Paul Bocuse (1926-2018): “Monsieur Paul era a França”
Genial, polémico, excessivo, machista, mediático, Paul Bocuse deixa o seu nome gravado para sempre na história da cozinha francesa. Morreu aos 91 anos.
Paul Bocuse teria gostado de ouvir os obituários que sobre ele foram escritos e as palavras que foram ditas após o anúncio da sua morte, sábado, aos 91 anos, na mesma localidade onde nasceu, em Collonges-au-Mont-d’Or, perto de Lyon.
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Paul Bocuse teria gostado de ouvir os obituários que sobre ele foram escritos e as palavras que foram ditas após o anúncio da sua morte, sábado, aos 91 anos, na mesma localidade onde nasceu, em Collonges-au-Mont-d’Or, perto de Lyon.
Todos os artigos recuperaram as expressões que, ao longo de décadas, vieram a definir aquele que é considerado um dos maiores chefs da cozinha francesa: “Papa da gastronomia”, “Leão de Lyon”, “Cozinheiro do século”, ou, simplesmente “Monsieur Paul”. Christophe Marguin, restaurador de Lyon, resumiu assim o que sentia: “Para mim, Deus morreu”. “Monsieur Paul era a França”, declarou o ministro francês do Interior, Gerard Collomb. “Simplicidade e generosidade. Excelência e arte de viver.”
Os franceses são, como se sabe, profundamente orgulhosos da sua cozinha e para muitos Paul Bocuse, que há mais de meio século mantinha as suas três estrelas Michelin no restaurante L’Auberge du Pont de Collonges (conquistou-as a terceira em 1965), era o expoente máximo desse orgulho.
Egocêntrico, por vezes excessivo, outras polémico, tornou-se famoso não apenas pelo seu talento como cozinheiro, mas também pela forma como geriu a sua carreira e se tornou mediático numa época em que isso não era tão habitual como hoje no universo da gastronomia.
Foi, na década de 70, um dos rostos principais da nouvelle cuisine – um termo usado pela primeira vez pela revista Gault & Millau, que viria a considerá-lo “Chef do Século” – embora mais tarde se definisse como “clássico” e sublinhasse que o seu trabalho nada tinha a ver com a imagem de pratos com pouca comida e outros estereótipos que ficaram ligados àquele movimento que revolucionou a cozinha francesa e mundial, dando uma nova atenção aos produtos frescos e reduzindo a presença excessiva de molhos e técnicas que marcara as gerações anteriores de cozinheiros, inspirados ainda pelos ensinamentos de Escoffier.
Muito antes de os chefs se tornarem marcas comerciais, Bocuse fê-lo “de uma forma que escandalizou os tradicionalistas”, recorda o The Washington Post. Acusado frequentemente de ser machista (era também polígamo, mantendo em simultâneo, para além do casamento com Raymonde Duvert, longas e assumidas relações com duas outras mulheres, Raymonde Carlut e Patricia Zizza), em 1976 disse à revista People que “as mulheres são boas cozinheiras, mas não boas chefs”.
No entanto, Bocuse era de uma cidade onde, em determinado momento da história, as mulheres dominavam o mundo da cozinha – eram as famosas “mães de Lyon”, e o jovem Paul formou-se com uma delas, Eugénie Brazier, La Mére Brazier, a primeira mulher a conquistar três estrelas Michelin. A sua grande referência, toda a vida, foi, contudo, um homem, que considerava o seu mestre: o chef Fernand Point, com quem trabalhou no restaurante Le Pyramide, em Vienne, a sul de Lyon.
Nasceu em 1926, numa família ligada à restauração e à hotelaria. Combateu na II Guerra Mundial, foi gravemente ferido e teve que levar uma transfusão de sangue num hospital militar norte-americano, o que o deixou com uma dívida de gratidão para com os Estados Unidos. Em 1956 voltou para, ao lado do pai, Georges, trabalhar no restaurante da família, onde em 58 conquistou a primeira estrela (a segunda surgiu em 62 e a terceira em 65). Em 1975, o então Presidente francês Valéry Giscard d’Estaing distinguiu-o com a Legião de Honra.
Nas décadas seguintes abriu mais de 20 restaurantes em vários pontos do mundo, entre os quais um, Les Chefs de France, no parque temático Epcot, na Florida, e outro na Disneylândia de Paris, inspirado no filme Ratatouille, o Bistrot Chez Rémy.
Criou também, em Lyon, em 1987, o concurso Bocuse d’Or, uma competição entre equipas de cozinheiros de todo o mundo que têm que apresentar elaboradas composições perante claques que as aplaudem como se estivessem num estádio de futebol. Em 90, inaugurou a escola Instituto Paul Bocuse, em Ecully.
Nos últimos anos, já sofrendo de problemas de saúde, não aparecia em público, embora continuasse a receber admiradores e amigos na sua casa. O seu filho Jerôme é o seu herdeiro no mundo da gastronomia, dirigindo o Bocuse d’Or e o restaurante de Epcot.
O nome de Paul Bocuse “resumia a gastronomia francesa na sua generosidade, respeito pelas tradições, mas também na sua inventividade”, disse o Presidente francês Emmanuel Macron, num comunicado divulgado sábado. “Os chefs choram nas suas cozinhas, no Eliseu e por toda a França.”