Para Bernardo Agrela, "pensar a comida é o mais fácil"
Na Cave 23 do Torel Palace, em Lisboa, um chef de 28 anos faz um fine-dining descontraído e divertido de quem andou pelo mundo, provou muita coisa e acredita que para criar um bom prato “basta saber como a nossa língua funciona”.
Quando ainda nem pensava sobre o que era ter uma identidade como cozinheiro, Bernardo Agrela foi parar a um Four Seasons no Japão para fazer um mês de cozinha portuguesa. Como tinha visto de turista e não podia receber, a forma de lhe pagarem foi darem-lhe um cartão prateado que, magicamente, “abria quase todas as portas”. Procura na carteira. “Ainda o tenho aqui.”
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Quando ainda nem pensava sobre o que era ter uma identidade como cozinheiro, Bernardo Agrela foi parar a um Four Seasons no Japão para fazer um mês de cozinha portuguesa. Como tinha visto de turista e não podia receber, a forma de lhe pagarem foi darem-lhe um cartão prateado que, magicamente, “abria quase todas as portas”. Procura na carteira. “Ainda o tenho aqui.”
“Passava-se o cartão numas máquinas, as portas abriam-se e eu andava por lá a passear.” Não percebia nada do que lhe diziam, mas mesmo assim acabou por ir parar ao restaurante japonês onde ficou uns tempos na estação da tempura. “Havia três tipos de tempura e eu aprendi os primeiros caracteres de cada um e assim conseguia acertar.”
As histórias de Bernardo sucedem-se, do liceu onde era constantemente assaltado, com a mesma idade em que começou a cozinhar “coisas muito básicas” para ele, e depois para os amigos, em casa (“Tinha baby-sitters mas não gostava do que elas cozinhavam”), até à Cave 23, no hotel Torel Palace, em Lisboa, onde hoje, com 28 anos, é o chef.
Pelo caminho passamos pela Escola de Hotelaria e Turismo de Santarém (onde entrou depois de ter falhado por pouco a do Estoril), o estágio com Nuno Mendes em Londres (trabalhou nos projectos Bacchus, The Loft e o Viajante, ao lado do amigo António Galapito, que abriu recentemente o Prado, também em Lisboa), a passagem pelo basco Martin Berasategui, porque “queria conhecer um três estrelas”, e depois Tóquio, Luxemburgo (onde trabalhou em tascas, casas de frango assado, cafés), Maldivas e Seychelles, antes do regresso a Portugal e da aventura do supper club Once Upon a Table, com André Freire.
E assim, “com 24 anos”, foi “parar a um resort de luxo numa ilha paradisíaca, com seis restaurantes”. “Tudo o que me aconteceu foi sem planear”, resume. “Gosto de viajar e conhecer sítios e é isso que tento trazer para a minha comida.” Contado assim, numa tarde de conversa, parece que, apesar de alguns contratempos e cabeçadas pelo caminho, o mágico cartão prateado continuou a ajudar Bernardo a abrir portas mesmo depois de ter deixado o Four Seasons de Tóquio.
No início, nem lhe passava pela cabeça definir um estilo próprio de cozinha. “Isso é uma preocupação que tenho agora”, diz, com uma gargalhada. “Naquela altura não tinha grande noção, era um bocado uma brincadeira, era divertido estar com os amigos, era um bocado naif. A minha preocupação era o que podia fazer para descascar camarões mais rápido.”
Mas estava atento, claro, e em Portugal, embora timidamente, as coisas mexiam-se. “Já admirava alguns cozinheiros, tinha ido ao Madrid Fusión, o Henrique Sá Pessoa estava a ganhar o concurso do Chefe Cozinheiro do Ano, há uma mudança de paradigma, entra a cozinha tecno-emocional, aparece a Paulina Mata [que criou o mestrado em Ciências Gastronómicas], há pessoas a falar de gastronomia na Internet. Quando se é um miúdo cozinheiro com Internet em casa tem-se acesso a tudo isso.”
Só que “tudo isso” ainda fica a uma grande distância de se ter uma linguagem própria. “Queria saber fazer esferificações e que saíssem perfeitinhas para não levar na cabeça.” Mas ia aprendendo, e não apenas técnicas. Com Nuno Mendes aprendeu a importância das relações entre as pessoas. “Uma cozinha de raiz francesa é muito mais dura, é feita para ser à pressão, e eu aprendi com o Nuno que podia ser ao contrário. Ele nunca gritou connosco por maiores disparates que fizéssemos.”
Hoje, à frente da sua própria brigada, sente que o maior desafio é esse, manter quem trabalha com ele satisfeito, perceber como é que uma equipa pode funcionar melhor, quais são as necessidades de cada um. Porque, de resto, “pensar comida é fácil”. “A técnica, aprendi muito cedo, como tornear uma batata sei desde os 15 anos, demorei foi outros dez a descobrir um sítio onde pudesse ter boas batatas para tornear e, depois de as ter, a perceber como é que torno isso um negócio viável, como é que evito o desperdício.”
A criatividade é a parte que nele surge naturalmente. “O stress nunca foi ter ideias. O Bruno Nogueira dizia ‘Eu sei a fórmula para fazer rir’, eu sei mais ou menos a fórmula para fazer com que um prato resulte. A nossa língua responde a provocações e só tenho que jogar com isso.” As viagens, sobretudo pela Ásia, ajudaram. “Já estive no bairro mais miserável de Kerala [Índia] a pensar ‘Isto com mais não sei o quê ia ficar inacreditável’. Por exemplo, batata-doce frita em óleo de coco, não tem nada de especial, mas a gordura do coco na batata-doce faz grandes chips. Básico. Porque é que ficam tão bem com açúcar, canela e sal? Basta perceber como é que a nossa língua funciona.”
O resultado é uma espécie de caleidoscópio de sabores e sensações, que apresenta nos seus menus (sempre surpresa, porque não são anunciados antes) na Cave 23, misturando influências várias, usando doce, salgado ou picante sem complicações, servindo corvina com molho de dobrada, se isso fizer sentido, um peixe em folha de bananeira mas recheado com chouriço ou tempura de choco com chutney de coentros e espuma de Bulhão Pato.
A sua criação mais famosa é a bola de Berlim com rabo de boi, cornichons e toffee sauce, que começou por ser com língua de vaca porque quando era pequeno a avó fazia, para ele e os primos, sandes de língua para levarem para a praia e depois dava-lhes dinheiro para comprarem uma bola de Berlim. Tem aquele lado de prazer proibido que deixa os adultos mais compostos a lamber os dedos e, provavelmente, a pensar se aquilo será mesmo permitido num fine-dining.
A questão é que o fine-dining está a mudar — e isso deve-se muito à atitude de chefs como Bernardo (que na Cave 23 conta com a presença preciosa do sommelier Thomas Domingues, com um trabalho que dá grande atenção aos vinhos naturais e aos pequenos produtores). Como é que se faz para descontrair o fine-dining? A geração anterior abriu as portas, reconhece Bernardo. “Prepararam o público para nós podermos fazer o que queremos.”
E o que eles querem é ser eles próprios. “Daqui a pouco vou fazer o serviço com estas meias”, diz, levantando as calças para mostrar as meias coloridas e diferentes em cada pé. “O que queremos é trazer as pessoas para o nosso lado, tentar criar um sentimento único em cada cliente.” Para isso não é preciso “que o guardanapo esteja precisamente a três dedos da borda da mesa” ou que o sommelier use luvas brancas. “Acho que as pessoas se iam sentir mais desconfortáveis se nós parecêssemos uma coisa que não somos.”
No Dia de Reis, Berardo e a equipa saíram da Cave e fizeram um jantar especial na sala de um palácio abandonado — a antiga sede da Protecção Civil que foi comprada pelo Torel Palace (fica ao lado) mas onde ainda não se iniciaram as obras e que tem uma das mais deslumbrantes vistas sobre Lisboa. Parece que o cartão prateado de Bernardo ainda não perdeu a magia e, tanto tempo depois de Tóquio, continua a abrir portas para mundos inesperados.