As histórias de assédio nunca mais vão deixar de ser ouvidas

Jessica Bennett é a primeira editora de Género do New York Times. Chegou com o caso Weinstein e hoje pensa o MeToo todos os dias. Quer diversificar as vozes nas notícias, aplicar a "lente de género" à actualidade e sobretudo chegar às mulheres, às leitoras - afinal, elas "detêm um poder de consumo global que vale biliões de dólares".

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Duas semanas depois da eclosão do escândalo Harvey Weinstein, Jessica Bennett começava a trabalhar como a primeira editora de Género do New York Times (NYT), o jornal que começou a vaga noticiosa que gerou o movimento MeToo e recentrou o debate público nas questões sobre mulheres, poder e sexo. “Não há um dia de trabalho típico”, diz a jornalista de 36 anos sobre um cargo feito de muitas reuniões e muitas listas diárias de trabalhos relacionados com género em todo o jornal. 

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Duas semanas depois da eclosão do escândalo Harvey Weinstein, Jessica Bennett começava a trabalhar como a primeira editora de Género do New York Times (NYT), o jornal que começou a vaga noticiosa que gerou o movimento MeToo e recentrou o debate público nas questões sobre mulheres, poder e sexo. “Não há um dia de trabalho típico”, diz a jornalista de 36 anos sobre um cargo feito de muitas reuniões e muitas listas diárias de trabalhos relacionados com género em todo o jornal. 

O cargo coincide com um debate febril sobre trabalho, que migrou agora para “as zonas cinzentas entre o que é ou não uma relação consensual”, exemplifica a autora de Feminist Fight Club: A Survival Manual for a Sexist Workplace, mas também para a divisão entre feminismos e critérios noticiosos. No reputado jornal americano criou a newsletter The #MeToo Moment depois de ter trabalhado na Newsweek, onde foi uma das autoras da história que originou a série da Amazon The Good Girls Revolt sobre o sexismo na própria revista. Foi colunista da Time e no NYT assinou, entre outros trabalhos, um perfil sobre Monica Lewsinky e o feminismo. 

“O objectivo da nova iniciativa de género é relacionar-nos melhor com as leitoras de todo o mundo”, explica ao PÚBLICO por telefone da redacção. Ali, o seu lugar preferido é “a morgue”, um piso subterrâneo do jornal onde “os velhos arquivos vivem” - e onde não há rede de telemóvel.

O seu cargo significa intervir transversalmente no noticiário do NYT, ou dado o momento MeToo o foco é essencialmente esse?
Não sei se alguém teria conseguido prever quão perfeito foi este timing. Tem sido assédio sexual a toda a hora, pensar como o cobrir, novos ângulos, novas formas de fazer esta cobertura. 

Este é um cargo transversal aos vários departamentos, não lhe chamaria uma intervenção [no seu trabalho], e muito dele é pensar como podemos cobrir tudo o que noticiamos através de uma lente de género, dos negócios às relações internacionais, saúde e ciência. Não queremos recriar aquilo que muitas publicações tiveram nos anos 1950, incluindo o NYT - as páginas femininas. A ideia não é pôr os conteúdos para mulheres na sua própria página, é semeá-los em todas as secções e plataformas do NYT. 

Quais são os seus principais objectivos?
Durante muito tempo, os média têm sido criados e consumidos sobretudo por homens. O meu objectivo é relacionar-nos melhor com as leitoras em todo o mundo. Penso diariamente em como fazer isso. Se há ângulos que faltam na cobertura noticiosa, se há novos métodos de distribuição para o conteúdo que já produzimos, que tipo de histórias devíamos estar a fazer sobre identidade de género, sobre a intersecção de raça e classe... Essencialmente é pensar sobre as notícias, mas também em inovação.
 
E porquê agora - ou porque é que só agora o NYT criou o cargo que ocupa?
É algo que estava a ser pensado há muito tempo e a possibilidade foi criada antes da eleição [presidencial de 2016, mas] com o ciclo noticioso implacável deste ano provavelmente demorou mais do que teriam gostado. Acho que as empresas e todos os que tenham um imperativo negocial, juntando-se a isso o jornalismo, têm de se relacionar com as mulheres. Hoje em dia nenhuma empresa pode ser bem sucedida se não chegar às mulheres e há um reconhecimento generalizado de que as mulheres detêm um poder de consumo global que vale biliões de dólares. O NYT faz há muitos anos uma cobertura espantosa de questões de género e trazer alguém para pensar em novas formas de as distribuir é uma medida muito inteligente. Espero eu [risos].

O timing da sua chegada é o de um dos grandes debates do ano. Como é que acha que o tema “assédio” influiu na forma como as questões de género são tidas em conta na actualidade noticiosa?
Nunca vi nada como isto. Nunca houve um momento assim. Como jornalista sou sempre céptica quanto aos ciclos noticiosos, a certa altura parece haver alguma fadiga. Mas com o que está a acontecer com o MeToo, não há fadiga. Há sempre mais e isso é indicativo de quanto tanto tem estado enterrado sob a superfície ao longo de tanto, tanto tempo. Há o sentimento de que as mulheres estão fartas, de que falam em grupo, o que é incrivelmente poderoso. Há um efeito borbulhante, depois do longo silêncio das mulheres e agora que as comportas se abriram explodiu verdadeiramente. Não consigo falar disto sem usar más metáforas meteorológicas - tsunami, avalanche, ponta do icebergue... 

Mas teve um impacto na forma como os jornalistas pensam sobre género?
Colocou o tema como uma prioridade. Não se pode ir a uma reunião de redacção sem falar disto e isso inevitavelmente leva a outras questões sobre a forma como as dinâmicas de género se desenrolam em todas as notícias que cobrimos.

A proliferação de histórias espalhou-as por diferentes órgãos de informação. Terá também gerado novas formas de investigar e noticiar, tendo mais presentes os desequílibrios históricos de poder ou as formas de apurar a credibilidade das vítimas?  
Sim, acho que gerou novas formas, mas também sublinhou velhas formas [de fazer jornalismo]. O que tornou este momento tão poderoso no início de tudo foi que Jodi Kantor e Megan Toohey do NYT empregaram as mais tradicionais e centrais métodos do jornalismo para a sua história, com um trabalho de tal rigor, granjeando a confiança das suas fontes ao longo de muitos meses, sensíveis a que nunca tinham falado e que isso era muito assustador, corroborando a história de cada uma delas com várias pessoas, seguindo o rasto burocrático... Isso é jornalismo de velha guarda e este tem sido um momento espantoso para o jornalismo, porque sublinhou tudo o que ele representa tradicionalmente. 

As pessoas falavam sobre Harvey Weinstein há anos. Era um segredo aberto. Outros meios de comunicação escreveram sobre isso no passado, mas ver a atenção que a história obteve e o movimento que gerou teve tudo a ver com os mecanismos jornalísticos que a criaram. 

Acredita que não há fadiga nos leitores, mas com tantas histórias - e sobretudo diferentes critérios e rigor jornalísticos em campo -, preocupa-a o risco de entorpecer o público? 
É uma boa questão. A primeira história que saiu sobre Harvey Weinstein, seguida pelo artigo da New Yorker, era tão horrível e chocante que era quase inacreditável. Hoje já ouvimos histórias semelhantes e tantas outras que há uma possibilidade muito real de que haja alguma dormência. A nossa função é continuar a noticiar e a escrever sobre isto - este é um ciclo noticioso à Twitter, e se este último ano [em geral] foi um ciclo noticioso Twitter, só tentar manter-me a par estava a assoberbar-me tanto que lançámos a newsletter para ajudar a guiá-las. Espero que as pessoas não fiquem dormentes, temos de continuar a noticiar estas questões. Este é um exemplo das muitas formas como, durante muito tempo, as histórias das mulheres não estavam a ser ouvidas. 

Estes ciclos noticiosos, e de opinião, têm também um padrão, de uma indignação inicial ao apelo à moderação e depois uma rejeição - o “backlash”. Como vê o momento à luz da carta aberta de Catherine Deneuve que defende o direito à importunação e quando Margaret Atwood é acusada de ser “má feminista” por defender o devido processo legal contra um acusado de assédio?
Tem de haver espaço para diferentes perspectivas. Não acho que isso seja necessariamente mau, é bom ter estas conversas, é bom discordar, é aceitável estar desconfortável com o facto de que parece haver um único castigo para um espectro muito amplo de crimes - pensar assim não nos torna más feministas. Acho que aquilo em que toda a gente acredita é que é incrivelmente importante esta conversa estar a acontecer e que nunca vamos voltar para um lugar em que estas histórias não estão a ser ouvidas. 

Que desafios coloca esse debate aos jornalistas que estão, em simultâneo, a cobrir o tema?
Não sei se cria desafios jornalísticos, mas penso que nos desafia a todos a pensar nisto de uma forma matizada. O caso Harvey Weinstein é bastante claro: várias alegações de violação e clara agressão sexual, e encobrimento... A história sobre Aziz Ansari [divulgada na semana passada no site babe.net sobre um encontro entre o comediante e uma mulher de 23 anos que questiona a sua “dinâmica de poder” e diz ter enviado “pistas verbais e não-verbais” sobre não estar à vontade] é turva e as pessoas pensam nela de diferentes formas. Abriu uma conversa sobre rituais de corte antiquados, referências sexuais e na forma como pensamos em consentimento - e na forma como a ideia de consentimento varia geracionalmente.

Há uma geração de pessoas com 20 anos que saíram de escolas em que existem programas de treino obrigatórios sobre o consentimento. Eu e muitas outras mulheres nunca tivemos isso e há um gap de linguagem, talvez um gap educativo. É natural haver discordância. O debate é bom.

Alguns dos que acusam o #MeToo de ir longe demais também acusam os média de mau trabalho ou de explorar a situação. Como vê e como se resolve isso?
Francamente, empregando regras jornalísticas essenciais. Tem sido espantoso estar num sítio como o NYT onde o rigor com que se lida com estes casos é tão claro. Mas não parece haver um padrão para todo o sector sobre como se cobrem estes assuntos, e historicamente nunca os noticiámos tanto. Isso tem de ser uma conversa [no meio] - qual é a melhor forma de noticiar estas histórias, como é que os diferentes media estão a pensar nisso.

Isso também depende de os leitores terem ferramentas para distinguir os diferentes tipos de cobertura e seus critérios - entre casos sistémicos como os de Weinstein, Brett Ratner ou Kevin Spacey e outros que abrem uma discussão sobre má-conduta, por exemplo.
É uma questão problemática. Nós recebemos centenas de emails por dia com histórias, dicas ou sugestões de investigação.. Temos de tomar decisões sobre o que vamos investigar ou não. Não há fórmula perfeita e são conversas que temos a toda a hora. Acho que a transparência na forma como se faz reportagem é algo positivo e tentamos fazê-lo.

As questões de género não dizem só respeito às mulheres. No actual debate público, este movimento desviou um pouco o foco da sua transversalidade, no que toca aos temas LGBT, por exemplo - que outras questões de género prementes é que os jornais estão hoje a deixar de fora? 
Sim, as questões LGBT, as noções em mudança da masculinidade, pensar no [modelo] binário de género, na identidade de género e o facto de tantos jovens não se identificarem nesse binário, pensar em raça e classe são coisas que temos sempre de incluir na nossa cobertura. Não necessariamente [só] em histórias sobre esses tópicos, mas na inclusão dessas vozes e perspectivas nas histórias que já estamos a fazer. 

Um ano de presidência Trump: qual foi o seu grande contributo para as questões de género? Catalisar o activismo?
Trump galvanizou as mulheres de uma forma nunca vista. Da Marcha das Mulheres às denúncias de assédio e agressão sexual, sabendo que o Presidente foi acusado de tais coisas. Houve muita raiva, raiva sobre a eleição. Será interessante ver como esta história se desenvolverá, provavelmente muitas mulheres que apoiaram o Presidente Trump têm as suas próprias histórias MeToo. O seu principal contributo foi a galvanização. 

Espanta-a que ele não tenha sido tocado pelo movimento MeToo?
Acho que isso nos diz algo sobre a forma como as histórias das mulheres ainda têm de ser levadas a sério.