Dos amendoins torrados com mel ao fecho de consulados
A Operação Fizz azedou as relações entre Portugal e Angola.
Quando o procurador Orlando Figueira trabalhava no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), entre 2008 e 2012, as relações entre Lisboa e Luanda na área da justiça atravessavam uma fase de lua-de-mel. Numa exposição que entregou há cerca de um mês aos juízes que o vão julgar a partir de hoje, o arguido conta as visitas de trabalho que os magistrados dos dois países faziam uns aos outros, com bailaricos e jantaradas pelo meio. “A enorme ligação entre as duas Procuradorias-Gerais da República era tal que cada vez que cada vez que o Procurador-Geral de Angola vinha cá trazia amendoins torrados com mel feitos pela sua mulher para as dras. Cândida Almeida e Francisca van Dunem”, recorda, numa alusão à então directora do DCIAP e à então procuradora-geral distrital de Lisboa, hoje ministra da Justiça.
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Quando o procurador Orlando Figueira trabalhava no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), entre 2008 e 2012, as relações entre Lisboa e Luanda na área da justiça atravessavam uma fase de lua-de-mel. Numa exposição que entregou há cerca de um mês aos juízes que o vão julgar a partir de hoje, o arguido conta as visitas de trabalho que os magistrados dos dois países faziam uns aos outros, com bailaricos e jantaradas pelo meio. “A enorme ligação entre as duas Procuradorias-Gerais da República era tal que cada vez que cada vez que o Procurador-Geral de Angola vinha cá trazia amendoins torrados com mel feitos pela sua mulher para as dras. Cândida Almeida e Francisca van Dunem”, recorda, numa alusão à então directora do DCIAP e à então procuradora-geral distrital de Lisboa, hoje ministra da Justiça.
Orlando Figueira conta também que em 2010 ambas integraram uma comitiva que foi a Angola a convite do homólogo do procurador-geral da República Pinto Monteiro, João Maria de Sousa. “No final dessa visita o Procurador-Geral da República (PGR) angolano ofereceu a cada um deles uma tela de um pintor africano”, relata ainda.
O facto de o procurador ter arquivado em quatro meses o inquérito em que o futuro vice-presidente de Angola era suspeito de lavagem de dinheiro só terá contribuído para cimentar este bom relacionamento. Mas denúncias de activistas angolanos anti-regime fazem surgir novos inquéritos em Portugal, e a certa altura é o próprio PGR de Angola que se vê sob a lupa do DCIAP, por causa de um depósito de 70 mil euros feito numa conta sua no Santander Totta por uma empresa offshore. É mais ou menos pela altura em que mudam os rostos dos principais protagonistas do Ministério Público em Portugal – Pinto Monteiro termina o seu mandato em Outubro de 2012, sendo substituído por Joana Marques Vidal, que por seu turno troca Cândida Almeida por Amadeu Guerra à frente do DCIAP – que as relações entre os dois países começam a azedar. É certo que o inquérito a João Maria de Sousa acaba arquivado, mas pelo meio o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, pede desculpas diplomáticas a Angola numa entrevista durante uma visita àquele país. No final de 2013, ao encerrar mais um processo em que são visados Manuel Vicente e outras figuras da elite angolana, outro magistrado do DCIAP deixa no despacho de arquivamento um comentário significativo: espera que a sua decisão contribua para “o desanuviar do clima de tensão diplomática” entre os dois países.
Por esta altura já Orlando Figueira tinha deixado a magistratura e passado para o BCP. Também tinha passado a frequentar reuniões da Opus Dei e a fazer retiros espirituais em Fátima. A 27 de Março de 2015, conta na mesma exposição ao tribunal, é avisado pelo banco de que as suas contas estão ser investigadas pelos antigos colegas, por suspeitas de branqueamento de capitais e fraude fiscal. Tinha havido uma denúncia anónima que resultaria, um ano mais tarde, na sua prisão preventiva. É também nesta altura, em Fevereiro de 2016, que se tornam públicas as primeiras suspeitas do Ministério Público de que o vice-presidente Manuel Vicente o teria corrompido.
Em declarações à agência Lusa, o governante angolano assegura ser completamente alheio à contratação do procurador do DCIAP para o banco de que é accionista a Sonangol, petrolífera que dirigiu antes de integrar a equipa de José Eduardo dos Santos. Ainda assim, mostra-se “totalmente disponível para o esclarecimento dos factos, de modo a pôr termo a qualquer tipo de suspeições”. Mas acaba por nunca vir a Lisboa para o fazer, nem mesmo depois de ser formalmente acusado pelo Ministério Público de corrupção activa e lavagem de dinheiro e falsificação de documentos.
É o suficiente para escassos dias depois, a 21 de Fevereiro de 2017, ser cancelada por iniciativa de Luanda uma visita de Francisca van Dunem àquele país. No Jornal de Angola sucedem-se inflamados artigos de opinião sobre a “instrumentalização da justiça portuguesa” e a “falta de vergonha” da comunicação social nacional, que divulgou a acusação.
A ser preparada há muito tempo, uma deslocação do primeiro-ministro António Costa a Angola acaba por também nunca acontecer. O governante socialista só haveria de se encontrar com o recém-eleito presidente angolano João Lourenço em Abidjan, numa cimeira no final de Novembro. Usa uma curiosa expressão que havia de ser glosada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: diz que “o único irritante” que existe nas relações de Portugal com Angola tem a ver com uma questão “da exclusiva responsabilidade” da justiça portuguesa.
A resposta chega com mais impacto do que estaria à espera quando desvalorizou as queixas de Luanda. No dia em que assinala os primeiros cem dias de mandato, no início deste mês, João Lourenço recebe a imprensa nos jardins Palácio Presidencial e não hesita em responder às perguntas que lhe são feitas sobre o tema. Classifica a atitude da justiça portuguesa como uma ofensa para o seu país e faz depender as relações entre os dois países do desfecho do caso.
"Nós não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro", declara. O que exige, tal como já tinham feito os advogados de Manuel Vicente, é que seja a justiça angolana, e não a portuguesa, a lidar com a questão. "Lamentavelmente, Portugal não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento”, sublinha.
Em Lisboa, o Governo prossegue a sua estratégia de desvalorização destas ameaças, com Santos Silva a qualificar como “excelente”o estado das relações diplomáticas. Mesmo depois de, neste fim-de-semana, se ter ficado a saber que entre as representações diplomáticas que Luanda tenciona encerrar mundo fora, para fazer poupanças, estão os consulados de Lisboa e de Faro.
O único que se tem mostrado preocupado é o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que visitou Angola em Setembro passado. Por isso, a sua reacção à avaliação feita pelo Governo soa a ironia: “O senhor ministro dos Negócios Estrangeiros já disse que as relações diplomáticas estão a correr em muito bom plano. Ele até utilizou a palavra excelentes".