Heróis e vilões: as instrumentalizações da história da imigração portuguesa em França
Os supostamente “bem integrados” portugueses são usados como arma de arremesso para criticar os imigrantes e filhos de imigrantes provenientes de África.
Depois dos eventos ocorridos em Champigny-sur-Marne na passagem de ano de 2018 (dois polícias foram agredidos no rescaldo de uma festa organizada sem autorização), várias referências ao bairro de lata desta cidade, onde viveram milhares de portugueses nas décadas de 60 e 70, foram feitas em França. Estas evocações comparavam a imigração portuguesa e as imigrações mais recentes.
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Depois dos eventos ocorridos em Champigny-sur-Marne na passagem de ano de 2018 (dois polícias foram agredidos no rescaldo de uma festa organizada sem autorização), várias referências ao bairro de lata desta cidade, onde viveram milhares de portugueses nas décadas de 60 e 70, foram feitas em França. Estas evocações comparavam a imigração portuguesa e as imigrações mais recentes.
Esta comparação implícita tem um objetivo claro: estigmatizar os imigrantes e os filhos de imigrantes oriundos de África e do Médio-Oriente. Esta oposição não é nova. Nos anos 50, os imigrantes italianos já eram concebidos como os melhores imigrantes e a sua vinda favorecida pelas autoridades francesas para travar a chegada de argelinos que, na sequência da participação de milhares de soldados magrebinos durante a Segunda Guerra Mundial, podiam legalmente, sendo franceses, instalar-se na metrópole. Nos anos 60, quando a imigração de italianos se reduziu, os portugueses foram vistos como uma tábua de salvação. Foram apresentados como imigrantes exemplares, que se assimilariam rapidamente, ao contrário dos argelinos. Desde então, os supostamente “bem integrados” portugueses são usados como arma de arremesso para criticar os imigrantes e filhos de imigrantes provenientes de África. As dificuldades porque passam estes últimos (por exemplo, terem uma taxa de desemprego mais alta) não resultariam das discriminações que sofrem mas de uma suposta falta de vontade em “integrar-se”, à diferença dos portugueses e dos seus descendentes. Como a maioria das manipulações, esta instrumentalização alicerça-se sobre uma ponta de verdade e um oceano de desconhecimento e de esquecimento.
Os comentários que têm sido feitos pegam na questão pela parte mais miserabilista da história do “bidonville” de Champigny, querendo realçar o ascetismo dos portugueses, que sofreram sem nunca protestar. É certo que Champigny foi o maior bairro de lata dos anos 60 e as condições de vida dos seus habitantes foram muito difíceis. A história, porém, não fica por aqui. A partir de 1964, as autoridades francesas tentaram melhorar as condições de vida desta população. Os habitantes tiveram então acesso à eletricidade, fontanários foram instalados e o lixo passou a ser recolhido. Estes melhoramentos foram na mesma altura recusados aos trabalhadores argelinos que viviam em bairros de lata.
Afirmar, como foi feito, que não havia “relações de violência” em Champigny resulta de um profundo desconhecimento. Desde logo, estes amontoados de barracas constituíram uma inequívoca violência para parte da população que ali residia. Os bairros de lata eram espaços considerados indignos, numa sociedade que se pensava moderna e desenvolvida. Os seus habitantes eram assim muitas vezes vistos como inadaptados. Basta ler, nos arquivos, as queixas dos vizinhos deste bairro de lata. Eles apontavam a sujidade dos habitantes, o seu arcaísmo, a sua perigosidade e a sua constante falta de respeito pelas leis. Vários relatos recordam como as crianças portuguesas do bairro de lata foram postas de lado nas suas escolas.
Os habitantes dos bairros de lata viviam num medo constante, alimentado por parte dos proprietários das barracas onde residiam: medo de ser denunciado à PIDE, medo de ser expulso da barraca ou do próprio país. As autoridades francesas tiveram bastantes dificuldades em fazer desaparecer o bairro de lata. Quando começaram a destruir as barracas a polícia estava sempre presente, temendo distúrbios, porque grande parte dos habitantes recusava ser realojada arbitrariamente, longe do trabalho e dos seus familiares e conhecidos. No bairro de lata de Massy, por exemplo, os habitantes ocuparam durante algumas horas a câmara municipal para protestar.
A história dos bairros de lata onde viveram os portugueses é assim muito mais complexa do que aquilo que quiseram fazer crer os que foram buscar esta história para alimentar a sua cruzada xenófoba. Esta instrumentalização é perigosamente eficiente porque grande parte da população francesa desconhece esta história. O estereótipo de uma imigração portuguesa que não provocou “problemas” serve para construir a ideia de que as populações que chegam hoje a França criam dificuldades que não existiam no passado.
O esquecimento também existe em Portugal. Há várias décadas que se tornou corrente, tanto à esquerda como à direita, transformar os emigrantes em heróis dos tempos modernos. Os emigrantes dos anos 1960-1970 teriam continuado a grande epopeia lusa começada com os “Descobrimentos”. Apesar de terem passado pelos bairros de lata, os portugueses em França teriam sido os “melhores”, muitos deles tornando-se mesmo empresários de sucesso.
Esse discurso, onde se notam resquícios do lusotropicalismo, pretendendo acarinhar uma população que se sente muitas vezes esquecida pelas autoridades portuguesas, tem vários efeitos perversos. Por um lado, reproduz a visão idílica dos Grandes Descobrimentos, oculta a violência inerente à colonização e naturaliza os estereótipos essencialistas sobre um suposto “ser português”. Por outro lado, a apresentação dos emigrantes como self-made men que se tornaram ricos apesar das dificuldades transforma-os em modelos da vulgata neoliberal.
Esta heroificação oculta e torna quase inaudível a história da maioria dos emigrantes que fugiu a uma ditadura e a um país onde eles e os seus filhos estavam condenados à pobreza. Assim, o objetivo destes discursos é “desproletarizar”, como se houvesse alguma vergonha no facto de grande parte dos emigrantes não se terem tornados ricos e terem empregos pouco qualificados. Esta heroificação é útil para tapar uma realidade que muitos dirigentes portugueses não querem ainda aceitar. Porém, negar o que foi o percurso da maioria dos portugueses não é uma forma de os homenagear com sinceridade: apenas reforça a desqualificação social que sofrem há várias décadas em Portugal, sendo constantemente criticados pelas casas que constroem, os carros que guiam e pelos seus alegados “duvidosos” gostos culturais.
Esta heroificação, por fim, alimenta também o discurso da excecionalidade da imigração portuguesa utilizado em França por aqueles que querem transformar a Europa num bunker fechado aos imigrantes que fogem da miséria, das guerras e das ditaduras em África e no Médio Oriente.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico