Privacidade para roubar?
Defender a nossa privacidade é essencial mas nem sempre evidente, como o prova este caso.
Todos estamos de acordo que a privacidade é, cada vez mais, um direito à sobrevivência, até porque bem sabemos que, cada dia que passa, somos mais vigiados, seguidos e controlados. Muitos destes registos somos nós mesmos que, muitas vezes, vamos permitindo e onde são guardados esses registos, quem tem acesso aos mesmos, hoje ou daqui a 20 anos, ninguém sabe ao certo. Defender a nossa privacidade é, assim, essencial mas nem sempre evidente.
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Todos estamos de acordo que a privacidade é, cada vez mais, um direito à sobrevivência, até porque bem sabemos que, cada dia que passa, somos mais vigiados, seguidos e controlados. Muitos destes registos somos nós mesmos que, muitas vezes, vamos permitindo e onde são guardados esses registos, quem tem acesso aos mesmos, hoje ou daqui a 20 anos, ninguém sabe ao certo. Defender a nossa privacidade é, assim, essencial mas nem sempre evidente.
Veja-se o caso López Ribalda e outros contra Espanha, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) decidiu no passado dia 9: num dos supermercados de uma pequena cadeia familiar, os roubos iam crescendo ao longo dos meses e o gerente decidiu recorrer à videovigilância. Colocou umas câmaras à entrada e saída da loja para vigiar os clientes e colocou outras no interior do estabelecimento, viradas paras as caixas registadoras que permitiam vigiar os empregados. Avisou os funcionários da colocação das câmaras destinadas a captar imagens dos clientes, mas nada disse quanto à existência das câmaras ocultas apontadas para os locais dos caixas. E a iniciativa foi rentável: em 15 dias, tinha captado imagens que comprovavam que cinco empregados eram os responsáveis pelo desaparecimento da mercadoria.
Chamados os trabalhadores ao escritório, na presença do advogado da empresa e do representante sindical, face às imagens, todos admitiram o seu envolvimento nos roubos. Três deles assinaram mesmo um acordo de rescisão do contrato de trabalho a troco de a entidade patronal não apresentar queixa criminal. Os outros dois não assinaram e foram despedidos.
Recorreram todos aos tribunais, desde a primeira instância ao Constitucional, os dois últimos alegando que tinham sido despedidos sem justa causa, já que as imagens tinham sido captadas sem o seu conhecimento em violação da sua privacidade e do seu direito à imagem, e os outros três que tinham assinado o acordo alegando que o mesmo não era válido porque tinha sido assinado sob coacção.
Mas não tiveram nenhuma sorte: para os tribunais, embora reconhecendo que a empresa devia, nos termos da lei, ter-lhes comunicado a colocação das câmaras ocultas, nem por isso o despedimento deixava de estar justificado. Para além de haver outros elementos de prova como o depoimento de um outro trabalhador, consideraram os tribunais espanhóis que o volume dos roubos ao longo dos meses justificava a colocação das câmaras em causa, devendo a privacidade dos trabalhadores recuar face ao direito de propriedade da entidade patronal.
Queixaram-se então os cinco trabalhadores espanhóis ao TEDH, alegando que com a captação das imagens em causa tinha sido violado o seu direito ao respeito da vida privada e que, com o uso das mesmas nos processos judiciais que tinham considerado justificados os seus despedimentos, tinha sido violado o seu direito a um julgamento equitativo.
No que respeita à violação do direito a um julgamento equitativo, o TEDH analisou se a utilização de tais imagens impedira que o julgamento fosse equitativo: tendo em conta que os trabalhadores puderam impugnar o teor e fidelidade das imagens e que havia mais elementos de prova, tais como o depoimento de um outro trabalhador, do gerente da loja e do representante sindical igualmente relevantes para a decisão final, concluiu o TEDH, por unanimidade, que não tinha sido violado o direito em causa.
Já quanto ao direito ao respeito da vida privada, por oito votos contra um, o TEDH entendeu que o Estado espanhol o tinha violado e condenou-o a indemnizar cada um dos trabalhadores em 4000 euros a título de danos morais. A necessidade de combater os roubos, cuja importância o TEDH aceitava, não justificava, no entanto, a introdução de câmaras apontadas para o local de trabalho onde os empregados tinham de permanecer, com a captação das respectivas imagens e posterior visionamento por terceiros, sem comunicação prévia da sua existência. É certo que não fora o Estado espanhol a colocar as câmaras ocultas, mas ao consentir, na prática, a sua colocação e utilização, violara a sua obrigação de garantir, de forma efectiva, o respeito da vida privada dos seus cidadãos. Para o TEDH, estando em causa direitos fundamentais, os fins não justificam os meios.