Um clássico americano
Agora que já é Nobel da Literatura, volta a apresentar-se em palcos portugueses, a 22 de Março. Palco para um homem que, aos 76 anos, canta os clássicos como se fingisse não ter já o mesmo estatuto.
Há 19 anos, quando Bob Dylan passou pelo então Pavilhão Atlântico, o entusiasmo gerado pelo concerto foi bem mais morno do que por estes dias. Em 1999, as duas actuações em Portugal integradas na Never Ending Tour, aconteciam numa altura em que o músico estava ainda a apanhar os cacos de duas décadas (de finais de 70 até à segunda metade de 90) em que surgia como um criador gasto e a afundar o seu notável legado numa memória cada vez mais longínqua. Pouco antes, em 1997, lançara Time Out of Mind, o álbum que significou a sua ressurreição artística. Mas não se percebia ainda se era prova de vitalidade ou apenas um espasmo antes de sucumbir de vez.
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Há 19 anos, quando Bob Dylan passou pelo então Pavilhão Atlântico, o entusiasmo gerado pelo concerto foi bem mais morno do que por estes dias. Em 1999, as duas actuações em Portugal integradas na Never Ending Tour, aconteciam numa altura em que o músico estava ainda a apanhar os cacos de duas décadas (de finais de 70 até à segunda metade de 90) em que surgia como um criador gasto e a afundar o seu notável legado numa memória cada vez mais longínqua. Pouco antes, em 1997, lançara Time Out of Mind, o álbum que significou a sua ressurreição artística. Mas não se percebia ainda se era prova de vitalidade ou apenas um espasmo antes de sucumbir de vez.
Claro que agora o homem — goste-se ou não — é Nobel da Literatura e não sendo de esperar que vá deleitar 10 mil pessoas com a leitura de algum dos seus escritos a 22 de Março na Altice Arena, a verdade é que este recém-adquirido estatuto estará por certo a ajudar na corrida às bilheteiras. Acresce que, voltando ainda atrás, Time Out of Mind não foi um disco de inspiração avulsa e mesmo que nos últimos anos Dylan se tenha acomodado a um papel de intérprete do grande cancioneiro norte-americano a verdade é que o fez quando a sua reputação foi já reparada.
Os anos confirmaram que Dylan não resvalaria para a decadência e permitiram-lhe recompor uma aura de figura impagável: lançou dois álbuns soberbos (Love and Theft, em 2001, e Modern Times, 2006); a Bootleg Series recebeu preciosos acrescentos à discografia oficial; iniciou a publicação da sua autobiografia com o primeiro volume das Crónicas; viu Martin Scorsese dedicar-lhe um espantoso documentário, No Direction Home, janela privilegiada para um músico que sempre foi esquivo a fixar a sua biografia — sempre a fantasiou e adulterou como puro exercício de ficção ou de falta de paciência para um jogo demasiado convencional e comercial; e teve no filme-de Todd Haynes I’m Not There não só uma outra fixação da sua natureza impalpável no imaginário pop, como ainda foi homenageado por uma banda sonora em que gente de Sonic Youth e Cat Power a Sufjan Stevens e Charlotte Gainsbourg lhe esboçava a devida vénia.
Se esses foram anos de reconciliação entre público, crítica e Dylan, em palco o seu perfil de fingidor e cultor da arte como grande ilusão encontrava sempre eco na forma como fintava o seu próprio reportório. Em 1993, na sua estreia por palcos portugueses, no Porto e em Cascais, os relatos eram já de versões irreconhecíveis das peças mais notórias do seu reportório. Em Vilar de Mouros, passados onze anos, também Like a rolling stone, All along the watchtower ou Ballad of a thin man só se deixavam identificar pelas letras, transformadas em canções ariscas e em nada aparentadas com aquelas que se popularizaram nas espiras dos discos de vinil.
Um Dylan que se recusava a ser Dylan — ou a ser o Dylan que toda a gente esperava que ele fosse. O comentário nesses concertos parecia evidente: um tipo não pode ser em 2004 o mesmo que era em 1964. Obedecer a essa subjugação seria consentir que o passado fosse uma grilheta que teria de arrastar de um lado para o outro. Se as canções queriam continuar a viajar com ele, tinham de se sujeitar a surgir em público travestidas. E se houve sempre quem se queixasse da falta de respeito pela assistência nestas ocasiões, a pergunta a fazer seria sempre se era preferível que Dylan não se respeitasse a si mesmo.
A frustração voltou em 2008, por alturas do concerto no Optimus Alive, espectáculo para 20 mil pessoas em que o músico deu o espectáculo que quis dar e não aquele que a sua inclusão no cartaz parecia prescrever. Nesse ano, recebeu um Pulitzer especial, preâmbulo para o Nobel que havia de chegar, devido ao seu “profundo impacto na música popular e na cultura norte-americanas, marcado pelas suas composições líricas de extraordinário poder poético”. Já então vozes se levantavam contra a atribuição de um prémio destinado a distinguir jornalistas, escritores e dramaturgos, e como escrevia o New York Times até os fãs mais acérrimos tinham razões para ficarem preocupados com o que poderia ser entendido como “outro capítulo da sua história complicada com o establishment, uma dança contínua de distanciamentos e reaproximações”.
Tudo isto parece não mais do que uma acumulação de percalços de um músico que nunca fez por obter — ainda que tenha feito por merecer — as mais variadas honras. Dylan, tipo desconfiado, capaz de rasgos narrativos brilhantes enxertados em canção como Who Killed Davey Moore? e inventor de uma personagem à qual tenta escapar, parece querer apenas continuar a tentar ser um luminoso discípulo de Woody Guthrie. Acontece que a vida concedeu-lhe tempo e obra suficientes para a entronização. Talvez por isso agora pareça gastar o seu tempo a interpretar o cancioneiro de Frank Sinatra (Shadows in the Night e Fallen Angels) ou os clássicos de Irving Berlin, Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, Van Heusen e Jerome Kern, como se tentasse enganar-nos, uma vez mais, fingindo não ser também ele já um clássico.