“É mais importante estudar como Salazar dominava os conformistas do que como esmagava os oposicionistas”

No seu terceiro livro sobre o Estado Novo, António Araújo analisa o atentado à bomba contra Salazar e propõe uma nova leitura dos acontecimentos. O retrato que faz da Lisboa revoltosa dos anos 1930 é um pretexto para falar do Portugal obediente e conformista.

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António Araújo no armazém onde tem os livros que não cabem na sua casa Miguel Manso

O historiador e jurista António Araújo só faz o aviso na página 60: este é “um universo nebuloso”. Não é uma hipérbole. Oitenta anos depois do atentado falhado contra António de Oliveira Salazar, o investigador regressou ao Portugal dos anos 1930 e às redes inorgânicas da oposição à ditadura e saiu do processo com uma proposta nova sobre quem planeou, montou e fez explodir, a 4 de Julho de 1937, 30 quilos de dinamite à porta do número 96 da Avenida Barbosa du Bocage, em Lisboa, onde morava Josué Francisco Trocado, professor de música no Liceu Pedro Nunes (e avô de Diogo Freitas do Amaral), em cuja capela o ditador costumava ir à missa aos domingos. Tudo falhou. A bomba explodiu, mas a três metros do carro, e Salazar, que saiu calmamente do Buick e disse “não foi nada, vamos à missa”, usou o golpe para reforçar o seu poder e a sua aura de salvador. Araújo não tinha a ambição de fazer História nova, nem de escrever um livro, mas acabou a defender uma tese que desmonta a ideia de uma co-autoria tripartida do atentado. Araújo não acredita na ideia de uma operação partilhada em pé de igualdade entre anarquistas, comunistas e republicanos radicais. “O PCP, enquanto estrutura, não conspirou para matar Salazar”, diz nesta entrevista, uma longa conversa várias vezes interrompida para ir buscar livros e, com eles, reforçar os seus argumentos. Um terço do seu novo livro, “Matar o Salazar”, editado pela Tinta-da-China, é sobre isto. O resto é um retrato da Lisboa pobre e salazarista e um pretexto para falar sobre o Portugal onde, para além de revolta, havia medo, conformismo e obediência.

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O historiador e jurista António Araújo só faz o aviso na página 60: este é “um universo nebuloso”. Não é uma hipérbole. Oitenta anos depois do atentado falhado contra António de Oliveira Salazar, o investigador regressou ao Portugal dos anos 1930 e às redes inorgânicas da oposição à ditadura e saiu do processo com uma proposta nova sobre quem planeou, montou e fez explodir, a 4 de Julho de 1937, 30 quilos de dinamite à porta do número 96 da Avenida Barbosa du Bocage, em Lisboa, onde morava Josué Francisco Trocado, professor de música no Liceu Pedro Nunes (e avô de Diogo Freitas do Amaral), em cuja capela o ditador costumava ir à missa aos domingos. Tudo falhou. A bomba explodiu, mas a três metros do carro, e Salazar, que saiu calmamente do Buick e disse “não foi nada, vamos à missa”, usou o golpe para reforçar o seu poder e a sua aura de salvador. Araújo não tinha a ambição de fazer História nova, nem de escrever um livro, mas acabou a defender uma tese que desmonta a ideia de uma co-autoria tripartida do atentado. Araújo não acredita na ideia de uma operação partilhada em pé de igualdade entre anarquistas, comunistas e republicanos radicais. “O PCP, enquanto estrutura, não conspirou para matar Salazar”, diz nesta entrevista, uma longa conversa várias vezes interrompida para ir buscar livros e, com eles, reforçar os seus argumentos. Um terço do seu novo livro, “Matar o Salazar”, editado pela Tinta-da-China, é sobre isto. O resto é um retrato da Lisboa pobre e salazarista e um pretexto para falar sobre o Portugal onde, para além de revolta, havia medo, conformismo e obediência.

Quando cheguei à última página — e correndo o risco de spoiler —, fiquei a pensar que o António Araújo tinha este livro “atravessado” desde 1988, quando conheceu o anarquista Emídio Santana, co-autor do atentado falhado para matar Salazar.
António Araújo — Eu conheci-o, mas mal. Era um jovem universitário e fui com um amigo a umas comemorações no jornal A Batalha. A sessão foi épica. Eram todos quase centenários e estavam sempre a recordar o passado (“e nós, quando fizemos isto ou aquilo...”). Muitos tinham feito parte do movimento insurreccional e do 18 de Janeiro [de 1934]. Foi nessa sessão que Emídio Santana, talvez o mais lúcido de todos e o mais clarividente em termos políticos, se zangou e disse, quase com um murro na mesa: “Não podemos estar sempre a falar do passado, temos de falar do futuro, estão aqui dois jovens...” Era eu e o meu amigo.

Quem era o seu amigo?
Pedro Franco, hoje advogado. Íamos a estas coisas e a comícios de todos os partidos.

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O anarquista Emídio Santana, num recorte de jornal, foi preso e condenado por tentar matar Salazar em 1937. António Araújo conheceu-o pessoalmente quando era estudante de Direito e andava à procura de “pessoas mais antigas” Miguel Manso

Foi nessa sessão que conheceu Emídio Santana?
Soubemos da sessão e fomos falar com Emídio Santana. Fomos a casa dele — ele sempre muito simpático — e foi aí que ele me assinou o livro dele [História de Um Atentado, Fórum, 1976], que eu tinha lido. Na altura não havia estes movimentos anarquistas que agora pululam. Portanto, ele terá achado que era um raio de luz ter ali dois jovens, não direi militantes da causa, mas que tinham interesse por aquilo.

Qual era o seu interesse pelo anarquismo?
Eu tinha interesse por vários movimentos, ia a vários comícios de vários partidos. Ia observar. Tinha um interesse sociológico, digamos assim...

Andava à procura dos seus heróis?
Era uma coisa juvenil. Andávamos à procura de pessoas interessantes e idosas. Eu estava a estudar Direito e tinha curiosidade sobre o Estado Novo. Na altura havia muito poucos livros. Fui ao primeiro grande colóquio sobre o Estado Novo, na Gulbenkian, do qual se fizeram actas e tudo. O Fernando Rosas ainda nem era doutorado. A única referência que havia — ainda nem tinha sido traduzido para português — era o livro de Hermínio Martins, que estava em Oxford, e que nos anos 1960 tinha feito, em inglês, uma das análises pioneiras sobre o salazarismo. Havia o Manuel Lucena, o livro do Jorge Campinos e pouco mais. A História parava no 25 de Abril. A História de Portugal do Oliveira Marques ainda tinha na capa a frase “Até ao Governo do Sr. Marcello Caetano”. Do Senhor!

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DR

Falou com Emídio Santana sobre a participação do Partido Comunista no atentado contra Salazar?
Não. Houve uma ferida deixada pelo 18 de Janeiro. As investigações mais recentes — e muito sólidas — de Fátima Patriarca demonstraram que o 18 de Janeiro foi sobretudo uma obra de anarquistas. A seguir ao 18 de Janeiro — que foi muito celebrado pelo movimento, apesar de ter corrido mal, pois não atingiu os objectivos — houve logo um passa-culpas, acusações feitas aos anarquistas. É nessa altura que se fala de uma “anarqueirada”. O PCP já tinha uma visão mais disciplinada e organizativa das coisas, uma ideia mais piramidal, enquanto os anarquistas tinham uma visão mais espontaneísta. Tanto que, no atentado ao Salazar, não havia uma intervenção vinda de cima. O próprio Emídio Santana confessa que tinha alguma autonomia. Essa guerra da memória de que fala Fátima Patriarca no seu livro Sindicatos contra Salazar. A Revolta do 18 de Janeiro de 1934 [Imprensa de Ciências Sociais, 2000] acaba por se prolongar muito no atentado ao Salazar, porque é feito numa altura de crise, quer dos anarquistas, quer do PCP.

Porque estavam na clandestinidade?
Não tanto isso, mas porque já havia uma má relação entre anarquistas e comunistas, para não dizer uma relação de ódio. A expressão “anarqueirada” é do próprio Bento Gonçalves, líder histórico do PCP. O Emídio Santana protagonizava muito essa rivalidade. Uma coisa curiosa é que o PCP nunca reivindicou no seu património histórico o atentado ao Salazar. No livro 60 Anos de Luta [Edições Avante!, 1982] consta o 18 de Janeiro, mas não o atentado a Salazar. E na própria história do PCP do João Madeira [História do PCP, Tinta-da-China, 2013], o atentado não aparece.

Se este novo livro tem uma tese, é a de que o PCP, oficialmente, não esteve envolvido no atentado de 1937 contra Salazar. Demonstrar isso foi o ponto de partida?
Num certo sentido, sim. Isto começou por ser um artigo para uma obra colectiva que Leonor Sá, da Universidade Nova, estava a organizar sobre as polícias e a investigação nos séculos XIX e XX, e que depois, com a minha prolixidade habitual, começou a crescer. O artigo pretendia apenas resumir “o estado da arte” da investigação sobre o atentado de 1937. Por isso, este livro não tem a pretensão de fazer História nova em relação ao que já se sabia. Mas houve momentos que, para mim, foram novos. O mais impressionante foi ter nas mãos os bilhetes escritos na prisão por aqueles homens do Alto do Pina erradamente presos pela PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] e estar a ler aquelas descrições das torturas. Entrar numa sala da Polícia Judiciária e ter aquele confronto com a materialidade das coisas é emocionante. Uma coisa é ler o relatório do juiz Alves Monteiro transcrito por outros, outra é ver o processo em papel amarelecido, as fotografias, sempre muito interpelantes, ver aqueles indivíduos a olharem para mim com aquele ar desgrenhado. Não estava habituado a ver a PIDE in action. Conheço bem o Arquivo da PIDE e os relatórios que fazia, mas não isto. O meu livro não é muito original, antes dele já tinham sido publicados dois — exceptuando o de Santana, que é memorialístico. O primeiro é de Valdemar Cruz, que em 1996, com a ajuda do Fernando Negrão, na altura director da Polícia Judiciária, descobriu o inquérito que o juiz Alves Monteiro fez em 1937.

Descreve esse inquérito como “um documento de extraordinário valor histórico”. Não posso deixar de reparar que foi um jornalista e não um historiador que o encontrou.
Tem havido muitos casos. José Pedro Castanheira tem descoberto muitas coisas de grande relevância, como as conversações de Londres do 25 de Abril, no tempo de Marcello Caetano. Não vale a pena esta concorrência. Alguns académicos vêem o jornalismo como investigação de segunda. De modo nenhum. Não são investigações históricas académicas, mas, precisamente por serem jornalísticas, trazem dados que os académicos, apegados aos livros e aos arquivos, não revelam.

Isso já acabou?
Sim, os clássicos historiadores, como Oliveira Marques, quando falam de períodos mais recentes, falam em termos puramente descritivos. Agora, pelo contrário, há um grande interesse pelo Estado Novo e por Salazar, como em Espanha há por Franco. Não é por ser uma personalidade fascinante — que é —, mas porque foi uma grande personalidade no sentido em que ocupou muito tempo no Estado Novo.

Como foi o seu processo de pesquisa?
Não parti com grandes preconceitos. Não tinha a ideia de defender uma tese, mas ao investigar e reler o que havia vi que a ideia de as três forças políticas — os anarquistas, os comunistas e os republicanos radicais — estarem em pé de igualdade, numa “frente popular”, era exagerada. A ideia que tenho, que é patente nas memórias do Emídio Santana e na documentação de arquivo — e esse trabalho de levantamento foi feito pelo João Madeira —, é que o PCP, enquanto estrutura, não teve intervenção no atentado ao Salazar, não conspirou para matar Salazar. Isso, mesmo o João Madeira, que defende uma tese um bocadinho diferente da minha...

... não diria “um bocadinho”, mas bastante diferente da sua...
Sim, bastante diferente, mas pode ser só uma diferença de perspectiva. Enfatiza a ideia de uma Frente Popular para matar Salazar...

A ideia de uma vasta conspiração.
Eu enfatizo mais a ideia de que não foi uma Frente Popular em si que determinou o curso das acções. Há uma altura em que os financiamentos das acções de oposição vinham de Espanha e de França, do grupo de Jaime de Morais, o “grupo dos Budas”...

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A bomba de dinamite explodiu na manhã de domingo de 4 de Julho de 1937 à porta do nº 96 da Avenida Barbosa du Bocage, em Lisboa, onde vivia Josué Trocado, amigo de Salazar e avô materno de Diogo Freitas do Amaral DR

Esses financiamentos eram para os anarquistas ou também para os comunistas?
Aí é que está o ponto. Naquele submundo de marginalidade conspirativa havia vasos comunicantes. Todos clandestinos, vivendo sob uma grande ameaça. Tinha havido prisões em massa em todos os lados, estavam ambos em grande fragilidade, quer os anarquistas, quer o PCP, e a liderança do Francisco “Pável” [do PCP] era muito débil. Aliás, ele tinha chegado a Portugal há pouco. Portanto, apesar de o PCP já ter uma linha dirigista, havia militantes e simpatizantes que viviam em rédea solta. E esses, até por questões de autodefesa, tendo um inimigo em comum, punham para trás questões ideológicas (se eram comunistas ou anarquistas) e tinham contactos, entreajudas e apoios logísticos entre si. Nesse aspecto, havia inúmeros pontos de colaboração informal. Tudo isto era muito inorgânico, não havia uma estrutura formal com actas ou convocatórias para reuniões. Claro que havia aspectos orgânicos e o próprio Emídio Santana foi ao congresso anarco-sindicalista de Saragoça, em 1936. O que defendo é que não se pode dizer que o PCP, enquanto estrutura, estivesse inserido nesta conspiração. Mais ainda, o grupo republicano de Jaime de Morais tenta por tudo impedir o atentado.

A carta que Jaime de Morais escreveu na véspera do atentado a dizer que o plano é “reprovado por todos nós aqui e grave erro” tem sido subestimada?
Jaime de Morais — que não era anarquista nem comunista, vinha daquele republicanismo histórico e radical, de inspiração maçónica — estava exilado e financiava acções oposicionistas em Portugal. Graças a esse financiamento, as “bombas dos ministérios”, no início de 1937, correram bem e, apesar de algumas não terem deflagrado onde se pretendia, foram um abalo para o regime. Isso deu entusiasmo aos homens de acção, como António Granja, que controlava os táxis em Lisboa nos anos 1930, que era comunista, e que começou logo a pensar no que fazer a seguir.

É ele o ideólogo do atentado contra Salazar?
É ele quem tem a primeira ideia de matar Salazar, mas quem depois organiza as coisas é Emídio Santana, anarquista. Este era o tempo das frentes populares em toda a Europa e por isso a minha divergência com João Madeira não será tão profunda quanto possa parecer. Não se pode é dizer que o atentado foi obra de uma Frente Popular.

Nessa Frente Popular estavam anarquistas, comunistas e republicanos?
Sim, e os “Budas” também, mas com níveis diferentes de intensidade. Houve uma ideia frentista na génese da ideia de acção, mas é difícil construir uma ideia de Frente Popular quando há uma rivalidade e um ódio muito grandes, dos anarquistas em relação aos comunistas. Aquele ódio que se nota — e a expressão usada é essa — nos livros do Emídio Santana não aparece passados uns anos, já existia. Sobretudo sob o calor da disputa do 18 de Janeiro de 1934, em relação ao qual houve logo uma guerra de reivindicação de louros, como notou a grande historiadora Fátima Patriarca. “Isto foi nosso.” No caso do atentado a Salazar, é sintomático que o PCP nunca o tenha reivindicado. Sem prejuízo de comunistas, simpatizantes ou pessoas da órbita do PCP — como era tudo inorgânico, não havia ficheiros de inscrições — terem participado. Mas nunca quadros de primeiro plano. É certo que havia um que era do Comité Central...

... Fernando Tavares, o “Tavares do Talho”. O historiador João Madeira não acredita que, sendo ele do Comité Central, o PCP não tenha sabido. Mas o António Araújo defende que ele agiu a título individual. O que é que o convenceu disso?
O próprio Francisco Miguel, do PCP, conhecido como o “Chico Sapateiro”, queixa-se de não ter controlo sobre o “Tavares do Talho”. Ele era um rebelde que desobedecia às ordens do partido. Aqui já estamos num domínio conjectural, mas acredito que ele participou apenas a título individual. Não há quaisquer rastos de coordenação com o partido. E enquanto — isto para mim é importante — o Comité Confederal da CGT [Confederação Geral do Trabalho] — ou seja, os anarquistas — tem um conhecimento e até uma aprovação deste tipo de acções, não há vestígios de que o Comité Central do PCP tenha avalizado o atentado a Salazar. Com as dificuldades da comunicação e da vida da clandestinidade, muitas destas acções eram protagonizadas a nível individual ou em pequenos grupos, até por razões de autodefesa.

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Araújo no local do atentado Miguel Manso

Cita a nota que o Comité Central do PCP publicou no Avante! em 1937 na qual critica “acções isoladas” que pudessem “redundar em puro terrorismo”. Isso não pode ter sido bluff para enganar a PVDE?
Coloquei a hipótese de ser um bluff para se distanciar, mas O Avante! comete a proeza de, na mesma edição, condenar o atentado a Salazar e ter um artigo a louvar esse atentado! O PCP tinha uma posição ambígua. Não fazia parte do seu modo de acção uma coisa tão inorgânica, até porque tinha um receio grande — e justificado — que acções espontâneas provocassem uma reacção repressiva muito forte por parte do regime. Já estavam debilitados e mais debilitados ficariam. Até pela ligação com Moscovo, isto não era o tipo de coisa que o PCP praticasse.

E assim temos o historiador António Araújo, de quem não se conhecem simpatias pelo PCP e que é actual consultor político do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e antes foi de Cavaco Silva, a defender a imagem do PCP.
Este é um livro de História, nada mais. Não sei se estou a fazer um favor ao PCP ou se a minha tese é desfavorável ao PCP. Se calhar até seria favorável ao PCP averbar mais uma acção ao seu historial de combate ao regime. Era matar, mas não era matar qualquer pessoa, era matar o ditador. Para mim, isso não é importante, e não conduziu a minha investigação.

Imagino que tenha pesado cada linha que escreveu a desmontar a tese de um colega historiador. Hesitou muito?
Não estou a pôr em causa João Madeira, até porque acho o livro dele muito importante, sobretudo porque — e na sequência dos trabalhos de Valdemar Cruz e Pacheco Pereira — traz uma nova luz sobre outras personalidades. O que acho é que não se pode extrapolar intervenções individuais para construir uma tese. O papel dos anarquistas foi muito mais do que de co-autoria. A questão será mais terminológica, mas as palavras têm um sentido. Talvez por  ser jurista, pergunto: o que é co-autoria? Co-autoria dá a ideia de que isto foi uma coisa feita a três, comunistas, anarquistas e republicanos, em pé de igualdade. Há que sopesar a intervenção de cada um deles. A dos republicanos radicais foi fundamental na génese em termos de financiamento...

Os “Budas”...
... mas depois há uma altura em que recuam. Não posso prescindir daquilo que diz a carta de Jaime de Morais, que vem afirmar “parem com isso”. Já aí não estão no mesmo pé. Saltaram. Quiseram distanciar-se.

O atentado foi uma operação dos anarquistas?
Há factores decisivos. Estamos sempre a um nível indiciário, não podemos voltar a entrevistar Emídio Santana, nem o “Tavares do Talho”. Mas nunca na sua história o PCP reivindicou esta acção. Nem na obra oficial das Edições Avante! sobre a História do PCP: tem aqui [e folheia o livro 60 Anos de Luta, de 1982] a prisão de Bento Gonçalves [o secretário-geral do PCP que acabará por morrer no campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde], tem o 18 de Janeiro de 1934, tem a Revolta dos Marinheiros de 1935... e chega aqui, 1937, e não tem uma linha sobre o atentado ao Salazar. O PCP não tinha a tradição de liquidar fisicamente. Já os anarquistas assumiam que podiam matar. Se o PCP tivesse tido alguma participação efectiva no atentado, tê-lo-ia reivindicado, até porque no final não morreu ninguém.

O Partido Comunista russo não põe na sua história oficial as coisas horríveis que fez...
Sim, mas não tendo morrido Salazar, e tendo o atentado sido uma acção importante de antifascismo, se o PCP coloca a Revolta dos Marinheiros na sua história oficial... Isto pode ser o risco de anacronismo, mas o PCP, mesmo nos movimentos das acções directas ou da luta armada dos anos 1960, chega tardiamente. O que quero dizer é que, sem prejuízo de na preparação do atentado terem estado comunistas e republicanos radicais, isso não dá a todos o mesmo peso na acção. Do ponto de vista da coordenação política e operacional, os anarquistas sobressaem. Não se pode remeter isto a uma ideia de co-autoria em que cada um teve 33% de responsabilidade. A única força que oficialmente — isto é politicamente importante — reivindica, autoriza e avaliza o atentado é a CGT, os anarquistas. Estiveram comunistas, isso estiveram! O Granja, que era comunista e controlava um grupo de motoristas de táxi em Lisboa, e que era um homem de sangue na guelra...

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Miguel Manso

... é ele que grita “Qual quê? Se não mata, faz barulho!”, quando se percebe, na véspera, um erro técnico na instalação da bomba e alguém propõe abortar a operação para matar Salazar.
Quando se entrava nestes processos e nem se sabia onde estava o contacto do PCP, nem a quem perguntar, aquilo era um jogo de polícias e ladrões, uma “marginalidade” no sentido da clandestinidade operacional. Encontravam-se, combinavam umas coisas, improvisava-se... então, num dos carros abandonados aparece na bagageira um tacho com um coelho guisado no meio dos materiais da operação, das pistolas... aquele amadorismo todo tem de ser sopesado ao interpretarmos o que se passou.

O historiador João Madeira já lhe disse alguma coisa desde que o livro saiu?
Não, não nos conhecemos pessoalmente, mas não tenho nenhum intuito polémico e admiro o trabalho dele.

Mas 40 das 140 páginas do seu livro são a desmontar a tese de João Madeira sobre o papel do PCP no atentado.
Não foram escritas nesse sentido. Se calhar há uma tendência minha mais argumentativa por causa da base jurídica, mas penso que é mais uma questão de nuance. João Madeira é um historiador muito rigoroso, e não é por acaso que na sua História do PCP, outro excelente livro que ele fez, não inclui o atentado a Salazar.

Em 2013, deu quatro estrelas ao livro de João Madeira, 1937. O Atentado a Salazar, no Ípsilon.
Sim, tenho muito apreço pelo livro. Não armemos aqui uma polémica!

Passados 80 anos, a autoria do atentado continua por esclarecer e há pouca investigação — só há três livros.
Eu fiz a minha tese sobre a Capela do Rato e também aí há uma luta grande entre as Brigadas Revolucionárias, o Carlos Antunes e a Isabel do Carmo, que dizem que aquilo foi uma acção deles, e o grupo de católicos, que era o Luís Moita e o Nuno Teotónio Pereira, que diz que não. Também há uma guerra de memórias. E mesmo sobre essa há coisas que nunca se vão deslindar. Sobre o atentado a Salazar — e a minha intenção original nem era levar isto a livro — até acho que a investigação está relativamente feita. Claro que os arquivos nos surpreendem, mas há vários livros. O do Emídio Santana, o do Valdemar Cruz, o de João Madeira e agora este.

Só havia três.
Agora há quatro. Mas sobre a Revolta dos Marinheiros de 1935, há alguns trabalhos, mas não há nenhum livro de fundo.

Parece pouco se pensarmos no tema: matar o homem que dominou Portugal durante meio século.
Comparado com outros temas tão ou mais relevantes, até há uma bibliografia considerável. Há grandes lacunas na nossa História. A maior das quais é que a nossa historiografia (e também eu agora, com este livro) está muito marcada pelo paradigma da resistência e do antifascismo na leitura do salazarismo e do Estado Novo. Isso dá-nos uma perspectiva relativamente desfocada do modo de dominação de Salazar, porque é na História feita a partir de dentro do regime, como o António Costa Pinto fez sobre as elites [Elites, Sociedade e Mudança Política, Costa Pinto e André Freire, Celta, 2003], que se percebe o modo de dominação de Salazar. E o Fernando Rosas tem um livro sobre a arte de saber durar de Salazar. A permanência de Salazar não se explica pelo insucesso dos oposicionismos, que eram minoritários. Há muitos estudos sobre a oposição, mas não há ainda um sobre como é que Salazar administrava uma coisa fundamental que era a cunha, como é que ele dominava o país. Há uns anos fiz um levantamento da correspondência dos professores de Direito no Estado Novo. Há professores de Direito que se dirigem a Salazar, antigos colegas de Coimbra e não só, apenas com pedidos e “empenhos”. É muito mais importante estudar como é que Salazar dominava os conformistas do que como é que esmagava os oposicionistas. Porque isso está feito no essencial e porque o grosso da sociedade portuguesa vivia num medo difuso. O português médio não se metia em aventuras oposicionistas e muito menos bombistas. O que é que explica o conformismo instalado?

No fim do livro fala na “passividade abúlica” portuguesa, mas não é claro se defende isso como a causa ou a consequência de 48 anos de ditadura.
É muito simplista explicar esse conformismo apenas com o medo. A sociedade vivia toda aterrorizada como se vivêssemos num regime totalitário? Mesmo nos regimes mais totalitários vê-se que não era assim. Pensamos que na Alemanha nazi vivia tudo num pavor, mas não. Havia criminalidade, havia carteiristas e ladrões comuns e até havia um assassino em série em Berlim.

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Matar o Salazar é o terceiro livro de Araújo sobre o Estado Novo, depois de A Lei de Salazar e de Sons de Sinos. O historiador guarda ainda o livro de Emídio Santana com uma dedicatória Miguel Manso

Havia uma normalidade, é isso?
Sim, o terror não apaga o quotidiano. É igual na União Soviética. Portanto, em relação a Salazar — que era uns degraus bastante abaixo de Hitler e de Estaline do ponto de vista da dominação pela violência —, a grande questão, e a grande lacuna da nossa historiografia, é explicar o grande enigma que é a dominação não violenta. Salazar não dominava milhões de portugueses pela violência ou pela ameaça da violência.

Dominava como?
Dominava porque explorava muito bem o carácter atrasado de Portugal.

E trabalhava para o manter assim.
O salazarismo soube capitalizar a necessidade das pessoas que vinham da província e queriam um emprego para a vida, dos escriturários que colocavam os sobrinhos nas repartições, dos conterrâneos que se ajudavam entre si, dos padrinhos e afilhados. No livro, falo de uma certa Lisboa marginal. Essa Lisboa continuou a ser rufia no tempo de Salazar. A Legião Portuguesa ou a PVDE não acabaram com isso. Continua a haver rixas no futebol, pessoas que batem no árbitro, curandeiros, bruxas, divórcios... Há a ideia de que a vida fica ali num parêntesis, que de repente ficou tudo negro e imóvel... Claro que as pessoas viviam num pavor típico de uma sociedade com autoridades ditatoriais. Mas é preciso explicar o conformismo. Explicar como é que se dominavam as Forças Armadas colocando generais nos conselhos de administração das empresas, dando-lhes um rendimento para os calar e abafar as veleidades conspirativas que tivessem.

Manter as pessoas contentes.
Sim, contentes.

Essa foi a chave da longevidade do regime?
Sim, embora seja uma explicação demasiado linear. Devemos procurar a chave de como é que Salazar conseguiu domesticar e manter o conformismo, não só das elites, criando ele próprio as elites que lhe eram próximas, mas também de segmentos mais baixos, através de prestações sociais e de uma hábil gestão da cunha. Porque receber uma casa dos bairros sociais, ter os transportes pagos, ou a assistência médica, ainda que incipiente, eram tudo formas de fidelização das pessoas com salários baixos. Temos de pensar que as pessoas viviam em estado de carência. Todos procuravam safar-se. Eles, a sua família, os seus padrinhos. Ter um tio na Guarda Fiscal era importante.

O retrato que faz dos anarquistas que tentam matar Salazar é também um retrato de miséria.
E essa nem é a Lisboa mais miserável de todas! Essa foi estudada pela Susana Pereira Bastos, n‘O Estado Novo e Os Seus Vadios [Dom Quixote, 1997]. Isto era gente que, apesar de tudo, tinha empregos, precários, à jorna, mas tinha empregos.

Mas eram semianalfabetos.
Sim, mas não podemos cometer o erro de julgar com os olhos dos nossos dias. Aqui em Alfama, até há poucos anos, não havia água canalizada. Os conspiradores contra Salazar era gente do proletariado, não eram vagabundos que viviam na rua. Não é por acaso que havia uma sombra que pairava sobre as pessoas: o pavor era a doença, se o chefe de família adoecia. A linha entre esse proletariado e a pobreza extrema urbana era muito ténue.

Como é que o regime usou o atentado para reforçar a sua força?
Há uma altura em que as polícias estão em rivalidade. A PVDE entra a querer mostrar serviço e comete erros e prende indivíduos que viviam, alguns, na marginalidade, e acusa-os de serem os autores do atentado contra Salazar, é o grupo do Alto do Pina.

Não tinham uma profissão?
Alguns eram serventes de pedreiro, coisas assim. Por isso digo: não eram mendigos.

Mas estavam socialmente abaixo do grupo de Emídio Santana?
Sem dúvida. O Emídio Santana já era lido, estudou na Escola Oficina N.º 1, na Graça, depois fez a Afonso Domingues. Era um homem que fez a escola técnica. Os do grupo do Alto do Pina, não: eram serventes, um era um semianalfabeto da zona da Abrigada, gente que vinha para Lisboa sem eira nem beira.

Como é que Salazar usou o atentado em seu benefício?
A Guerra Civil de Espanha determina encontros e desencontros, motiva a acção dos anarquistas, mobiliza os apoios de Salazar a Franco e há o problema das relações com Inglaterra, o país inteiro ergueu-se na defesa do salvador. Grande parte da reacção ao golpe foi espontânea. Foi o regime em termos latos, abrangendo a Igreja, que se sentiu ameaçado com o ataque a Salazar. E ele explorou isso muito bem: por um lado, subestimando o acto, como é típico de quem sai ileso de um atentado, “Não foi nada, vamos à missa”; por outro, sublinhando que a vida do chefe do Governo tinha sido posta em causa. O discurso do regime vive nesta sinuosidade. Dizer que estava tudo controlado, mas também que tinha sido grave. E por isso há a manifestação dos militares, promovida no Palácio de São Bento, a que todas as altas patentes vão, sendo que muitos eram recalcitrantes em relação ao regime. Isto para Salazar foi muito importante, porque ele estava a empreender, desde 1936, umas muito controversas reformas da instituição militar com o [ministro da Defesa] Santos Costa.

Reduziu 22% dos militares, mudou quase todos os generais, as tropas estavam muito insatisfeitas.
As chefias militares sentiram-se ameaçadas pelas reformas do poder civil. E aqui, não esqueçamos, estamos numa fase de pós-ditadura militar. O retorno aos quartéis, o sair da ribalta da acção política, é sempre doloroso para os militares. Salazar e o seu grupo dos colegas de Coimbra — Mário de Figueiredo, Mário Pais de Sousa, casado com uma irmã de Salazar, Manuel Rodrigues — são civis. É toda uma geração de civis que vem substituir os governos militares. Isto começa logo em 1928. Há ressentidos de vários lados. O atentado permitiu a Salazar fazer uma grande afirmação acclamatio, quase plebiscitária, dele como ditador. Numa questão de horas, percebeu que era muito importante capitalizar o atentado — e isso mostra as suas capacidades políticas.

Essa rapidez foi um instinto seu ou um conselho da máquina de propaganda?
Ele já tinha aquela aura, pelo menos desde os tempos em que era o “mago das finanças”. Quando sai do carro depois da explosão e diz “Vamos à missa”, com aquele ar fleumático e tranquilo, era essa a imagem e o mito que queria projectar.

Isso era ele.
Sim, isso era ele. Não estava a receber conselhos nenhuns. Estava com o Leal Marques, o seu chefe de gabinete. E se ler o diário do Leal Marques, publicado pela Fátima Patriarca [Análise Social, n.º. 178, 2006], vê que o regime não foi chegar, ver e vencer. Teve dificuldades, com riscos constantes de revoluções. Há coisas que são ele, outras que são movimentos espontâneos. Salazar não necessitou de apelar aos bispos para o apoiarem. Mas os oficiais em São Bento... Como é evidente, ele tinha consciência de que os militares iam organizar uma manifestação de repúdio pelo atentado. Mesmo a ida a casa dele, à noite, de uma série de gente, incluindo o Pedro Teotónio Pereira, muito alvoraçado e que se destacava na multidão, quando ele aparece junto à varanda, isso já são movimentos da Legião Portuguesa, que queria mostrar o seu domínio das ruas. Aqui já era o país salazarista a mexer.

Ficamos com a sensação de que os atentados à bomba eram diários. Lisboa, Porto, Lourinhã...
Pode ver o livro Lisboa Revolucionária, do Fernando Rosas [Tinta-da-China, 2007]. Não estou a dizer que Lisboa vivia em revolução, mas para mim foi impressionante ler o livro da Fátima Patriarca com o diário do Leal Marques, no qual se vê que em todas as entradas, todas as noites, há problemas: “Esta noite, consta que Caçadores 5 vai sair”, “Cavalaria 1 vai sair...”. Estamos a falar dos anos 1920/30. Era um regime em constante sobressalto, sob o espectro de um golpe de um general oposicionista republicano ou de outros extremos, da ala de Rolão Preto ou do integralismo. Dizer que Salazar conseguiu manter o poder porque mandava prender os oposicionistas é simplista. Os oposicionistas eram uma franja muito reduzida. O que se pode dizer é que ele instalou um sentimento de receio e de respeitinho na sociedade portuguesa — isso é a ditadura —, mas a par desse sentimento havia uma adesão por conformismo e sobrevivência das elites e das não-elites. Então um homem que ganha um emprego nas Alfândegas — o caso do pai de Marcelo Caetano, que nasceu aqui, na Travessa das Mónicas, membro das Conferências de São Vicente de Paulo — não vai aderir ao novo regime? São pessoas que tinham vivido aquelas grandes convulsões dos anos 1910 e de 1920. Sobretudo nos alvores, havia uma adesão ao regime de uma parcela significativa da população. Temos é de compreender porque é que havia essa adesão. Vemos a encenação da exposição do Mundo Português. Não havia nada igual. Já imaginou o que era ver aquilo naquela época? As pessoas vinham a Lisboa e diziam “Que império somos...!”. As pessoas estavam seduzidas por aquela mística colonialista, que aliás vem da I República. Não achavam que a ideia de que tínhamos um império era uma patranha. As pessoas acreditavam que tínhamos um império. As pessoas iam para Angola, vinham de Angola, tinham família e amigos nos confins de Angola, nesse aspecto aquilo era “nosso”, em termos emocionais e enquanto imaginário. “O meu cunhado agora está em Benguela e arranjou um emprego lá.” O meu sogro esteve dois anos na Índia e dois anos em Macau. O meu pai, que era engenheiro do Ministério do Ultramar, percorreu o império. Ele tinha a sensação de que aquilo era Portugal, independentemente do que pensava sobre o regime. O meu pai até tem ficha na PIDE, por umas actividadezinhas oposicionistas, assinava a Vértice e não acreditava no regime, mas movia-se num espaço que era a realidade indiscutida.

O taxista António Granja diz “Se não mata, faz barulho!”, mas o atentado fez muito mais do que barulho. Deu força ao regime e acabou com os anarquistas.
Sim. Há uma coisa da qual discordo de Emídio Santana. O golpe foi duplamente falhado, do ponto de vista operacional mas também político, porque o regime sai reforçado. Mas Emídio Santana procura dizer que não, porque a bomba abriu um conflito entre os ministérios da Justiça e do Interior. Procura fazer os salvados daquilo e arranjar uma janela de vitória, mas é muito difuso e hipotético. É possível que tenha havido atritos entre os dois ministérios, mas Salazar conseguiu que isso não fosse público e que as rivalidades das polícias e a trapalhada feita pela PVDE de Agostinho Lourenço não fossem expostas à opinião pública. É aliás notável como é que se permite fazer uma investigação que, naquilo que é possível descortinar, foi feita com as devidas garantias. O juiz Alves Monteiro inquiriu quem quis, sem constrangimentos, nem torturas. É interessante porque esta é a altura da “porrada” — e a “porrada” é muito selectiva socialmente. Nos homens do grupo do Alto do Pina, bate-se sem piedade. Mas eles não batiam em todos. Posso contar dezenas de histórias. O Manuel José Homem de Mello, quando é detido, é tratado por “Sr. Conde”. E ele diz: “Está a tratar-me por Sr. Conde...”, e o PIDE: “Então eu sou um pobre homem que veio das Beiras e arranjou aqui um emprego...”. O Abranches Ferrão era um oposicionista que vivia em frente da sede da PIDE em Lisboa, e por isso eles estavam sempre a vigiá-lo. Um dia ele atravessa a rua e vai lá convidar o Silva Pais [director da PIDE] para jantar. “Já que está sempre a ver...” As elites oposicionistas gozavam com a PIDE!

Sabiam que não lhes iam bater.
O marquês de Fronteira foi de Cadillac e casaco de peles quando foi chamado à PIDE. Quando entramos nos comunistas, é todo um mundo à parte, com torturas e prisões sem fim. Mas a oposição dos cafés da Baixa, relativamente inofensiva, tinha um tratamento diferente na polícia.

Porque é que o Governo de Salazar aceitou expor as fragilidades da investigação da PVDE, permitindo que fosse feito um inquérito?
Aparece um elefante numa loja de porcelanas que é o Baleizão do Passo. Os amigos dele estavam ressentidos com a nova direcção da PVDE, de Agostinho Lourenço e José Catela. Aqui há muitos aspectos difíceis de transmitir, que são os pessoais, o ódio e o ressentimento, mas que explicam as acções humanas. Ao ler os jornais, Baleizão do Passo nota que há coisas que não fazem sentido e que as notícias que a PVDE dá sobre a investigação têm contradições — e depois há sempre o mistério: será que foi ele que notou, será que alguém lhe deu informações reservadas? Não se sabe.

Pode ter sido António Maia Mendes, da Secção de Defesa Política e Social da PVDE? Ele tinha ficado ressentido por não ter liderado a investigação ao atentado.
Nunca se há-de saber. Pode ter sido num encontro fortuito na Avenida da Liberdade...

O que sabemos é que há um ex-PVDE que agora está na PSP, Baleizão do Passo, que lê os jornais, identifica contradições e começa a fazer uma investigação particular ao atentado contra Salazar.
E ao fazer uma investigação alternativa leva aquilo ao conhecimento das altas instâncias, ao subsecretário de Estado das Finanças [João Pinto da Costa Leite] Lumbrales, que era um jovem turco mas liderava a Legião Portuguesa, e era uma pessoa já com grande influência.

Porque é que ele não fez a denúncia ao seu chefe da PSP?
Ele diz que não queria envolver a sua corporação, mas é pouco credível. Basicamente, procurou proteger-se a si próprio, e se calhar tinha um contacto com Lumbrales, que era muito próximo de Salazar.

Quando faz a denúncia, Baleizão diz a Lumbrales que os homens que a PVDE prendera eram todos inocentes?
Não sabemos. É tudo especulativo. O que posso dizer, conhecendo outras investigações e também pelo que se sabe do perfil de Salazar, é que era impossível uma coisas destas desenrolar-se sem o conhecimento do chefe do Governo.

Para si não há qualquer dúvida?
Não tenho dúvidas. Salazar tinha conhecimento minucioso de tudo o que se passava em todo o lado, em todas as repartições, nos cafés, nas embaixadas. Ele ouvia muito, passava a vida ao telefone. Uma coisa destas, que punha em causa a credibilidade da sua polícia política, que punha em causa o ministério de Pais de Sousa, com quem tinha relações familiares, que podia ter aberto uma crise política grande ou exposto a PVDE ao ridículo — imagine o que era se se tivesse sabido que a investigação da PVDE foi um desastre! Sobretudo depois de ter havido um grande alarido nos jornais com notícias sobre a investigação gloriosa que a PVDE tinha feito!

Por isso não percebo porque é que Salazar permitiu o inquérito interno.
Porque Salazar também era um bocadinho a arte do possível. Era impossível não levar a cabo um inquérito.

O erro era demasiado flagrante?
Exacto. E até não sei se não lhe interessava também domesticar a PVDE.

É a tal sabedoria de Salazar?
Sim. O que ele não queria era que a opinião pública soubesse. Porque é que digo que Salazar tinha de saber? O atentado não tinha sido contra um governador civil de Bragança... O atentado tinha sido contra ele. E sendo contra ele, Salazar sabia tudo sobre a investigação de cima a baixo. Ele sabia tudo de tudo, das instalações do gás em Felgueiras a... Há cartas sobre o estado deplorável das instalações do instituto radiológico de Coimbra! Sabemos como era minucioso. Além disso, num contexto de aliança luso-britânica e de guerra civil espanhola, ele tinha de perceber se havia ramificações internacionais e interessava-lhe, para fins propagandísticos, dizer que o atentado era obra dos comunistas. Quando se fala da co-autoria, talvez estejamos a cair no erro que o regime praticou e alimentou — que é exaltar o papel dos comunistas. Não havia uma “Internacional Anarquista” a ponto de ser uma ameaça. A grande ameaça era a “Internacional Comunista”, Moscovo, o perigo vermelho, o bolchevismo. Interessava muito apresentar o atentado como uma obra de comunistas.

Não queria polémica, mas está a dizer que quem defende isso está a seguir a mesma linha de raciocínio do ditador.
Não, o que digo é que em relação a indivíduos que eram difusamente comunistas, o regime quis fazer deles comunistas. Não estou a falar do “Tavares do Talho”, que era mesmo do Comité Central. Mas mesmo o Comité Central daquele tempo não é o Comité Central actual da Soeiro Pereira Gomes.

Quantos membros tinha?
Era muito pequeno, uns três ou quatro.

Isso não favorece a tese de João Madeira? Se eram tão poucos não seria natural que Fernando Tavares falasse aos seus colegas do plano para matar Salazar?
O PCP estava no chão, o Bento Gonçalves estava preso no Tarrafal. À semelhança dos alvores do Estado Novo, também a história do PCP é uma história de crises e sobressaltos contínuos. O que torna notável a sua acção de persistência. Da mesma maneira que perguntamos como é que Salazar conseguiu sobreviver tantos anos, devemos perguntar como é que o PCP conseguiu acompanhar, e não perder, a hegemonia, em sucessivos momentos difíceis, e sendo sempre o alvo número um do regime. Eles viviam todos com cuidados, eram todos presos, o comité era uma entidade que se reunia de seis em seis meses, não tinha comunicações. Repare: o Francisco “Pável” está acantonado em casa. O regime tinha conseguido isso: decapitar a liderança.

Em relação a Baleizão do Passo, fiquei sem perceber se acredita que ele foi afastado da PSP por ter posto a PVDE em causa.
Não quero fazer afirmações peremptórias sobre uma realidade obscura, mas é estranho que as pessoas que estiveram na denúncia dos atropelos e das confusões criadas pela PVDE acabem por se afastar. Todos alegam razões pessoais ou de saúde, mas todos acabam por ser neutralizados.

Baleizão do Passo reforma-se da PSP aos 40 anos.
Exacto. Ele, aliás, tinha desde há muito problemas graves com Agostinho Lourenço. No final, num certo sentido, isto foi uma vitória de Agostinho Lourenço, porque ele manteve-se em funções na PVDE até praticamente à morte. Não se sabe em que estado ficou nas suas relações com Salazar, mas manteve-se. Não interessava ao regime expor que a “sua” PVDE tinha cometido um erro colossal daqueles, sobretudo numa investigação de um atentado contra o Presidente do Conselho.

Mas ao permitir a investigação, Salazar está a fazer com que, mais tarde ou mais cedo, o erro se torne público.
Calma: até 1996, quando apareceu o processo de investigação do juiz Alves Monteiro, divulgado num livro importante de Valdemar Cruz, não era uma coisa que se soubesse.

Não houve notícias sobre a detenção dos verdadeiros responsáveis pelo atentado?
Houve, mas nunca foi feito o link. Os outros, os homens do Alto do Pina, foram libertados pela porta dos fundos. Há notícia da prisão e condenação de Emídio Santana, mas a libertação dos presos do Alto do Pina não é notícia. E nenhum português se pergunta: “Então e os outros?” Dentro dos seus lares muitos terão feito essa interrogação, mas calaram-se. Estamos num regime ditatorial e opressivo. Por isso é que falo de passividade abúlica. Alguns presos do Alto do Pina morrem na prisão, quando vêem a luz do Sol não têm capacidade para dizer que foram injustiçados... Não podemos ver isto com os olhos de um Estado de direito. Eles não vão interpor acções contra o Estado.

O inquérito é muito atípico?
O inquérito é feito à acção da PVDE. Se calhar, mesmo hoje na democracia, isto não seria feito para ser tornado público. O facto é que Salazar não se inibe. Podia ter deixado os homens do Alto do Pina apodrecer na prisão. Apesar de tudo, a farsa não era levada ao extremo, não era maquiavélica ao ponto de não prenderem os verdadeiros autores para fazer vingar a tese oficial da PVDE. Foram presos e levados a julgamento, publicamente — até o Emídio Santana refere que nas audiências do julgamento, como era dia de Feira da Ladra, estava muita gente. Não houve segredo. Não foram julgados por um tribunal secreto numas masmorras da Lubyanka.

Propõe que é a revolta social, mais do que a revolta contra o regime político, que motiva o atentado contra Salazar. Como é que separa as duas? Não é o ovo e a galinha?
Não quero pôr a revolta social contra a revolta política, porque estava tudo mesclado. As pessoas, mesmo iletradas, tinham consciência das suas más condições de vida, as pessoas que viviam na “outra” Lisboa que não a da Baixa e do Chiado. Havia um pulsar latente que era de revolta contra um estado de coisas. Era político, mas era sobretudo social. As pessoas não precisavam de conhecer os princípios do comunismo, e não tinham lido Marx, para estarem revoltadas contra a miséria em que vivam. Quando há jovens que querem incendiar a Igreja de São Vicente ou rasgar cartazes da Acção Escolar Vanguarda, em pura explosão de raiva, é uma questão de latente conflito social. Tinha uma focalização política, mas não ideológica. Há várias Lisboas dentro de Lisboa. Há a Lisboa oriental, mas também Alcântara, das pessoas que viviam em furnas e naqueles bairros que dão episódios muito coloridos e picarescos...

... como o bombista José António Machado, que se esconde na cama da viúva da pensão onde vivia para escapar à polícia.
Essa Lisboa pulsava. Havia conformismo e necessidade de sobrevivência, mas também revolta. Era importante fazer a história deste povo, que era rebelde, rufia e malandro, e ao mesmo tempo conformista e obediente. A dissidência não era uma questão puramente ideológica. O que motivava António Granja e os taxistas era uma revolta contra um estado de coisas e não um pensamento ideológico estruturado. Eles tinham de matar “o” Salazar — matar “o gajo”. Quis pôr o artigo para destacar que era matar o homem. Quis pôr-me na pele dos anarquistas e usar o tom que eles usavam nas suas conversas. Já para não falar nas expressões vernáculas com que se dirigiam a Sua Excelência o Sr. Presidente do Conselho... e que perpassam aqui. Aliás, nota-se a rudeza da linguagem com que a polícia travava os presos, com palavrões e insultos. Por isso é que, quanto a mim, o inquérito do juiz Alves Monteiro é uma peça extraordinária, diria única. Ele transcreve aquilo que lhe foi dito, ipsis verbis, com um grau de fidedignidade notável.

Todos do grupo do Alto do Pina confessaram rapidamente um crime que não cometeram.
Sim, mesmo do grupo, esse mais politizado e com mais elaboração, do Emídio Santana, há uma altura em que o Granja se vira contra o próprio Emídio Santana. Os desgraçados do Alto do Pina não tinham integração nenhuma. Foram apanhados nuns entulhos, numas pedreiras...

Teriam morrido na prisão se Baleizão do Passo não tivesse descoberto os verdadeiros autores.
Provavelmente. Não gosto de heroicizar o Baleizão do Passo, porque se calhar fez o que fez por motivos de vingança pessoal, mais do que para salvar os homens erradamente presos. E é importante ver que o Emídio Santana poderia ter dito que não era autor do atentado e jogado com a tese oficial para salvar a pele, mas não o fez. Não quis que inocentes pagassem por actos que não tinham cometido. Por outro lado, o juiz Alves Monteiro não se deixa contaminar pelo ruído político-mediático e procura apurar a verdade.

Se Salazar tivesse morrido no atentado de 1937, o que teria acontecido ao regime?
O regime já estava tão centrado na personalidade que o salazarismo não teria possibilidades de sobreviver. É muito possível que houvesse uma reacção para um regresso a uma ditadura militar. A morte de Salazar não levaria à democratização. Muito mais provável do que abrir o regime, era haver um endurecimento ainda maior e surgir um regime mais perto do franquismo inicial. Como também é possível que começasse a haver uma luta fratricida entre civis e militares. A ideia de uma ditadura civilista já estava consolidada. A institucionalização do Estado Novo dá-se em 1933, com a nova Constituição. Em revanche e aproveitando o atentado, é possível que aparecesse um condottiere.