Os primos (afastados) de Dolly
Quando se anuncia uma descoberta científica marcante, uma das reações comuns de investigadores é educadamente referir condicionalismos, sublinhar (ainda e sempre) a importância da reprodutibilidade. O famoso “sim, mas...” que exaspera, tanto a comunicação social, como amigos e familiares.
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Quando se anuncia uma descoberta científica marcante, uma das reações comuns de investigadores é educadamente referir condicionalismos, sublinhar (ainda e sempre) a importância da reprodutibilidade. O famoso “sim, mas...” que exaspera, tanto a comunicação social, como amigos e familiares.
Nascida em 1996, uma única ovelha chamada Dolly “obrigou-me” a ensinar aos meus alunos o contrário daquilo que tinha aprendido. Ótimo! É essa a essência do processo científico, desde que assente em provas. Afinal o desenvolvimento não era uma seta temporal inevitável, seria possível reprogramar uma célula de um indivíduo adulto de modo a gerar um novo ser, geneticamente idêntico. Um clone. De notar que a comunidade científica só aceitou verdadeiramente esta possibilidade dois anos depois, com a clonagem de murganhos/ratinhos (Wakayama, 1998), a que se seguiram várias outras espécies. Um símbolo, mesmo a Dolly, só vale se deixar descendência.
Se no final do século XIX as experiências de partenogénese de Jacques Loeb geraram títulos como “Explicada a Imaculada Conceção”; no final do século XX a clonagem tornou-se tão prevalente (e polémica) que foi criada a expressão “transferência nuclear somática” de modo a tornear o estigma associado à palavra. Questões éticas relacionadas com a clonagem humana (apesar das óbvias diferenças físicas encontradas entre clones e “originais”), e o peso da gestão de espectativas foram pretexto para acessos debates. Só que, tal como os ensaios de Loeb, a transição para outras espécies não foi linear. As taxas de sucesso na clonagem são baixas, entre 10% e menos de 0,1%, dependendo das espécies. E, como o processo implica acesso a oócitos e gestação de substituição, ensaios em humanos ou primatas não humanos são um desafio, tanto ético como financeiro.
Não deixa de ser revelador que, no auge da polémica, a revista Science tenha publicado um artigo (Simerly, 2003) a sugerir que seria impossível clonar primatas, usando macacos Rhesus (Macaca mulatta). Ou seja: publicava-se o que investigadores NÃO conseguiram fazer, algo muito raro. Mas, 15 anos depois e usando outro modelo (Macaca fascicularis), o grupo de Qiang Sun relembra o quão arriscadas são este tipo de afirmações.
Mas (e lá vem o “mas“), os macacos Hua Hua e Zhong Zhong foram clonados a partir de células de um feto abortado, não de células adultas. As experiências equivalentes à Dolly (usando a abordagem de Wakayama), para além de vários abortos espontâneos, deram origem a duas crias que, nascidas de cesariana, sobreviveram três e 30 horas. Claramente este é um passo importante (e um progresso enorme em relação a 2003), mas não é (ainda) o macaco-Dolly. Estamos é mais perto. Mas de quê? Não necessariamente de clonar humanos ou primatas em riscos de extinção (outra discussão complexa), mas de perceber melhor o processo de reprogramação celular em primatas, e de tentar utilizá-lo em medicina regenerativa em paralelo com as, bem mais fáceis de obter, células pluripotentes induzidas. Sobretudo: estamos mais perto de discutir a próxima surpresa.