Os vinhos biodinâmicos são uma farsa? Não, mas...
As terras tratadas de forma biodinâmica ficam, de facto, mais saudáveis e os vinhos são mais puros. Podemos não entender o método na sua verdadeira essência, mas ele funciona, razão pela qual tem cada vez mais praticantes no mundo. A questão está em saber se não se alcançariam os mesmos resultados usando outros métodos.
No mundo do vinho português, há uma pessoa por quem sinto uma grande estima. Chama-se Fernando Paiva. Tem 74 anos, julgo eu, e é o produtor dos vinhos Quinta da Palmirinha, na região dos Vinhos Verdes.
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No mundo do vinho português, há uma pessoa por quem sinto uma grande estima. Chama-se Fernando Paiva. Tem 74 anos, julgo eu, e é o produtor dos vinhos Quinta da Palmirinha, na região dos Vinhos Verdes.
Fernando Paiva despertou para os vinhos apenas aos 56 anos, quando se reformou de professor (dava aulas de História e Português em Amarante, função que acumulou durante alguns anos com a direcção de um jornal regional). Tinha herdado dos pais cerca de 3,5 hectares de vinha, a maior parte em Bouça Chã (Felgueiras), onde fica a Quinta da Palmirinha (petit-nom da mãe), e uma pequena parcela em Amarante, e não sabia muito bem o que fazer com essa terra. Logo após a reforma, surgiu-lhe a possibilidade de realizar em Celorico de Basto uma formação com o especialista francês em biodinâmica Pierre Masson. Na altura, nem sequer conhecia a palavra biodinâmica, mas, durante essa semana de formação, Masson deu-lhe a conhecer um mundo novo, uma nova forma de encarar o cultivo da terra e a transformação dos alimentos. Fernando Paiva ficou convencido e até há dois anos, quando o entrevistei, era o único viticultor biodinâmico certificado do país.
Os seus vinhos, feitos só em inox, são muito frescos, puros e seivosos. Depois de se visitar a sua exploração em Bouça Chã, onde tem galinhas a debicar a terra, fica-se com vontade de seguir o mesmo caminho, porque se percebe que é um tipo de agricultura onde nós, humanos, estamos em relação directa com a terra, as plantas e os outros seres vivos que a povoam e que permite produzir produtos saudáveis e saborosos.
Mais do que uma técnica de cultivo amiga do ambiente, a agricultura biodinâmica é uma filosofia, um modo de estar e de nos relacionarmos com a natureza. Surgiu nos anos 20 do século passado, a partir de um ciclo de conferências de Rudolf Steiner, cientista e filósofo de origem austríaca que vivia preocupado com o declínio de vitalidade da natureza e a degradação da qualidade dos alimentos. O seu método tem uma forte componente espiritual e adequa o uso de certos preparados de origem animal, vegetal e mineral aos ciclos da lua e dos planetas
Se o levarmos à risca, é necessário ter fé e acreditar em algo que pode não fazer muito sentido. Há produtores que, mesmo não sendo muito religiosos, acreditam verdadeiramente no método (Fernando Paiva é um deles, embora não se possa considerar um radical); há outros que fazem biodinâmica só porque está na moda — esses não merecem grande respeito; e há outros, talvez a grande maioria, que fazem vinhos biodinâmicos porque olham à sua volta e constatam que a biodinâmica produz de facto bons resultados.
Não há como negar esta evidência: as terras tratadas de forma biodinâmica ficam, de facto, mais saudáveis e os vinhos são mais energéticos e puros. Podemos não entender o método na sua verdadeira essência, mas ele funciona, razão pela qual tem cada vez mais praticantes no mundo. A questão está em saber se não se alcançariam os mesmos resultados usando outros métodos. Só seguindo mesmo à letra os preceitos definidos por Steiner e desenvolvidos por outros é que se conseguem fazer vinhos puros, vivos e saborosos?
Se pensarmos bem, a agricultura que se praticava nas nossas aldeias noutros tempos não tinha a mesma estruturação filosófica e agronómica da biodinâmica, nem era tão refinada e excêntrica, mas tinha os mesmos objectivos e alcançava os mesmos resultados. Não se usavam os químicos de hoje, os animais eram parte integrante e decisiva das explorações agrícolas e respeitavam-se os ciclos da natureza. As pragas e as intempéries faziam parte da vida do agricultor. Uns anos eram melhores, outros piores. Havia uma comunhão perfeita entre seres humanos, animais e plantas. E era tudo mais saboroso.
Quando uma filosofia agrícola vira um negócio, é sempre de desconfiar. E a agricultura biodinâmica é hoje um negócio. A empresa alemã Demeter, que assegura a certificação, tornou-se proprietária da própria filosofia. Ninguém pode usar a expressão agricultura bodinâmica sem lhe pagar para isso. E os gurus da biodinâmica são hoje empresários que produzem e vendem tudo o que advogam para este tipo de agricultura.
Um dos pilares da biodinâmica é a sua dimensão holística: a exploração agrícola é vista como uma unidade ecológica que se alimenta a si própria. Os animais fertilizam as terras, as abelhas polinizam as plantas e as árvores, os futos alimentam os animais, as plantas, em forma de remédios, ajudam as videiras a ficar mais resistentes, etc, etc. Mas hoje o agricultor biodinâmico já não precisa de se preocupar em garantir este circulo virtuoso. Já pode comprar tudo fora da sua exploração. Há várias empresas e associações que fornecem toda a sorte de produtos biodinâmicos. Uma delas é a BioDynamie Services, empresa de um dos gurus desta filosofia, Pierre Masson, o tal que impressionou Fernando Paiva. Necessita do preparado 501 (o chifre-sílica, também conhecido como o preparado da luz, que actua “trazendo forças da periferia cósmica e intensificando a acção da luz solar”) ou de todos os outros preparados que vão desde o número 500 até ao 508? A empresa de Pierre Masson tem. Quer uma caixa toda catita para guardar os preparados? A BioDynamie Services fornece. Quer pulverizadores para aplicar tisanas e preparados, potes para dinamizar os preparados, tanques para guardar tisanas, plantas secas, óleos essenciais e misturas de sementes de estrume verde para usar no tratamento e na protecção das videiras? Pierre Masson e o filho vendem. Pretende calendários lunares, guias práticos de biodinâmicas, etc? É só enviar o cheque que os Masson mandam entregar em casa.
Onde está, afinal, o conceito de unidade ecológica? A bosta produzida na região da Provença e guardada num corno de um touro desta região, por exemplo, já serve para tratar uma terra em Felgueiras? As plantas e as sementes colhidas num qualquer recanto de França podem ser usadas em Foz Côa, como se o solo e o clima fossem iguais em todo o lado?
Cada um acredita no quer, até em gurus. Eu acredito nos agricultores de antigamente. Esses, pelo menos, não prometiam nada. E acredito religiosamente na agricultura que faziam. Com animais e estrume mas sem cornos enterrados, tisanas e outras coisas esotéricas.