Há uma “confusão global” à volta das alergias alimentares e Inês quer acabar com isso
Inês Pádua, 26 anos, quer ajudar a perceber os perigos e as delicadezas das alergias alimentares. Para o seu doutoramento, criou um curso gratuito, para quem tem de as conhecer, ao qual se junta um site de "receitas sem alergias", para quem tem de viver com elas
Há pessoas com alergias alimentares graves que não pensam sequer em comer em restaurantes ou viajar: a simples abertura de uma lata de amendoins num avião em pleno ar poderia ser o suficiente para terem uma reacção alérgica. Tal como gostariam de dizer aos cozinheiros que não basta passar um pano numa faca anteriormente usada para cortar queijo e depois fatiar um pão para evitar a contaminação de um alimento, avisa Inês Pádua, doutoranda em Ciências do Consumo Alimentar em Nutrição, na Universidade do Porto (UP). “Mesmo não sendo o ideal, este tipo de situações talvez passe nos critérios sanitários dos estabelecimentos de restauração”, diz a nutricionista de 26 anos. Mas num doente com alergia alimentar ao leite e derivados "podem ter consequências muito graves ou até fatais".
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Há pessoas com alergias alimentares graves que não pensam sequer em comer em restaurantes ou viajar: a simples abertura de uma lata de amendoins num avião em pleno ar poderia ser o suficiente para terem uma reacção alérgica. Tal como gostariam de dizer aos cozinheiros que não basta passar um pano numa faca anteriormente usada para cortar queijo e depois fatiar um pão para evitar a contaminação de um alimento, avisa Inês Pádua, doutoranda em Ciências do Consumo Alimentar em Nutrição, na Universidade do Porto (UP). “Mesmo não sendo o ideal, este tipo de situações talvez passe nos critérios sanitários dos estabelecimentos de restauração”, diz a nutricionista de 26 anos. Mas num doente com alergia alimentar ao leite e derivados "podem ter consequências muito graves ou até fatais".
É esta “falta de informação enorme”, geradora de uma “confusão global” à volta de uma doença que tem vindo a aumentar em crianças e jovens portugueses, que Inês decidiu começar a combater, logo no segundo ano do curso de Nutrição, em 2013, na Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto (FCNAUP).
Agora, licenciatura terminada e doutoramento com fim marcado para este ano (e em parceria com a Faculdade de Medicina da UP), a investigadora do Porto prepara-se para apresentar a segunda edição de um dos projectos da sua investigação: um curso, online e gratuito, direccionado aos profissionais nas escolas e estabelecimentos de restauração — mas aberto a toda a gente —, sobre como agir perante alergias alimentares.
A próxima edição deverá ser lançada entre Fevereiro e Março de 2018, com o apoio da Reitoria da UP. O objectivo é "ter uma comunidade informada" e dinamizar a aprendizagem através de vídeos animados de cinco minutos, que serão lançados aos pares, todas as semanas, durante um mês. Na primeira edição, inscreveram-se 695 pessoas das quais 400 concluíram o curso, então disponível na plataforma de e-learning da UP, um resultado que Inês assinala como "muito positivo".
“Além de haver falta de conhecimento e interesse pela área, nós percebemos que as pessoas não tinham noção do risco envolvido, nem tampouco da quantidade que era necessária para haver uma reacção”, constata. No fórum que criaram aquando da primeira edição do curso livre saltava, muito frequentemente, a mesma dúvida: “Mas afinal a partir de que limite é que há uma reacção alérgica?”.
Inês diz que “não pode haver sequer um contacto vestigial”. Por exemplo: “Uma criança alérgica ao peixe cai na escola e faz um hematoma. Os professores vão à arca buscar o gelo e se o gelo estava em contacto com o peixe, quando a criança o põe, vai ter uma reacção”, avisa. “Isto é quase anedótico, não é?” Em muitas situações pode parecer, mas a nutricionista avisa que não é por isso que não se deve ter cuidados. Até porque a segunda maior questão prende-se com o que fazer em situações de emergência. “O tratamento passa por uma administração atempada de adrenalina, que é dada por via intramuscular, como uma injecção”, explica. E isto assusta “um bocadinho os professores”, ri-se, mesmo que o dispositivo esteja preparado para ser um auto-injector.
Nas escolas, "os professores mostram preocupação com contra-indicações”, ou seja, com o que pode acontecer caso não se trate, afinal, uma reacção. Inês fala ainda de uma “certa desvalorização” da doença que acontece quando se confundem as alergias (associadas a um risco de vida) com as intolerâncias ou, no caso das crianças, a falta de vontade de comer um certo alimento.
A verdadeira dor de cabeça é a adolescência
“Temos sempre muito medo em relação às crianças”, confessa, “mas eu atrevo-me a dizer que não é o nosso maior problema”. As maiores dificuldades começam quando elas crescem e se tornam mais autónomas sobre as suas escolhas alimentares — opções que são muitas vezes influenciadas pelas dos colegas. “Existe a questão da integração e aceitação, de terem vergonha e quererem fazer o que os outros fazem”, refere.
Há estudos que mostram que há o dobro de casos de bullying nestas crianças e jovens, diz a investigadora, acrescentando que a violência às vezes ultrapassa a “intimidação e a exclusão” e chega a “pôr em causa a integridade física, quando existe o contacto forçado com um alimento a que o outro é alérgico”.
“É todo um cenário para o qual as escolas não estavam preparadas. E os restaurantes também”, constata. Entre os dois, considerados ambientes prioritários devido ao "papel central da alimentação", a jovem diz que, no âmbito do projecto, “foi mais difícil chegar à restauração”. E é também às mesas destes estabelecimentos que “as doses de exposição são maiores e, por causa disso, as reacções que ocorrem são também mais graves”.
Até 2014, antes da entrada em vigor de um regulamento da União Europeia, que estava em período de ajuste desde 2011, era apenas obrigatório que as informações sobre alergénios constassem nos alimentos pré-embalados. Agora “a lei estende-se aos alimentos que se vendem avulso e aos menus” e, desde então, que, por exemplo, “no Reino Unido há funcionários de restaurantes a serem acusados de homicídios por negligência”, diz.
Inês não conhece casos como estes em Portugal, até porque acredita que os portugueses com alergias alimentares não frequentam restaurantes, ou com medo de uma listagem de ingredientes incompleta ou de contaminação cruzada, “propícia em cozinhas pequenas onde há muita agitação, partilha de bancadas e de utensílios”.
Nas crianças portuguesas, a investigadora destaca a prevalência de alergias a leite e ovo, enquanto na idade adulta o mais normal é ao peixe, marisco e frutos secos como a noz e o pinhão. Foi com estes alimentos em mente que o orientador de estágio da doutoranda, André Moreira, propôs um trabalho, que continua em desenvolvimento, aos alunos da unidade curricular de Imunologia, numa colaboração entre a FCNAUP e a FMUP: um site de “receitas sem alergias”. A proposta era que os estudantes desenvolvessem e compilassem “receitas adaptadas para crianças com alergias alimentares”, variadas, para serem apresentadas numa plataforma interactiva, que pode ser consultada pelo público em geral desde Maio último, com vídeos que mostram os vários passos a seguir.
Há receitas culinárias de brownies de alfarroba, bolachas alternativas às famosas Oreo, leite-creme sem ovos ou leite, chocolate ou pizza — todas com os ingredientes, restrições e avaliação nutricional (valor energético e macronutrientes) discriminados. Porque na "regra central da nutrição que defende o nem sempre nem nunca", as alergias alimentares não são excepção.