O cante alentejano a desassossegar Budapeste

Em apresentação do 14.º Terras sem Sombra, os Cantadores do Desassossego levaram o cante alentejano até à Hungria, país convidado da próxima edição do festival que arranca a 17 de Fevereiro, em Vila de Frades.

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Da quinta fila da plateia da imponente sala principal da Academia Liszt, em Budapeste, ouve-se o som mais perfeito que a belíssima acústica permite admirar. Em dias de visita guiada, sem espectáculos a decorrer, pode acontecer que alguém sinta crescer em si a coragem de levantar a voz para experimentar o efeito prometido. Quando a comitiva do festival Terras sem Sombra é desafiada a testar as propriedades da sala, os Cantadores do Desassossego não fingem ignorar o desafio. Primeiro, o mestre Francisco Torrão faz troar a sua voz grave e o som invade cada recanto da sala, parecendo ficar a pairar durante alguns segundos por cima de todos quantos acompanham o grupo. Depois, o grupo arranca espontaneamente com uma interpretação de Salsa verde, moda alentejana que versa o amor e a relação com a terra, e é um momento tocante.

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Da quinta fila da plateia da imponente sala principal da Academia Liszt, em Budapeste, ouve-se o som mais perfeito que a belíssima acústica permite admirar. Em dias de visita guiada, sem espectáculos a decorrer, pode acontecer que alguém sinta crescer em si a coragem de levantar a voz para experimentar o efeito prometido. Quando a comitiva do festival Terras sem Sombra é desafiada a testar as propriedades da sala, os Cantadores do Desassossego não fingem ignorar o desafio. Primeiro, o mestre Francisco Torrão faz troar a sua voz grave e o som invade cada recanto da sala, parecendo ficar a pairar durante alguns segundos por cima de todos quantos acompanham o grupo. Depois, o grupo arranca espontaneamente com uma interpretação de Salsa verde, moda alentejana que versa o amor e a relação com a terra, e é um momento tocante.

Porque musicalmente o seria sempre, mas também porque estes homens de Beja trazem consigo um cante nascido no campo e nas tabernas do Alentejo, mas que não se atemoriza nem acanha no espaço de uma das mais reputadas escolas de música de todo o mundo. A intensidade da beleza telúrica destas vozes, seguindo este modo despreparado em que um lança o mote e os outros seguem, doma a solenidade da sala – e, enquanto dura a moda, aquele podia ser o seu espaço natural. Mas esse levantamento das vozes há-de acontecer nas mais diversas ocasiões no decurso desta viagem, em que se apresenta o Terras sem Sombra à Hungria, país convidado da edição deste ano do evento dedicado à música, ao património e à biodiversidade.

Ouvimos o canto destes homens despontar na rua, em restaurantes, nas viagens de avião e de autocarro, no mercado da cidade, evidência de que o cante, desde o seu surgimento, está intimamente ligado ao quotidiano – e a dois mil e quinhentos quilómetros de distância funciona também como uma reclamação de território, de reivindicação de pertença a um lugar que se expõe com inabalável orgulho. Se, institucionalmente, foi oferecido um sobreiro pela delegação portuguesa ao Jardim Botânico de Budapeste, foi o cante alentejano que com superior firmeza se plantou em solo húngaro por estes dias.

Basta pensar, de resto, que este grupo coral criado em 2014 nasceu de uma dessas ocasiões em que é o encontro e o convívio a puxar pelas modas cantadas em conjunto. Foi no aniversário da filha de um deles, José Serrano, que começaram a sobrepor as vozes. Correu tão bem que Francisco Torrão se lembra de ficar a baloiçar uma pergunta no ar: “Temos aqui tantas vozes boas, porque é que não nos juntamos mais amiúde em vez de ser só em situações eventuais?” Cada cantador ficou de arregimentar um outro elemento novo e passada semana e meia começaram a ensaiar semanalmente na Galeria do Desassossego (antiga Taberna do Alhinho), no centro de Beja, espaço pertencente a Jorge Benvinda, vocalista da banda pop/rock Virgem Suta – que chegou a integrar a formação inicial.

Depois de 40 anos com o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, do qual o seu pai foi um dos principais impulsionadores, “Chico” Torrão – a quem alguns outros elementos chamam, carinhosamente, “o Cristiano Ronaldo do cante alentejano”, pelo imenso valor do seu conhecimento do género –, assumiu o papel de mestre dos Cantores do Desassossego, querendo com isso dizer que os ensaia e zela pela boa prestação musical do grupo, dando alguma supervisão também na escolha de reportório. E diz ao PÚBLICO que gostava de seguir o modelo dos Madredeus: “Tal como eles criaram um estilo muito próprio, nós também queremos alcançar um estilo de cante próprio, conjugando as diferentes maneiras de cantar da margem direita e margem esquerda [do Guadiana].”

Essa vontade de inovação, sem descurar a salvaguarda do legado herdado pelos pais e avós, ouve-se, por exemplo, na moda Património, que lhes ouvimos pela primeira vez em recepção na Embaixada de Portugal em Budapeste, a convite da embaixadora Maria José Morais Pires, representante de Portugal na UNESCO à altura da aprovação por unanimidade da candidatura do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade, em Novembro de 2014. Foi nessa mesma noite que nasceu esta moda, memória cantada de um “dia tão bonito” em que “o Alentejo é património / pelo seu lindo cantar”. A letra é de Armando Torrão, irmão do mestre, que integrou a comissão científica da candidatura. “Chico” é o autor da música, ele que desde os tempos de juventude no Alentejo, com o grupo Ala 4, tanto tocava House of the rising sun ou músicas de Adamo, quanto arranjos para uma formação de rock de temas do cancioneiro alentejano.

Diálogo Portugal-Hungria

A apresentação oficial em Budapeste, na passada sexta-feira, do 14.º Terras sem Sombra, arrancou uma vez mais com uma actuação dos Cantadores do Desassossego, no Instituto de Musicologia. Nessa mesma sala, onde descansava o piano de Béla Bartók, o director do instituto Pál Richter consideraria aquele o espaço mais adequado para lançar a presença húngara no festival que decorre, entre 17 de Fevereiro e 1 de Julho, em dez concelhos do Baixo Alentejo (com a excepção, pela primeira vez este ano, de Elvas) devido aos dois pilares em que assenta a actividade daquela casa: a preservação e divulgação do arquivo de Bartók e a colecção de recolhas de música tradicional levadas a cabo por Bartók e Zoltán Kodály.

Bartók, a par de Liszt, Kurtág e Eötvös (estes últimos considerados pelo director artístico do festival, Juan Angel Vela del Campo, dois dos mais revelantes e inovadores compositores do nosso tempo) serão interpretados no Terras sem Sombra, reforçando uma história cada vez mais longa e profunda da Hungria com o festival. É essa história e uma ideia de diálogo cultural que é pretendida com este estatuto de país convidado, exemplificado na actuação dos cantadores no palco do Museu Liszt (situado na última casa que o compositor habitou em Budapeste, entre 1881 e 1886) cruzada, em dois momentos, com jovens intérpretes de música tradicional e estudantes da Academia Liszt – os mesmos que, em Março, participarão na estreia absoluta das Canções Populares Húngaras, de Fernando Lopes-Graça, em Serpa.

Diálogo assente numa ideia fundamental de Bartók: a de que a música popular não é estranha aos grandes salões nem precisa de pedir licença para se fazer ouvir. Assim fizeram os Cantadores do Desassossego, que encheram as ruas de Budapeste com o canto das tabernas e do campo do Alentejo, parecendo dar corporizar a citação de Kodály recuperada por Pál Richter: “É possível viver sem música, mas não vale a pena.”

O Público viajou a convite do Festival Terras sem Sombra e da TAP