do Revilão, onde, no século XIX, foi instalado um fontanário para servir uma população essencialmente rural. O nome manteve-se nesta nova fonte que foi desenhada seguindo o ideário “modernista” da época, concretizada em granito polido e linhas geométricas e austeras. O enquadramento segue a mesma estética, com pavimento ligeiramente inferior à rua, e bancos laterais em granito. Marca também uma época e tem água.