Um Presidente impensável para a nação indispensável

Um ano a mentir, a insultar, a menorizar o papel liderante dos EUA, a desfazer alianças fundamentais, a posicionar a América como “estado pária”, a comportar-se como um miúdo de oito anos. Isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos

"Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, Trump não sabe o que fazer como Presidente dos EUA". Frei Bento Domingues

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"Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, Trump não sabe o que fazer como Presidente dos EUA". Frei Bento Domingues

"Não estou pronto para renegociar, mas estou pronto para lhe dar as boas-vindas se ele decidir regressar". Emmanuel Macron, sobre a decisão de Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris

“Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”. Sêneca

“Donald Trump é embaraçoso”. Chuck Hagel, ex-senador republicano do Nebraska, Secretário da Defesa no segundo mandato de Obama.

“Confusão é controlo”. Mark Felt, o “garganta funda”, para Bob Woodward, passagem do filme “The Man Who Brought Down the White House”.

Donald Trump continua a ser um Presidente muitíssimo impopular. Mas chega ao primeiro ano de presidência com uma taxa de aprovação três pontos acima dos mínimos atingidos no outono. 

A recuperação dos últimos meses estará relacionada com os bons índices económicos do final de 2017 nos EUA e possivelmente também com a aprovação da Reforma Fiscal. 

O 45.º Presidente dos EUA ainda é "o mais impopular de sempre em primeiro ano de mandato", mas há que registar uma subida nos valores de aprovação que o colocam já a par das piores fases de Barack Obama (pelos 38/40%). Tendo em conta o comportamento inaceitável de Donald, é perturbador ver como isso não se reflete assim tanto no seu desempenho junto de quem realmente tem o poder de o reeleger ou despedir: o povo americano. As coisas são como são. 

A maior ameaça: Robert Mueller

A teia da Comissão Mueller estará já muito perto de chegar ao Presidente. A equipa de Robert Mueller -- o investigador especial que dirige o caso “Russia Collusion – estará em negociações com os advogados de Donald Trump no sentido de se encontrar a forma de poder inquirir o próprio Presidente dos EUA. 

Caso Donald se recuse a fazê-lo “one to one” com o procurador especial (é de admitir que Trump faça tudo para evitar essa humilhação, depois do que já tentou fazer para afastar Mueller da função), será de colocar o cenário do Presidente responder por escrito às perguntas da investigação. 

Uma terceira hipótese passa por Trump responder perante um Grande Júri. O cenário 1 será o menos sonoro. O cenário 2 implica que Trump se ponha numa posição subalterna perante alguém de quem detesta. O cenário 3 seria o de maior exposição pública e mediática. 

Os democratas estão a jogar forte, na estratégia para as midterms de novembro, numa junção de envolvimento direto do Presidente na Russia Collusion com um desgaste ainda maior da governação para poderem atacar o controlo político das duas câmaras do congresso. Mas nem sempre o tempo das investigações bate certo com os calendários eleitorais. 

Enquanto isso, e em plena “euforia anti Trump” depois do mobilizador discurso de Oprah Winfrey nos Globos de Ouro (ainda que as previsões de nomeação presidencial democrata para 2020 sejam manifestamente exageradas, dada a total inexperiência política da popular apresentadora), Williams Alsup, um juiz federal da Califórnia, travou a revogação do DACA -- lei aprovada por Obama que protegia quase um milhão de filhos de imigrantes ilegais. 

Trump queria acabar com essa garantia, pretendendo relançar a discussão sobre as políticas de imigração. 

Mas, tal como acontecera com a Travel Ban, vê uma vez mais o poder judicial a fazer prevalecer a lei e as garantias individuais, em detrimento das suas propostas que extravasam os limites de um poder presidencial que, na América, é contrabalançado por outros poderes. Um grande país, mesmo que ameaçado por alguém que não é bem um Presidente dos Estados Unidos. Como um miúdo de oito anos

Um estudo feito pelo site "Factba.se" revela que o vocabulário de Donald Trump é semelhante ao de... “uma criança de oito anos”. Há quase um século que os presidentes americanos são analisados e nunca um inquilino da Casa Branca tinha tido este tipo de desempenho. 

Segundo a análise, feita a partir das primeiras 30 mil palavras utilizadas em discursos não preparados, o vocabulário e a estrutura gramatical de Trump são “significativamente mais simples e menos diversos” do que os utilizados por qualquer outro Presidente desde Herbert Hoover -- e já lá vão 14. 

Os investigadores submeteram os registos do atual Presidente a oito diferentes testes, que analisaram vocabulário e complexidade, diversidade e nível de compreensão. Trump teve a pontuação mínima em todos os parâmetros. 

O que é mais incrível é que essas características infantis se tornam uma vantagem para boa parte do seu eleitorado: Donald não constrói frases complexas, cinge-se a ideias simples, palavras curtas mas fortes -- e isso está bem patente na forma como escreve no Twitter, à base de indignações primárias, palavras escritas integralmente com letras maiúsculas e muitos pontos de exclamação. Uma criança autêntica, com o pormenor de ocupar o posto de liderança mais influente do mundo. 

Isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos -- será mais um miúdo caprichoso e com um poder perturbadoramente alargado.

«Fogo e Fúria», como já se imaginava 

Do polémico livro “Fire and Fury”, de Michael Wolff, resultam mais confirmações do que propriamente surpresas. 

Que emissários russos com ligações ao Kremlin tinham tido contatos com pessoas muito próximas de Trump durante a campanha presidencial, já se sabia (e a Comissão Mueller reforçara). 

Que o Presidente dos Estados Unidos tem um perfil ultra egocêntrico e muito pouco dado à profundidade e à reflexão, também já havia detalhes preocupantes. 

Que Donald Trump não sabe nem quer ouvir e se recusa a estudar ‘papers’ de conselheiros e especialistas sobre os temas mais básicos e fundamentais para a governação, idem. E que até se gaba de dispensar de ler os ‘briefings’ dos seus serviços de segurança nacional e contraterrorismo, aspas aspas. 

Que não tem paciência para estar mais do que 10 ou 15 minutos focado numa reunião, mesmo que seja num encontro formal com outros chefes de Estado, também já havia relatos nesse sentido. 

E que as pessoas próximas do Presidente, e que com ele têm ou tiveram que privar diariamente se referem a ele como alguém “com a maturidade emocional de um miúdo de nove anos”, “mimado e caprichoso”, entre o “impaciente e enfurecido” e, sobretudo, “mitómano e egocêntrico”, também já havia relatos. 

Ainda antes do bombástico livro de Michael Wolff, no verão passado, o verniz que estalou entre Trump e o seu secretário de Estado, Rex Tillerson, decorreu de referências -- supostamente fidedignas -- de que o chefe da diplomacia americana se terá referido ao Presidente, numa reunião sobre a nova estratégia militar americana para o Afeganistão com vários elementos da área da Defesa e da Segurança Nacional, como ‘moron’ (algures entre o ‘imbecil’ e o ‘idiota’). Que termos idênticos a esse sejam utilizados para se classificar a personalidade e o feitio de Donald Trump é algo que o livro de Wolff simplesmente veio reforçar. 

O que há, então, de novo aqui? Sobretudo ver Steve Bannon – talvez a pessoa mais decisiva na vitória eleitoral e na narrativa dos primeiros meses da Presidência Trump – a assumir um divórcio tão evidente em relação ao “modus operandi” do universo Donald. 

É claro que podemos sempre perguntar: se Steve achou assim tão inaceitável aquela reunião na Trump Tower com os russos, porque ficou tanto tempo com Donald depois disso? 

Este livro tem servido, essencialmente, para animar os talk-shows televisivos e os programas de comentário político das grandes networks nacionais nos EUA. Mas a grande questão – uma vez mais, nesta bizarra era trumpiana – é que as consequências políticas do que está descrito nesta obra (e que para qualquer outro político poderia ser comprometedor) é que ela apenas ajudará a acirrar o mundo de diferenças que existem entre quem apoia Trump e quem detesta Trump.

Quem o apoia vê nisto mais uma “prova” de que o “mainstream media” e as “elites supostamente privilegiadas” fazem tudo para desdenhar o Presidente. Quem detesta Trump já sabia há muito, e com este livro passou a ter ainda mais razões, para concluir que isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos. 

Impeachment? Esqueçam (pelo menos para já) 

Que deste livro possa sair um movimento claro para um possível 'impeachment' de Trump? Esqueçam.  Por muito pior, a maioria republicana no Congresso primeiro mostrou alguns sinais de indignação ou impaciência mas rapidamente se acobardou. 

E a oposição democrata ainda não se conseguiu organizar suficientemente para liderar uma destituição do Presidente (precisa de mais gás judicial da Comissão Mueller e de uma clara vitória eleitoral nas midterms de novembro).

A queda da diplomacia americana    

Mais de metade (52%) dos postos de nomeação presidencial no Departamento de Estado dos EUA estão por preencher. A situação piora se falarmos no Departamento de Energia (66%), Educação (60%), Interior (59%) ou Tesouro (54%).

Não é por acaso: a atual administração americana (não só  Presidente Trump mas muito do pessoal de topo que o rodeia) tem uma visão redutora e negativa do papel do Governo. Defende a desregulação de setores chave como o Ambiente e parte da Economia. Na política externa, isso tem sido dramático: a qualidade da diplomacia americana, num só ano, baixou claramente.

Trump prefere adiar "sine die" nomeações de embaixadores em capitais muito relevantes, optando por ligações diretas, sem qualquer noção da importância das negociações de longo prazo e pelo desenvolvimento de políticas baseadas em factos e em estratégias de mútuo consenso. 

O diabo está mesmo nos detalhes

Quando olhamos para o primeiro ano de Trump, tendemos a focar-nos nos temas de maior impacto mediático e político a nível mundial: saída do Acordo de Paris, renúncia à Declaração de Nova Iorque, “rasgar” dos grandes acordos internacionais (TPP, TTIP, Nafta), declaração afrontosa para o mundo árabe de Jerusalém como capital de Israel, ameaça de denúncia americana do acordo nuclear iraniano. 

Mas pelo meio destes temas “hot”, o Presidente dos EUA tem usado, bem mais do que se possa imaginar, o seu poder de utilizar ordens executivas unilaterais para avançar para decisões que deveriam ter muito mais discussão pública. 

Num só ano, os EUA de Trump recuaram dramaticamente nos direitos das minorias – sejam os homossexuais no exército, os imigrantes sem documentos em ordem ou as empresas que apostavam em energias “limpas”. E deitaram fora oito anos de tentativa de Obama de promover uma política fiscal mais justa para a classe média. 

Trump tem governado para a Direita religiosa, para a National Riffle Association, para os banqueiros de Wall Street e para as grandes fortunas. Caminha para menos regulação, menos proteção ao consumidor e mais condições para um capitalismo sem regras, de um suposto “mérito do sucesso”. 

A tal promessa de “recuperar a economia do carvão e das minas” nos estados do Midwest é que ainda não tem muito para mostrar – mesmo assim, boa parte dos eleitores que votaram Trump nesses estados continua a acreditar que será com este Presidente que a “América se tornar grande outra vez”. 

O preconceito pisou a diversidade

Com Trump na Casa Branca, há uma corrente minoritária, mas numerosa e muito poderosa, da sociedade americana que viu uma oportunidade única para afirmar posições extremistas, demagógicas e completamente desligadas da realidade objetiva. O preconceito pisou a diversidade. 

Recentemente, a Administração Trump deu ordens expressas aos funcionários do CDC (Centre for Disease Control) para deixarem de escrever, em documentos oficiais, expressões como “dados científicos”, “dados objetivos” ou “conhecimento científico”. 

O primeiro ano de Trump na Casa Branca foi, por isso, o triunfo da oficialização da “pós-verdade”, em que a ideologia e o dogmatismo prevaleceram, pela via presidencial, sobre a investigação e a ciência. É grave e não pode ser encarado como um facto consumado.

América MENOS grande outra vez

No ano I da era Trump, assistimos à confirmação da ascensão chinesa e do retraimento americano, agravado pela plataforma nacionalista e ultra unilateralista da Administração Trump. 

Vimos os EUA a demitirem-se do seu papel liderante em temas como o Clima ou a gestão das migrações e dos refugiados. 

O “rasgar” do Acordo de Paris e da Declaração de Nova Iorque fizeram dos Estados Unidos o mais improvável e menos desejado dos “estados párias” nos problemas que só podem ser resolvidos com grandes consensos internacionais e pela via do multilateralismo inteligente.

Com Trump a somar erros no plano internacional, Xi Jinping – consagrado internamente como o líder com maiores poderes em Pequim desde Mao Tsé-Tung (o seu pensamento passou a ser, oficialmente, o pensamento chinês) – aproveitou o espaço deixado vago. 

A China, maior poluidor do mundo, riu-se em surdina do disparatado abandono trumpiano do Acordo de Paris e fez juras de envolvimento no combate às alterações climáticas (que Macron, eleito Presidente da França numa plataforma anti-Le Pen e anti-Trump, tenta a todo o custo liderar, sob o lema “Make the Planet Great Again”, numa indireta bem direta à narrativa de Trump). 

No Médio Oriente, a afronta americana ao declarar unilateralmente Jerusalém capital de Israel lançou gasolina a uma fogueira que precisava de ser apagada. Foi o ‘bye-bye’ definitivo a qualquer esperança de novo processo de paz. 

Em vez disso, começa a desvendar-se um plano traçado na sombra por dois “trintões” não eleitos mas com um poder desmesurado em Washington e Riade: Jared Kushner, genro de Trump, o “enviado-especial” do Presidente dos EUA para refazer o jogo de forças no Médio Oriente (e não, afinal, um qualquer “processo de paz”) e o príncipe Mohamed bin Salman, 32 anos, a quem o Rei Salman, de saúde cada vez mais debilitada, passou quase todo o poder e que não perdeu tempo a lançar uma ofensiva interna “anti-corrupção” -- e que terá como agenda principal para a região uma coligação anti-Irão, tendo os EUA e, voilà!, Israel, mesmo que isso implique a desconfiança e a desorientação interna de aliados árabes de americanos e sauditas. 

A China de Xi Jinping agradece. No ano em que os EUA reduziram o seu investimento em ciência e investigação para menos de 4% do PIB (era 10% na década de 60), a China anuncia aposta cada vez maior nessas áreas. O Google abrirá, em 2018, o seu primeiro laboratório de pesquisa em inteligência artificial na China. 

Novo conceito de segurança: protecionismo 

Há um traço definidor na ação de Trump: o atual Presidente dos EUA vê a proteção dos interesses americanos, incluindo os interesses económicos e laborais, como um problema de segurança nacional. 

Daí o seu discurso hostil à China e aos mexicanos durante a campanha. Daí a associação (absolutamente abusiva) que na Travel Ban quis fazer entre conceitos tão diferentes como ameaça do terrorismo/entrada nos EUA de cidadãos de países de maioria muçulmana/interesses dos trabalhadores americanos. 

No recente discurso sobre Segurança Nacional, Donald Trump elencou um conjunto de prioridades (e excluiu outras) que denunciam essa visão deturpada que tem da realidade: para o atual inquilino da Casa Branca, as alterações climáticas não são um risco à segurança nacional (em contraste com o seu antecessor, Barack Obama, que em 2015 tinha assinado documento estratégico que apontava a “Climate Change” como “ameaça urgente, crescente e iminente”). 

Trump pretende mesmo manter como “mantra” a ideia de “America First” e elege como ameaças a combater de forma prioritária as ascensões da China e da Rússia como “potências revisionistas”, capazes de desafiar o poder, a segurança e a prosperidade dos Estados Unidos. 

Para Trump, a chave está na proteção do “modo de vida americano”. 

É uma visão que mistura demagogia e delírio de grandeza preso ao passado. 

Não nos podemos esquecer que este foi o Presidente que chegou à Casa Branca prometendo nos estados do Midwest que iria regressar a economia do carvão e das minas – como se isso fosse possível. 

O que é preocupante é que, passado mais de um ano dessa campanha bizarra, muitos dos eleitores Trump nesses estados – perante a objetividade de nada ter sido feito para um suposto regresso a esse “passado glorioso” – ilibam para já o Presidente e continuam a acreditar que ele é “um tipo durão que nos vai proteger”. 

Impensável

"Meus caros concidadãos americanos: fomos, somos e sempre seremos uma nação de imigrantes. Nós próprios já fomos 'estrangeiros' e diferentes, também". Barack Obama, discurso do Estado da União, 2013.

"Porque é que queremos aqui pessoas do Haiti? Porque é que temos todas estas pessoas de países merdosos a virem para cá?". Donald Trump, citado pelo senador democrata Dick Durbin e nunca desmentido por qualquer outro congressista presente na reunião na Sala Oval, 2018.

A História, de facto, nem sempre caminha para o sítio certo. Às vezes recua mesmo muito. Que vergonha. 

Um embaraço que dezenas e dezenas de milhões de americanos, certamente, estarão a sentir neste momento. Isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos. Definitivamente.