Há um pequeno Nixon dentro de nós
Num país onde tudo é segredo, a história dos Pentagon Papers, agora contada em The Post, de Steven Spielberg, parece outro mundo. Mas o que o Washington Post fez mantém-se actual e universal: combater a ideia de que a autoridade para decidir o que os cidadãos podem saber pertence apenas ao governo.
É no capítulo sobre os Pentagon Papers que, na sua autobiografia, Katharine Graham, herdeira e gestora do Washington Post nos anos em que o jornal se tornou uma referência internacional, escreve que os rulers e os reporters são “antagonistas naturais”. A relação entre os dois é, por isso, “tensa” e de “combate diário”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É no capítulo sobre os Pentagon Papers que, na sua autobiografia, Katharine Graham, herdeira e gestora do Washington Post nos anos em que o jornal se tornou uma referência internacional, escreve que os rulers e os reporters são “antagonistas naturais”. A relação entre os dois é, por isso, “tensa” e de “combate diário”.
Isto é óbvio para muitos jornalistas, mas não para muitos donos de jornais e, menos ainda, para muitos políticos. Em Portugal, que tem apenas 44 anos de democracia — menos do que os 48 anos do Estado Novo — ainda é difícil aceitar que esta tensão não é um problema. Se os jornais não forem incómodos, tornam-se Diários da República. Não é por acaso que desde 2017 o Post publica no cabeçalho a frase “A democracia morre na escuridão”.
A sociedade portuguesa tem uma relação pouco saudável com a informação e convive mal com a liberdade de expressão. Não temos estratégias de divulgação de informação, nem regras nem procedimentos, nem standards nem critérios comuns. Este é um problema que percorre as instituições, públicas ou privadas, do porteiro ao presidente. O efeito é evidente: perpetua uma sociedade onde tudo é segredo.
Começa pelo excesso de classificação dos documentos oficiais e acaba na persistente, repetida e diária prática de não responder às perguntas dos jornalistas. Sabemos que vem de trás. Ao ler cartas e telegramas dos anos 1960 e 1970 no Arquivo Histórico Diplomático, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e no Arquivo Oliveira Salazar, na Torre do Tombo, percebe-se rapidamente a leveza com que, durante a ditadura, se carimbava “muito secreto” por tudo e por nada. O problema é que essa concepção autoritária e não-democrática está viva. Persiste uma relação de paranóia em relação à informação e aos jornalistas, que junta iliteracia democrática, mania da perseguição e sentimentos pessoais.
Exagerando um pouco, quem tem poder em Portugal tem um pequeno Richard Nixon dentro de si. Podemos pensar em José Sócrates, que caiu em desgraça, ou em Rui Rio, que acaba de subir à ribalta. Foi o próximo líder do PSD quem processou, por difamação, o ensaísta e crítico do PÚBLICO Augusto M. Seabra, que em 2003, no artigo de opinião Os dias da Casa (I), usou sobre ele um adjectivo duro (e que em 2007 perdeu no Tribunal da Relação do Porto). Um bom jornal é um jornal que incomoda. Como dizia o histórico director do Washington Post, Ben Bradlee, “we are not here to be loved”.
Podemos desvalorizar tudo isto, dizer que é incomparável ou pensar que em Portugal os segredos têm a escala do país e que a qualidade média do jornalismo não difere da dos políticos. Mas isso é tapar o sol com a peneira. Quando digo que tudo é segredo, é mesmo tudo.
Nós, jornalistas, alimentamos dois mitos sobre as instituições. O mito do “grandioso plano para esconder a verdade” (acreditamos que as instituições dedicam o seu tempo, energia e trabalho a esconder segredos, quando muitas vezes a informação não é divulgada apenas porque não há uma cultura de divulgação nem ferramentas claras e definidas) e o mito do “tudo é público” (pensamos que as instituições não podem ter segredos). Não estou a falar disso.
Estou a falar de um país onde a lista das empresas que integraram a delegação oficial do primeiro-ministro António Costa na visita à Índia, em Janeiro do ano passado, foi considerada um segredo. Não estou a brincar. Recebi essa resposta duas vezes de organismos públicos. Este exemplo sem importância — e rapidamente ultrapassado, uma vez que os empresários não ficaram fechados nos hotéis indianos — serve apenas o propósito de sublinhar a ausência de uma cultura de transparência na administração pública, que encara o escrutínio ou a crítica jornalística como uma agressão. “Estão sempre do contra”, “só dão notícias negativas”, “andam à procura do que corre mal” são frases que dominam esta conversa. Há jornalismo mau? Sim. Há erros graves? Sim. Mas essa não pode ser a justificação para não jogar o jogo democrático. Até porque há jornalismo bom e os erros graves são a excepção. O que o Washington Post quis combater, escreve Graham na sua autobiografia Personal History (Knopf, 1997), que ganhou um Pulitzer, “foi a ideia de que a autoridade para decidir o que os americanos podem saber pertence exclusivamente ao governo — isso e a ideia de que, como dizia o Ben Bradlee, ‘quando os media são o alvo, a vítima são os cidadãos’”.
O filme The Post, de Steven Spielberg (Meryl Streep faz de Katharine Graham e Tom Hanks de Ben Bradlee), que estreia quinta-feira (25 de Janeiro) em Portugal, está longe de ser o melhor Spielberg, mas só a pedagogia e o timing de rever esta velha história na era Trump justificam ir vê-lo. No seu livro, Graham diz que o escândalo dos Pentagon Papers “começou e acabou em duas semanas e meia” e “pode não ter sido o caso incrível que nós achámos que seria” (ocupa aliás apenas 15 das mais de 600 páginas do livro), “mas abriu caminho para certas tendências” e “provocou ondas de choque com efeitos duradouros”. Foi, resume a antiga dona do Post, a cerimónia de graduation, a passagem à maturidade e o ponto de viragem que fez com que deixasse de ser um diário regional e subisse ao pódio onde o New York Times já estava, além de ter preparado a redacção para o que aí vinha — o Watergate.
No livro, Graham recupera o artigo de opinião que Erwin Griswold publicou no Post em 1989 com o título Secrets Not Worth Keeping — e só por isso vale a leitura. Em 1971, Griswold era o procurador-geral dos EUA e foi ele quem defendeu a Administração Nixon, no Supremo Tribunal, para tentar impedir o Washington Post de publicar os Pentagon Papers, classificados como “muito secretos”. O que tinha Griswold para dizer 18 anos depois? Que há “um excesso de classificação em todo o sistema” e que “o principal objectivo de quem classifica documentos não é proteger a segurança nacional, mas evitar o embaraço do governo. Raramente a publicação de factos referentes a decisões do passado, e até mesmo do passado muito recente, representa um risco para a segurança nacional. Esta é a lição a tirar da experiência dos Pentagon Papers”. Já agora, só uma minúscula parte dos 47 volumes em causa — as 3000 páginas de relatórios e 4400 de anexos que contam a história do envolvimento dos EUA na Indochina desde a II Guerra Mundial à guerra do Vietname — era realmente secreta (ou seja, representava um perigo para a segurança nacional) e essa nunca foi entregue aos jornalistas. Daniel Ellsberg, a fonte, nunca os deu a ninguém.
Em Portugal, a cegueira não se limita a quem tem poder. No fundo, todos temos um pequeno Nixon dentro de nós. Sabemos que temos de o dominar ou, pelo menos, impedir que saia da lamparina. Mas basta ver os últimos dez anos (2007-2016) de processos de difamação (12.090 arguidos, 7750 julgamentos em primeira instância e 2651 condenações) para perceber como somos um país de flores de estufa. Há uns dias, o editor da Gradiva não gostou de um texto de opinião e escreveu neste jornal que eu o queria "linchar". Uma pessoa lê duas vezes e não acredita.
Segredos de Estado são uma coisa (protege-nos do terrorismo) e difamação é outra (protege a honra). Mas a interpretação antiquada e paroquial que fazemos de ambos tem uma raiz comum — a difícil convivência que Portugal ainda tem com a liberdade de expressão.