Curraleira: o que é a memória de um lugar que já não existe?
Numa visita às “costas da cidade” são os moradores que guiam lisboetas e turistas pelos antigos bairros da Curraleira e Casal do Pinto. Um retorno às memórias dos bairros que já não existem que é também um exercício de reflexão sobre a forma como, dizem os moradores, a cidade os excluiu.
Quem não vivia no bairro fazia pouca ideia do que aquilo era. No tempo em que Mário Maia corria as ruas cima e baixo, baixo e cima, em brincadeiras, a “Curraleira era a Curraleira, todo o resto era outra coisa”. A inocência passou rápido, porque era assim que “cresciam as crianças num bairro que estava sempre de portas abertas”, com o que de bom e mau daí vinha. Viu como as “pessoas de fora não se davam com quem era dali”. A convivência mais próxima acontecia quando os “da cidade” vinham trocar dinheiro por fruta, peixe, roupa ou ovos, no mercado montado à porta do bairro no Vale de Chelas, tão próximo da Praça Paiva Couceiro como das Olaias, em Lisboa.
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Quem não vivia no bairro fazia pouca ideia do que aquilo era. No tempo em que Mário Maia corria as ruas cima e baixo, baixo e cima, em brincadeiras, a “Curraleira era a Curraleira, todo o resto era outra coisa”. A inocência passou rápido, porque era assim que “cresciam as crianças num bairro que estava sempre de portas abertas”, com o que de bom e mau daí vinha. Viu como as “pessoas de fora não se davam com quem era dali”. A convivência mais próxima acontecia quando os “da cidade” vinham trocar dinheiro por fruta, peixe, roupa ou ovos, no mercado montado à porta do bairro no Vale de Chelas, tão próximo da Praça Paiva Couceiro como das Olaias, em Lisboa.
Centenas barracas apareciam mal acabava o terreno aplanado do mercado e “só quem ganhava confiança punha um pé onde o terreno descia”, lembra-se. “Para os de fora”, era um lugar de lixo, ratos, droga e pobres. “Há 20 anos, para as pessoas a Curraleira era uma coisa... Porque não houve a oportunidade, como há agora, de mostrar que não é assim”.
Hoje a Curraleira pode já não existir – fruto do realojamento de 2001 –, mas o local é quase palpável nas histórias contadas pelo grupo de moradores que Mário, de 51 anos, integra. Com a promoção do Clube Intercultural Europeu e a parceria com várias associações, começaram este sábado a fazer visitas guiadas aos antigos bairros da Curraleira e Casal do Pinto. Para além de quererem partilhar os lugares onde ainda residem as suas memórias, chamam “os da cidade” a ver o que está nas suas costas.
Esta é uma ideia que João Alves, de 34 anos, tem desde sempre: “Eu moro nas costas da cidade”. Por isso a metáfora foi usada para dar nome a estas visitas. “Claro que quando éramos pequenos, a gente ouvia uns zum-zuns, umas bocas, mas não percebia”, começa Carla Alves. Com a idade, ficou claro “que o resto de Lisboa estava de costas para o bairro”, continua João. “O realojamento não melhorou isso. Sempre que a cidade crescia, nós ficávamos ali mais presos”.
Hoje vivem na Quinta do Lavrado, o maior dos bairros do realojamento, “encavacado” no fundo do vale. Estão nas costas do cemitério do Alto de São João, entre uma central eléctrica e uma estação de tratamento de águas residuais. Carla, aos 36 anos, duvida alguma vez vir a perceber porque é que as portas do seu prédio estão viradas para o cemitério e não para a estrada principal que rasga a Quinta. “Parece que foi para nos esconder, não é?”.
Não é por acaso que a visita começa na Praça Paiva Couceiro: “Vejam bem o contraste entre a cidade e o bairro escondido atrás dela”, atira Nuno Fortunato.
Guiados por João, Mário, Carla e Nuno, lisboetas e turistas são convidados a entrar nos bairros onde, em tempos, todos ficavam à porta. A visita, gratuita, é um percurso pelos antigos e novos bairros, da Quinta do Lavrado e o Bairro do Horizonte, Carlos Botelho e João Nascimento da Costa. Quem faz este caminho sozinho, dizem estes moradores, pode muito bem percorrer os bairros todos e “não ver nada”.
“Se perdemos as memórias ficamos com o quê?”
Há memórias que são como cicatrizes. Mário aponta para a parcela de terra em que assentava a barraca onde vivia com os irmãos, pais, avós e tios. “Foi aqui que a minha mãe criou onze filhos. Pensar nisso e ver aqui um pedaço de pedras dá muitas saudades”. Não que compare as condições que tem na casa onde foi realojado há cerca de 17 anos – com um pequeno jardim à porta, recolhida entre flores e pequenas plantas - às paredes de chapa e madeira que lhe davam tecto. “Mas se perdemos as memórias ficamos com o quê? A Curraleira também podia ser um lugar feliz. Não acha que vale a pena que as pessoas não se esqueçam disso?”
As visitas guiadas são o culminar de dois anos de recolha e retrato desses retalhos de história, naquilo a que chamaram o projecto Pa-Redes, financiado pelo programa Partis, da Fundação Gulbenkian. Começaram por coleccionar fotografias, documentos escritos e muitas horas de conversas informais. Depois imprimiram as memórias em murais de arte urbana – primeiro com jovens e crianças em parceria com a Associação de Antigos Alunos da Faculdade de Belas Artes de Lisboa; depois com grafitters profissionais, cujos trabalhos são apadrinhados pelos moradores.
Tratou-se de “um trabalho interno, de lembrar o passado, dar-lhe dignidade e visibilidade, em quatro territórios com uma alarmante falta de coesão”, explica uma das coordenadoras do projecto Magda Alves, do Clube Intercultural Europeu. E se há coisa que cria essa coesão, retorque, “é a memória das pessoas”.
A água era uma constante nas histórias das mulheres. Daí serem comuns os murais onde são retratados os momentos de convívio à volta do tanque ou no caminho para a fonte. Daí os moradores fazerem questão de parar no chafariz num cruzamento, poucos metros acima da praça Paiva Couceiro, onde se enchiam as bilhas de água que tinham que dar para tudo. O que hoje é uma espécie de “Marquês de Pombal da marcha popular do Alto de Pina”, foi durante décadas a única fonte potável e grátis da zona. Só por volta dos anos 60 foi construído um chafariz na Curraleira, onde a água canalizada só chegaria 40 anos depois.
E todos se lembram dos fogos, demasiado comuns nas barracas de madeiras que se encavalitavam no vale. Num deles, “o grande incêndio” de 31 de Março 1975, a morte de uma criança abriu uma ferida no bairro. É ela que figura num dos murais, agora em “tons mais alegres”, numa das empenhas do bairro Carlos Botelho. E é em sua homenagem que os moradores visitam a cruz num descampado que, em tempos, “era um mar de barracas de perder de vista”, conta Carla.
“Não olho, não ouço e não falo”
Ela pára junto à cruz. “Se fechar os olhos aqui consigo ver tudo. A nossa escola lá ao fundo, o campo de futebol onde a gente jogava mais à frente, e ali a mercearia”, descreve. Do espaço que hoje é árido e despido, a meio da antiga Curraleira, o grupo quer criar um miradouro para que outros possam reviver o mesmo.
“A verdade é que poucos moradores sobem até ao sítio do bairro antigo”, repara Nuno Fortunato, de 36 anos. E desabafa: “Mas é aqui também que a gente se lembra da sorte que tivemos em viver naquelas barracas. Da felicidade estúpida que era comer uma sandes depois de termos fome. Das brincadeiras que fazíamos. Da forma como tudo de bom para nós era um prazer e uma felicidade enorme. De como vivíamos protegidos, como toda a gente tomava conta de toda a gente”.
É dali que se vê o mural que ilustra a protecção de que Nuno fala: “Não olho, não ouço e não falo”, o lema do bairro. “A gente fechava-se para a gente. Não dizíamos nada a ninguém de fora sobre alguém de dentro. Aqui não havia ‘chibos’”, conta Mário, sobre um desenho com duas leituras. “Também ilustra a forma como lá fora toda a gente olhava para nós. Se eu dissesse no trabalho que era da Curraleira? Ui, que o caldo entornava. As pessoas não querem olhar, nem ouvir, nem falar de nós”, atira Carla.
Sabendo dessa condição de exclusão, os moradores criaram no bairro a Cooperativa Horizonte (que daria nome ao primeiro bairro de realojamento), no rescaldo do incêndio de 1975. Foi esse colectivo que havia de ajudar alguns dos desalojados a ocupar casas desabitadas em Entrecampos. E onde se concentravam os “homens da autoconstrução” dos bairros. “Um tijolo aqui, umas madeiras ali. As coisas faziam-se muito desta entreajuda”, conta João Alves. Mesmo ele, um de seis irmãos que cresceram ao cuidado da avó, "onde estaria se não fosse a ajuda dos vizinhos?".
Atrás da zona urbanizável
Durante a visita, Mário vai quase sempre à frente, irrequieto, a apontar: “Aqui havia uma barraca onde morava o senhor João Gaguinhas. Era só este bocadinho”, diz, descrevendo com as mãos um espaço com pouco mais de metro e meio de largura. Era vizinho da casa da sua avó, a primeira cigana a chegar ao bairro.
Devido à ordem da matriarca, nenhuma outra família daquela etnia viveu ali.
“Uma família como a do Mário foi morando no centro da cidade. Vinham do lado de Santa Bárbara, perto da antiga praça de touros, o Campo de Santana. E à medida que os planos do Ressano Garcia [engenheiro-chefe na Câmara de Lisboa] e Duarte Pacheco [antigo Ministro Obras Públicas e Comunicações de Salazar], com os prédios de arrendamento crescendo à volta do centro histórico até aqui, eles vão sendo empurrados até irem parar atrás da zona urbanizável”, aclara António Brito Guterres, investigador em Estudos Urbanos, que ajudou o projecto a ganhar forma enquanto representante da Fundação Aga Khan. E acrescenta: “Existem ainda as pessoas que vieram para aqui trabalhar, uma vez que isto era o fim da cidade na altura, anos 30 e 40”.
“Uma das poucas pessoas que sobrou na Curraleira” é o dono de uma quinta, escondida entre chapas e arvoredo. Todos os dias o homem solta os animais, o que faz com que Nuno aponte para a rotunda das Olaias, um pouco abaixo. Porque que outra razão haveria cavalos junto à Avenida Marechal Francisco Costa Gomes?
A intenção dos moradores é continuar a contar histórias como estas. O próximo passo é a construção de uma “sede” na Quinta do Lavrado – com espaço para jogar às cartas e um pequeno café, sala de estudos, estúdio de música, um espaço para a comissão de moradores e sala de reuniões. “Um espaço que não feche às 15h” como acontece com o único café do bairro, diz Carla. "Um sítio sempre aberto, para a gente nem se lembrar que a cidade continuou e nos deixou cá em baixo".