“Definir-me como compositor? Um polvo sabe que é um polvo?”
Considerado por muitos o maior compositor vivo, o austríaco Georg Friedrich Haas, autor de In Vain, que o Remix interpretou este sábado na Casa da Música, recusa o rótulo de compositor político e vê uma nova espiritualidade na sua música mais recente.
Compositor em residência da Casa da Música em 2018, o austríaco Georg Friedrich Haas, célebre pelas suas explorações da microtonalidade, pode bem ser, aos 64 anos, o maior compositor vivo. Pelo menos a sua peça In Vain (2000), interpretada ontem pelo Remix Ensemble, ficou em primeiro lugar, e com o dobro de votos da segunda classificada, num inquérito promovido pela revista italiana Classic Voice para apurar a mais bela obra musical composta no século XXI.
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Compositor em residência da Casa da Música em 2018, o austríaco Georg Friedrich Haas, célebre pelas suas explorações da microtonalidade, pode bem ser, aos 64 anos, o maior compositor vivo. Pelo menos a sua peça In Vain (2000), interpretada ontem pelo Remix Ensemble, ficou em primeiro lugar, e com o dobro de votos da segunda classificada, num inquérito promovido pela revista italiana Classic Voice para apurar a mais bela obra musical composta no século XXI.
Se Haas sempre se interessou pelo que se passa à sua volta e nunca se coibiu de manifestar publicamente as suas posições sobre assuntos extra-musicais – In Vain foi assumidamente inspirada pelo choque de ver a extrema-direita austríaca, então liderada por Jörg Haider, chegar ao governo do seu país –, a sua notoriedade fora dos circuitos melómanos cresceu consideravelmente quando o compositor decidiu falar livremente, em entrevistas a jornais de referência, como o New York Times ou o britânico The Times, da relação sado-masoquista que vive com a sua nova mulher, a americana Mollena William-Haas, informação que consta mesmo da sua página na Wikipédia de língua inglesa, onde se precisa que Haas é o “parceiro dominante”. Hoje radicado em Nova Iorque – ensina na Universidade de Columbia –, diz que o facto de ter decidido assumir a sua sexualidade o libertou de ter de usar a música para lidar com os seus fantasmas.
O PÚBLICO entrevistou-o na Casa da Música, à qual o compositor chegou sozinho, vestido com os mesmos informais jeans e camisola com que agradeceria na sexta-feira os aplausos a Dark Dreams e se revelou um cavalheiro de humor refinado e de uma delicadeza que só uma discreta malícia permite distinguir da timidez. Vinha determinado a livrar-se do estatuto de compositor político que se lhe colou à pele com peças como In Vain ou I Can’t Breathe – “não faço música política, faço música humana” – e a defender o seu modo de compor, mais preocupado em servir o ouvido humano do que em fornecer pasto para análises estruturais das partituras.
Quem são os seus mestres? A resposta pode variar, mas incluirá sempre Schubert. Outra fonte onde a sua música nunca deixa de ir beber é a poesia: a de Hölderlin, antes de mais, mas também, por exemplo, a de Fernando Pessoa, a cujo Livro do Desassossego foi buscar o título de uma obra de 1992.
Ao longo deste seu ano como compositor em residência, a Casa da Música apresenta oito obras suas. Participou na selecção? Quer comentá-la?
A escolha parece-me muito feliz, mas deveu-se predominantemente ao António Jorge Pacheco, e foi também dele a ideia, que me encantou, de associar as minhas obras para orquestra a peças de Bruckner. E ainda me satisfaz mais o facto de o primeiro concerto [na sexta-feira passada] incluir uma peça de Franz Schrecker, que é talvez o mais subestimado compositor do século XX.
A peça escolhida para abrir o programa foi Dark Dreams…
… Foi a primeira peça que compus depois de ter trocado a Europa pelos Estados Unidos e é uma obra que mostra os medos, mas também as esperanças, de um começo inteiramente novo. O programa abre com Dark Dreams e termina, em Dezembro, com a minha última obra para orquestra [Concerto para violino e orquestra], que ainda só foi apresentada em Tóquio. Os compositores acham sempre que a sua última obra é particularmente importante, mas no que respeita a esta peça acredito que vou manter essa convicção durante alguns anos. E tenho a sorte de poder contar com uma extraordinária solista, Miranda Cuckson. Esta é uma obra que coloca problemas de afinação muito complexos, e ela ultrapassará a função tradicional do intérprete, cabendo-lhe definir a altura dos sons que a orquestra terá de seguir.
Aquela que é talvez a sua obra mais conhecida, In Vain, [apresentada este sábado na Sala Suggia] tem a particularidade de ser parcialmente tocada às escuras. Foi composta em 2000, quando a extrema-direita austríaca participou pela primeira vez no Governo, e será agora apresentada, 18 anos depois, precisamente no momento em que o FPÖ [Partido da Liberdade] volta a integrar a coligação governativa. É um acaso significativo?
A peça não é directamente política. O tema da obra pode ser resumido assim: existe esta coisa contra a qual lutamos, e que derrotamos, e no fim do processo percebemos que a mesma coisa está aqui outra vez. São dois mundos que lutam um contra o outro: o primeiro é um espesso tecido cromático, construído nos doze tons tradicionais, e o mundo que o vem combater é feito dos intervalos consonantes da série de harmónicos. Combatem-se e interpenetram-se, até que temos a sensação de que o novo mundo se impôs definitivamente, mas depois vai acelerando, acelerando, e no final estamos outra vez no início. É verdade que a ideia foi inspirada em acontecimentos políticos, mas pode ser traduzida com pertinência para muitas outras dimensões da vida. Não faço música política, faço música humana.
A escuridão não deve, portanto, ser lida como uma metáfora política?
Certamente que não. Achei simplesmente que tinha de desligar a luz. Mas não posso dizer que soubesse porquê, e tive sempre alguma má consciência em relação a isso. Afinal, esta é uma peça iluminista, e logo aqui é que a luz tinha de ir abaixo [risos]? É uma contradição, eu sei, mas fi-lo porque intuí que tinha mesmo de ser assim. E então, muitos anos depois, em 2016, li numa crítica de jornal à minha ópera Koma, que também tem partes interpretadas às escuras, esta frase maravilhosa: “Esta é uma música que não pode ser interpretada por pessoas que só saibam dar ou receber ordens”. É que, na escuridão, cada um é devolvido a si próprio, mas há uma pessoa que fica totalmente desamparada nas trevas, que é o maestro – esta peça é o pesadelo de qualquer maestro: está ali à frente, ninguém o vê, e tem de conduzir a orquestra. Acho que In Vain é uma peça anti-autoritária.
E I Can’t Breathe, de 2015, que presta homenagem a Eric Garner, um negro morto pela polícia americana após ter sido detido na rua por suspeita de venda ilegal de cigarros, não é uma obra política?
Creio que a peça me saiu bastante bem enquanto música, mas como mensagem política já estou menos certo disso. Do ponto de vista formal, começa com uma melodia tradicional de 12 tons, mas depois os intervalos vão-se reduzindo cada vez mais, passando de meios-tons a terços de tom, quartos de tom, oitavos de tom e por aí adiante. Claro que a intenção foi simbolizar um estrangulamento [antes de morrer estrangulado, Garner ainda terá gritado 11 vezes “I can’t breathe”], mas reconheço que criar uma bela música a partir do que aconteceu é problemático. Fui atacado por alguns colegas, que me acusaram de estar a fazer dinheiro com aquilo, e até percebo a crítica. Mas não consigo discutir isto muito livremente, porque a minha mulher é negra, e o que se passa é que tenho medo, porque sei que o que se passou com Garner podia ter ocorrido com ela. É algo em que nunca teria acreditado antes de ir viver para os Estados Unidos. Deixe-me contar-lhe este episódio: um dia estávamos de férias no Colorado, num sítio lindíssimo, e saímos da auto-estrada para beber um café. Atrás de nós vinha um veículo da polícia, com agentes que também queriam tomar café, e vi a minha mulher ali sentada, a tremer e a dizer “espera, espera”, e só quando os polícias tomaram o seu café e se foram embora é que conseguiu abir a porta do carro. Em Nova Iorque, quando saio à noite, tenho medo de ser assaltado. A minha mulher tem medo da polícia.
Sugeriu numa entrevista que há uma relação directa entre o seu casamento com Mollena e a assunção da sua sexualidade e a música que vem compondo nos últimos anos…
Sem dúvida que há. Durante anos fiz música para lidar com os meus fantasmas, e agora já não preciso da música para isso e sou livre de a usar para outras coisas. Não é fácil verbalizar o que essas coisas sejam ao certo, mas têm que ver com amor, espiritualidade, e também com medo, mas o medo real que todos temos daquilo que poderemos vir a ter pela frente, e já não o pavor dos meus fantasmas. Esse fardo, o da minha história pessoal, já não o carrego.
A propósito de amor e espiritualidade, quer em In Vain, quer em várias outras peças, são frequentes as alusões a Friedrich Hölderlin. A poesia é uma fonte importante da sua obra?
Quase todos os meus títulos são citações de poetas, de Hölderlin, mas também, por exemplo, de Else Lasker-Schüler [uma importante poetisa alemã, de origem judia, ligada ao movimento expressionista], e até de Fernando Pessoa…
Em que obra é que refere Pessoa?
É uma peça em que se trata de um sonho: chama-se …Schatten… durch unausdenkliche Wälder [1992] e o título é uma citação da tradução alemã do Livro do Desassossego. [Retirada da passagem: “Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias”].
Há pouco explicou que optara instintivamente pela escuridão em In Vain, e já se tem assumido como um compositor emocional. Mas muitas das suas obras envolvem cálculos complexos. Emoção e construção racional são complementares?
Sem dúvida. Aí não pode haver equívocos. A construção tem a ver com a escrita – a série cromática, por exemplo, é um recurso que se usa na escrita –, mas um compositor, penso eu, tem de pensar directamente no som. Dou-lhe um exemplo do universo da pintura: Kandinski é muito emocional, mas as emoções não são atiradas para ali de qualquer maneira, decerto que pensou de modo lógico nas cores e nas formas, e no ritmo da forma. Do mesmo modo, eu procuro um pensamento no som, mas não um pensamento na escrita, e é isso que explica que as análises da minha música sejam tão escassas: num sentido tradicional, não há ali nada que se possa analisar. Em In Vain ainda se pode reconhecer esse movimento de reprise, um som que é criado, que desaparece e volta a reaparecer, e identificá-lo como um princípio formal, mas já seria difícil aplicar uma abordagem deste tipo a Dark Dreams.
Porquê?
Porque nessa peça há simplesmente acontecimentos que se vão desenvolvendo e sucedendo uns aos outros, até que, no final, chega um mundo novo muito cantabile, com toda a orquestra a “cantar”. Há cinquenta anos, um compositor ter-se-ia preocupado em garantir uma ligação estrutural entre essa melodia final e o início da peça, mas esse é precisamente o tipo de técnica que não me interessa, porque é uma coisa analisável na partitura, mas não audível. E não vejo, portanto, por que motivo deveria deixar que isso condicionasse a minha livre fantasia.
É austríaco, vive há alguns anos nos Estados Unidos, está agora no Porto, onde se espera que crie uma nova peça. Compõe facilmente em qualquer lugar?
Bem, ontem havia obras no hotel, ouvia-se o barulho dos martelos, e isso não foi indiferente, mas de um modo geral só preciso de dois ou três dias para encontrar o meu lugar e recomeçar a compor. Tento escrever todos os dias, e quando não consigo, não me sinto mesmo nada bem. Mas no Porto vai ser fácil. Já aqui tinha estado em 1993, como turista, e sempre gostei muito da cidade. Até compus uma obra para o Remix, que se chama precisamente Remix [2007], mas não pude vir à estreia.
Quem são os seus mestres?
No programa do concerto de sexta-feira [dia 19] estão dois dos meus mestres mais importantes, Schubert e Schrecker. Outros são Bruckner e Mahler. Não digo que me sinta propriamente confortável entre eles, na verdade sinto-me apavorado, porque todos eles são monstros da música. E há muitos outros compositores do passado que têm grande significado para mim. Se me perguntar quais, a resposta pode variar, mas o que posso garantir é que incluirá sempre Schubert. E depois temos Mozart, claro, que era inalcançável na sua capacidade de lidar com a linguagem musical, e Alban Berg e György Ligetti. E um compositor totalmente desconhecido que para mim é importantíssimo: Ivan Wyschnegradsky, um russo que compunha música para violino em quartos de tom. O avô tinha sido ministro das Finanças do czar e toda a família deixou a Rússia em 1917, mas ele começou por ficar porque era comunista: tinha tido uma experiência mística com a Revolução de Outubro.
E como se definiria a si próprio enquanto compositor?
Definir-me como compositor? Acha que um polvo sabe que é um polvo? Não é tarefa minha definir-me ou dizer o que é um compositor. A minha tarefa é compor e conseguir um lugar na sociedade que me permita fazê-lo.
Está a preparar uma nova obra, que a Casa da Música apresentará, em estreia mundial, em Novembro. Pode adiantar alguma coisa sobre esse trabalho?
Nunca falo de obras que não estejam prontas, mas talvez a justificação dessa atitude possa ter algum interesse. Quando componho, a minha intenção é pensar musicalmente, pensar em som, ritmo, forma. Mas no momento em que falasse sobre esse processo, já não estava a pensar só em música, e devo evitar isso a todo o custo. Há uma coisa, ainda assim, que posso adiantar: vai ser uma peça adequada às espantosas capacidades do Remix.