Querido, ainda não mudei a América mas já mudei a Casa Branca
Em apenas um ano, Donald Trump mudou a forma como se exerce o cargo mais poderoso do planeta. O mundo perdeu o respeito e o país perdeu o colo que amparava toda a gente após uma catástrofe.
Uma semana depois de Donald Trump ter chocado o mundo ao oferecer a Hillary Clinton um bilhete sem regresso para a terra onde os políticos vão quando têm de lamber as feridas, Barack Obama tentou acalmar os milhões de americanos que já viam as suas vidas a andar para trás com a ideia de um magnata descontrolado aos comandos da Casa Branca: "Este cargo tem o condão de nos acordar. Os aspectos das posições ou predisposições dele que não condizem com a realidade vão ser abalados muito rapidamente, porque a realidade tem o condão de se impor." Um ano depois, o mínimo que se pode dizer é que Obama pode ter muitas qualidades, mas sorte nas apostas não é uma delas.
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Uma semana depois de Donald Trump ter chocado o mundo ao oferecer a Hillary Clinton um bilhete sem regresso para a terra onde os políticos vão quando têm de lamber as feridas, Barack Obama tentou acalmar os milhões de americanos que já viam as suas vidas a andar para trás com a ideia de um magnata descontrolado aos comandos da Casa Branca: "Este cargo tem o condão de nos acordar. Os aspectos das posições ou predisposições dele que não condizem com a realidade vão ser abalados muito rapidamente, porque a realidade tem o condão de se impor." Um ano depois, o mínimo que se pode dizer é que Obama pode ter muitas qualidades, mas sorte nas apostas não é uma delas.
É verdade que esse discurso do anterior Presidente norte-americano, durante uma das últimas conferências de imprensa que daria na Casa Branca, soou mais a um alerta ao país do que a um voto de confiança na tradição e no peso da Presidência como forma de acertar o passo a um candidato que pense estar fora do sistema. Como um professor bonzinho e condescendente que se vê obrigado a censurar o comportamento de um aluno reguila, Obama atirou uma mão cheia de palavras com carga positiva para dentro da picadora de discursos e o que saiu do outro lado foi um acto de tortura verbal para que aquilo não fosse entendido como uma ofensa a Trump e aos seus apoiantes.
"É evidente que ele foi capaz de perceber as ansiedades e os entusiasmos dos seus eleitores de forma impressionante. Houve muitas pessoas que não perceberam o fenómeno Trump, mas a ligação que ele conseguiu estabelecer com os seus apoiantes resistiu a alguns acontecimentos que poderiam ter comprometido a corrida de outro candidato. E isso é algo muito poderoso."
Mais do que em qualquer decreto presidencial, nomeação para os tribunais ou legislação aprovada no Congresso, é nestas palavras de Obama que se deve procurar a grande mudança operada por Donald Trump num ano de Casa Branca.
Ainda não passou tempo suficiente para se perceber se a sociedade americana está realmente a mudar – e se qualquer mudança que esteja a ocorrer é mais uma reacção desesperada contra a era Obama ou algo mais profundo –, mas uma coisa já se pode dizer: em apenas um ano, Trump arrasou a ideia que o país e o mundo tinham de um Presidente dos EUA pelo menos desde a II Guerra Mundial.
"Pensem no dólar como conceito. O dinheiro em papel não tem qualquer valor intrínseco, apenas tem o valor que nós achamos que ele tem. Quando começamos a duvidar dele, esse valor diminui. O que Trump tem feito é desvalorizar a credibilidade do cargo e da palavra da América em todo o mundo", disse Jeffrey Engel, director do Centro de História dos Presidentes na Universidade Metodista do Sul, no Texas, citado pelo jornal Dallas Morning News.
E sim, quem vier depois de Trump pode aproveitar essa desvalorização para brilhar no país e aos olhos do mundo – em certo sentido, bastará a alguém dizer que nem sequer tem conta no Twitter para ser visto como o melhor Presidente norte-americano de sempre por uma grande parte da população, mas a questão é que o contrário também pode acontecer: "Não ficaremos tão chocados como antes se ele twittar ou se for ofensivo", sublinha Engel, referindo-se a quem quer que seja o sucessor ou a sucessora de Donald Trump.
Postura e palavrões
É comum recordar alguns episódios ou facetas da personalidade de outros Presidentes norte-americanos para se tentar relativizar o comportamento de Trump na Casa Branca, mas o que distingue o magnata é que ele parece concentrar em si os traços mais polémicos de todos os seus antecessores das últimas décadas.
Nixon disse cobras e lagartos dos jornalistas quando lhe começou a cheirar a impeachment, mas Trump quase não passa um dia sem acusar o jornalismo de desonestidade desde que anunciou a candidatura, e até promoveu os Fake News Awards; Reagan rapidamente tentou apresentar-se como Presidente de todos os americanos depois de ter sido eleito como populista, mas Trump parece ter prazer em hostilizar quem não pensa como ele; Bill Clinton foi apanhado num escândalo sexual e mentiu sobre isso, mas Trump gaba-se de ter as mulheres que quiser, mesmo que elas não queiram, e a sua relação com a verdade em várias áreas é questionada dia sim, dia sim; George W. Bush chegou a ser visto como o Presidente norte-americano menos inteligente e menos culto de sempre, mas Trump tem feito pouco para demonstrar que é, como ele próprio diz, um "génio estável".
No fundo, apesar de outros terem causado danos à imagem da Presidência dos EUA devido a falhas de carácter (Clinton), incompetência (Carter) ou até mesmo comportamentos criminosos (Nixon), nunca nenhum tinha posto em causa as normas do próprio desempenho da função do Presidente de forma tão clara, deliberada e insistente – Trump fá-lo ao excluir partes da população do ombro amigo onde podem chorar depois de uma tragédia; ao deixar claro que a América não pode ser um sonho para todos; ao enfraquecer a autoridade do sistema judicial quando responsabiliza por futuros ataques terroristas um juiz que suspende um decreto presidencial; ao martelar diariamente a ideia de que os jornais e canais de televisão mais lidos e mais vistos são apenas uma cambada de mentirosos que o querem prejudicar.
Exemplo: no dia 17 de Setembro de 2001, seis dias depois de terem morrido três mil pessoas nos mais mortíferos atentados terroristas na História dos EUA, executados por islamistas radicais, o então Presidente George W. Bush foi ao Centro Islâmico de Washington DC dizer que "a face do terror não é a verdadeira fé do Islão"; no dia 15 de Setembro do ano passado, pouco depois de um ataque à bomba no metro de Londres que fez 29 feridos, o Presidente Donald Trump disse que a proibição de entrada de cidadãos de países muçulmanos nos Estados Unidos "devia ser muito mais abrangente, dura e específica".
Presidência enfraquecida
"O Presidente Trump parece estar a enfraquecer a presidência ao agir de forma negligente e indiferente em relação às funções tradicionais da presidência. E eu preocupo-me com a possibilidade de o seu sucessor, em quatro ou em oito anos, herdar um cargo diminuído", disse William Inboden, professor na Lyndon B. Johnson School of Public Affairs, à NPR.
Analisadas uma a uma, de forma isolada, poucas atitudes do Presidente norte-americano são realmente inéditas na história da Casa Branca; e quando se aponta para uma qualquer declaração polémica como prova de que ele é mesmo diferente dos antecessores, para pior, os seus apoiantes encontram facilmente exemplos no passado para mostrarem que outros disseram ou fizeram o mesmo.
Por exemplo, quando Trump foi acusado de ter chamado ao Haiti e a El Salvador "países merdosos", na semana passada, os seus apoiantes recordaram um episódio protagonizado pelo Presidente Lyndon B. Johnson em 1965, numa conversa com o embaixador grego em Washington, Alexandros Matsas: “Que se f… o teu Parlamento e a tua Constituição. A América é um elefante. Chipre é uma mosca. A Grécia é uma mosca. Se estas duas moscas continuam a fazer cócegas ao elefante, podem acabar por levar com a tromba do elefante.”
Tentar definir a Administração Trump ao longo do seu primeiro ano tem sido uma tarefa muito complicada, em linha com um tempo político definido pela multidão de tweets que é disparada a cada segundo e que muitas vezes só serve para criar mais confusão sobre um assunto: é por isso que entre os críticos de Trump há quem ache que ele não tem ideologia alguma, e que esse é que é o problema; quem ache que ele é um supremacista branco, e que esse é que é o problema; quem ache que ele é um perigoso e maquiavélico autoritário, e que esse é que é o problema; e quem ache que ele é um pobre diabo que passa o tempo a comer e a ver televisão, e que esse é que é o problema.
Tudo espremido, o Presidente Trump ainda não conseguiu deixar a marca que ele e os seus apoiantes desejariam – muitas das suas promessas foram cumpridas através de frágeis decretos presidenciais, uns barrados nos tribunais, outros à espera que um futuro Presidente as desfaça; precisou de quase um ano para fazer mossa ao Obamacare, mesmo com uma maioria nas duas câmaras do Congresso, e sem ter conseguido desmantelar totalmente essa bandeira da Administração Obama; e a profunda reforma nos impostos que assinou em Dezembro era também uma velha exigência do establishment do Partido Republicano que ele e os seus apoiantes tanto criticam.
Enquanto se discute os tweets de Trump e a possibilidade de ele vir a ser o primeiro Presidente norte-americano efectivamente destituído de funções, a América perde de vista uma mudança que está a acontecer mesmo debaixo do seu nariz – o simples facto de Donald Trump ter sido eleito, e as consequências que isso poderá ter na escolha do perfil e do estilo de futuros candidatos, tanto do Partido Republicano como do Partido Democrata. Ou, como escreveu John Zogby, analista e especialista em sondagens, sobre o futuro da Administração Trump: "Tudo pode acontecer. E já aconteceu."