Como saber quando os videojogos se tornam um vício

O vício dos videojogos poderá em breve ser classificado como um distúrbio pela Organização Mundial de Saúde. Mas há quem questione essa intenção. E diga que a OMS está a ver “patologias” em comportamentos que não o são.

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REUTERS/David McNew

Foi há cinco anos. “Olhei com raiva para o meu filho. Ele tinha menos de dois anos e estava assustado.” O instinto de gritar com o bebé persegue o programador norte-americano Scott Jenkins desde então. Foi nesse dia, aos 37 anos, e depois de mais de duas décadas a jogar videojogos, que percebeu que tinha um problema.

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Foi há cinco anos. “Olhei com raiva para o meu filho. Ele tinha menos de dois anos e estava assustado.” O instinto de gritar com o bebé persegue o programador norte-americano Scott Jenkins desde então. Foi nesse dia, aos 37 anos, e depois de mais de duas décadas a jogar videojogos, que percebeu que tinha um problema.

“Tinha os comportamentos típicos de qualquer viciado. Estava sempre a pensar em jogar, passava horas em frente ao ecrã e não dormia para continuar a jogar”, recorda Jenkins ao PÚBLICO. Faz parte de um pequeno grupo de pessoas com dificuldade em desligar o impulso de fugir da realidade através dos videojogos. É comum encontrá-lo no Olganon, um fórum online para falar sobre o problema e pedir ajuda. Jenkins diz que utilizava as madrugadas — o único tempo livre fora do emprego e das obrigações familiares — para competir durante horas a fio com outros jogadores em mundos de fantasia online. “Estava exausto. Ignorava os problemas no meu casamento, fazia mal o trabalho, respondia mal às pessoas. Mas o rasgo de fúria que senti por o meu filho ter acordado cedo de uma sesta e me interromper assustou-me. Era como se estivesse drogado. Não quero voltar a perder a noção dos limites assim.”

Há anos que a Organização Mundial de Saúde (OMS) está a recolher casos de indivíduos em todo o mundo na mesma situação: o objectivo é perceber se a secção de “distúrbios comportamentais” do manual da Classificação Estatística Internacional de Doenças deve incluir problemas com videojogos. Se a conclusão for positiva — e notícias nos media de todo o mundo têm dado conta de que será —, a alteração ocorrerá em Junho de 2018.

A OMS descreve o distúrbio como uma “falta de controlo crescente” ao longo de um período superior a 12 meses, em que se dá cada vez mais importância aos videojogos, apesar das consequências negativas. “Acontece quando o padrão de jogar é de tal intensidade que afecta a ocupação, actividades sociais, educacionais e familiares de alguém”, clarifica um porta-voz da OMS, Tarik Jasarevic, ao PÚBLICO. O fenómeno junta-se aos jogos da sorte — como a roleta ou o bingo — que já fazem parte da lista. “Há provas bem documentadas, e crescentes, da relevância destas duas condições em diferentes partes do mundo”, nota Jasarevic.

Em 2016, mais de cinco centenas dos fãs de videojogos inquiridos num estudo da Universidade de Oxford admitiram ter problemas a controlar o tempo passado a jogar. Os investigadores reuniram opiniões de 19 mil homens e mulheres do Reino Unido, EUA, Canadá e Alemanha. Entre 0,5% e 1% relataram mesmo sintomas de “grande aflição” na ausência da actividade.

Num outro estudo, citado pela OMS, 13,8% dos adultos inquiridos na Coreia do Sul admitiram ter problemas em largar jogos online.

Vergonha do diagnóstico

Quem se identifica com os sintomas vê o reconhecimento pela OMS como uma oportunidade de pedir ajuda profissional sem medo. “Tenho imensa vergonha de não conseguir deixar os videojogos. Só o meu irmão gémeo é que sabe”, admite ao PÚBLICO Jonathan Guerreiro, um lusodescendente de 23 anos que vive na Argentina. “Por cá, estar ‘viciado em videojogos’ é sinónimo de não querer avançar com a vida. É visto como uma decisão consciente, mas não é.”

É uma das razões para não procurar ajuda profissional. Quando tenta parar sozinho, tem ataques de ansiedade — “Não me consigo concentrar, fico nervoso, irritado” —, mas sentar-se em frente ao ecrã não lhe dá alívio. “Quanto mais tempo passo nos videojogos mais stressado fico por estar a evitar obrigações. Vou-me deitar exausto, a dizer que tenho de parar, mas quando acordo a vontade de jogar voltou.”

Para qualquer decisão — desde passar o fim-de-semana com os amigos a ir às compras — Guerreiro pensa no tempo de jogo de que tem de abdicar. Há várias estratégias para manter os utilizadores presos ao ecrã: as missões em aventuras de fantasia online são cada vez maiores (algumas incluem dezenas de passos e minidesafios que demoram semanas a completar) e, por vezes, se o utilizador se afasta durante uns dias — convocado por responsabilidades da vida real —, os progressos desaparecem e tem de começar de novo. É pior em jogos colectivos, nos quais os jogadores sentem o dever de ajudar a equipa.

Ainda assim, Guerreiro não vê os videojogos como o vilão. “Na adolescência, ajudaram-me a lidar com a depressão do meu irmão e o ambiente de tensão cá em casa. Deram-me amigos de todo o mundo”, diz o jovem. “Sempre joguei perto de três horas por dia, por vezes seis, no secundário.” Hoje, joga mais de dez seguidas.

Investigadores dividem-se

Há investigadores que recomendam cautela com o diagnóstico da OMS. “É importante reter que os videojogos não são os ‘demónios’, provocadores da dependência ou do comportamento de risco nesta actividade”, alerta a psicóloga Maria João Andrade, que gere a Grinding Mind, uma associação portuguesa que tem como objectivo promover uma relação saudável com videojogos. “Se não, em vez dos oito a 13% dos jogadores que sofrem desta perturbação, teríamos com certeza bem mais.”

A psicóloga descreve a actualização do manual da OMS como “um passo importante”, mas preocupa-se com a forma como o tema surge nos media. Um dos receios é que muitos pais se precipitem a autodiagnosticar os filhos, ou a equiparar o problema aos jogos de apostas. “Nesses há um pensamento irracional pela busca da sorte. É a ideia de que ao pressionar um botão se pode ganhar”, nota Maria João Andrade. “Nos videojogos, há outros comportamentos estimulados. É preciso perseverança, raciocínio lógico e desenvolver estratégias para ganhar.” Relembra que os casos problemáticos “são ainda uma minoria” e que há outras práticas normais a que algumas pessoas ficam presas — do sexo às compras, ao desporto. “São actividades que nos dão prazer e em que facilmente conseguimos criar um mecanismo de fuga ou compensação”, diz Maria João Andrade.

“Então, porquê isolar os videojogos?” A pergunta é feita por Chris Ferguson, um professor de Psicologia da Universidade de Stetson da Florida que tem criticado, publicamente, a decisão da OMS.

“Parte dos sintomas sugeridos [pela OMS para distinguir o vício dos videojogos] nem faz sentido. Concordar que ‘uso videojogos se me sinto stressado’ é algo completamente normal para um passatempo. Não é o mesmo que recorrer a substâncias como heroína ou álcool”, diz Ferguson ao PÚBLICO.

O investigador acusa a OMS de “estar a ver patologias em comportamentos normais” e de ser pressionada pelo “pânico moral e político que se gerou em torno dos videojogos, em particular nos países asiáticos”.

Ao PÚBLICO a OMS diz que “não existiu qualquer pressão por qualquer governo”. Ao mesmo tempo, a organização admite que tem constatado haver um “número crescente de actividades de prevenção e programas de tratamento em vários países”.

Em Portugal, o SICAD — Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências acaba de publicar, pela primeira vez, orientações sobre o tratamento a dar aos dependentes do jogo, sublinhando que devem ser tratados na rede pública como qualquer dependente de álcool ou de drogas ilícitas.

Na China e na Coreia do Sul, o uso excessivo de videojogos e da Internet é visto como um problema grave de saúde pública. Partes do Orçamento de Estado destinam-se a ajudar jovens — a cultura asiática põe uma grande pressão no sucesso escolar devido ao mercado de trabalho altamente competitivo (não há tempo a perder com compulsões com videojogos).

Também começam a surgir centros de reabilitação no Ocidente, em particular nos EUA, Alemanha e Reino Unido. Os tratamentos mais comuns variam entre uma combinação de fármacos, terapia familiar e terapia ao ar livre em ambientes rurais — muitos obrigam a uma total abstinência dos videojogos.

Abstinência é controversa

A psicóloga portuguesa tem dúvidas quanto ao método. “O modelo de abstinência total de videojogos para a vida do sujeito não é o ideal nem pertinente nestes casos”, diz Maria João Andrade. Corre-se o risco de ignorar alguns benefícios da actividade, como estimular a memória, o trabalho de equipa e aliviar a dor. Há vários estudos na área: em 2010, por exemplo, um grupo de cientistas norte-americanos apresentou provas de que os videojogos serviam para reduzir a ansiedade face à dor crónica, particularmente, em ambientes de realidade virtual. “O foco passa a estar no jogo, e não na dor ou no tratamento médico a que alguém vai ser submetido, enquanto a realidade virtual prende os outros sentidos”, nota o investigador Jeffrey Gold, da Universidade da Califórnia do Sul, no relatório.

Muitas vezes, utilizar os videojogos como um refúgio recorrente é apenas um sintoma de outro problema. Os psicólogos que falaram com o PÚBLICO receiam que tratá-los como a causa seja uma distracção face às causas reais.

“É preciso perceber a origem do problema”, frisa a psicóloga Maria João Andrade. “Analisar caso a caso o contexto em que o sujeito vive, as suas figuras de apoio, as suas motivações e acima de tudo trabalhar com a pessoa naquilo que a leva a desistir do grande jogo que é a vida para viver apenas o grande jogo do ecrã.”