Um arquitecto entre Campanhã e Veneza
Um bairro social e um terminal de transportes, a que se acrescentará a Bienal de Veneza. Projectos para mostrar como a obra de Nuno Brandão Costa vive da porosidade entre a marca da Escola do Porto e a atenção às arquitecturas do mundo e à função social, que o arquitecto vê como essência da sua arte.
Ainda que a escolha não tenha ainda sido anunciada oficialmente, Nuno Brandão Costa (Porto, 1970) vai comissariar, com Sérgio Mah, a representação portuguesa na próxima Bienal de Arquitectura de Veneza, que começa em Maio. 2018 promete, assim, ser um ano intenso para este arquitecto que divide a profissão com a docência na (sua) Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), além de ser professor convidado em escolas de Espanha, Suíça e Estados Unidos. O início da construção da Estação Intermodal de Campanhã e o Bairro de São João de Deus, já em curso, ambos no Porto, são os outros projectos que mais o vão ocupar, e à sua equipa instalada, desde 2006, num escritório no Bairro da Bouça. Foi neste edifício que ficou como um dos emblemas da participação de Álvaro Siza no programa SAAL que o Ípsilon entrevistou Nuno Brandão Costa, cujos vinte anos de carreira foram agora assinalados com o lançamento de uma monografia, intitulada Porosis (edição Monade), com imagens de André Cepeda.
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Ainda que a escolha não tenha ainda sido anunciada oficialmente, Nuno Brandão Costa (Porto, 1970) vai comissariar, com Sérgio Mah, a representação portuguesa na próxima Bienal de Arquitectura de Veneza, que começa em Maio. 2018 promete, assim, ser um ano intenso para este arquitecto que divide a profissão com a docência na (sua) Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), além de ser professor convidado em escolas de Espanha, Suíça e Estados Unidos. O início da construção da Estação Intermodal de Campanhã e o Bairro de São João de Deus, já em curso, ambos no Porto, são os outros projectos que mais o vão ocupar, e à sua equipa instalada, desde 2006, num escritório no Bairro da Bouça. Foi neste edifício que ficou como um dos emblemas da participação de Álvaro Siza no programa SAAL que o Ípsilon entrevistou Nuno Brandão Costa, cujos vinte anos de carreira foram agora assinalados com o lançamento de uma monografia, intitulada Porosis (edição Monade), com imagens de André Cepeda.
Trabalhar num edifício desenhado por Álvaro Siza é inspirador?
Claro que é muito inspirador. É um edifício magnífico, e está numa das obras do período do Siza pelo qual tenho um particular fascínio. Não só dele, mas da arquitectura portuguesa dos anos 70 pós-revolução. E isto é também complementado pelo facto de eu dar aulas noutro edifício do Siza [FAUP], que, ainda por cima, na minha perspectiva, é uma das obras mais importantes da sua carreira.
Na apresentação do seu livro na FAUP [a 9 de Janeiro], alguém falou da “sombra” que Siza sempre lança sobre as sucessivas gerações da arquitectura portuguesa. Sente aqui a presença dessa sombra?
Vejo-o e sinto-o mais como luz. E acho até que é um privilégio viver na mesma altura em que Siza está a projectar e a construir obras.
Tem-se cruzado com ele, frequentemente, no seu trabalho?
Não frequentemente, mas ainda há pouco tempo lhe fiz uma entrevista para um artigo duma revista de arquitectura, onde escrevi precisamente sobre estas obras do programa SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local]. Foi uma conversa fascinante, como é sempre. Por isso, nunca vejo Siza como uma sombra, como um obstáculo. Nem ele, nem o Souto de Moura, nem o próprio Távora, que já não está cá, mas que foi também meu professor. São referências, utilizáveis até.
Vai ser, com Sérgio Mah, curador da representação portuguesa na próxima Bienal de Arquitectura de Veneza. O Terminal Intermodal de Campanhã e o Bairro de São João de Deus são também projectos para desenvolver este ano…
De facto, são ambos projectos muito recentes. O de Campanhã foi um concurso público que tive a sorte de ganhar no ano passado. E o Bairro de São João Deus também começou muito recentemente. Não sei se as pessoas têm a noção de que, em arquitectura, os projectos prolongam-se durante muito no tempo, no escritório, em obra, muitas vezes durante anos. A arquitectura tem este lado de longo prazo, o que é uma coisa muito positiva. O Terminal de Campanhã vai entrar este ano na fase realmente importante, que é a construção. E o [Bairro] São João de Deus, que já está em construção, vai continuar numa segunda fase – e que também já está a decorrer –, que é a transformação das casas existentes. Depois, vai começar a intervenção no espaço público, que é fundamental para dar consistência à obra. Não só construtiva, mas também dar-lhe um sentido social. A experiência diz-nos que quando se trata o espaço público com a mesma qualidade da construção de uma casa, isso tem um resultado óbvio de maior qualidade e de maior preservação do espaço. Tenho outros projectos em curso, casas e outras coisas, mas estes são os que me ocupam mais tempo mental, e mesmo físico, porque temos de estar nas obras.
E tem a Bienal de Veneza…
Sim, que também é um projecto que me vai ocupar muito tempo até à montagem…
Muito tempo não poderá ocupar, porque a bienal começa já em Maio.
É verdade. Mais vai ocupar-me metade do ano. Mas aqui trata-se de um projecto colectivo, com uma equipa curatorial, incluindo o Sérgio Mah.
Porque é que decidiu trabalhar com Sérgio Mah? Quem escolheu quem?
Fui eu que o escolhi. Fui convidado, como muitos outros, para fazer o concurso para a representação portuguesa na Bienal, e o Sérgio foi a primeira pessoa que me passou pela cabeça. Além da nossa amizade, que é já muito antiga, achei interessante ir buscar uma pessoa que tem uma experiência muito grande de curadoria, mas num ramo diverso da arquitectura, que são as artes visuais, nomeadamente o vídeo e a fotografia. Era interessante trabalhar com alguém que tivesse uma visão complementar em relação à minha, que é sempre disciplinar.
Isso significa que a fotografia e as artes visuais são indispensáveis à arquitectura?
Sim. Hoje em dia, numa exposição como a Bienal de Veneza, ou outras bienais, nunca estamos a ver arquitectura – a única forma de ver a arquitectura é visitar as obras –, estamos a representá-la; e a fotografia, como o vídeo, são meios muito directos de nos aproximarmos dessa realidade. Como o Sérgio está muito nesse campo, pareceu-me ser a pessoa indicada.
Já tinha trabalhado com ele?
Sim, em 2008, ele fez uma exposição aqui no Porto, Testemunhos – Trajectos de Qualificação [mostra o cartaz], sobre a integração social de várias pessoas, em que ele fazia o retrato fotográfico de vários artistas, em fotografia e vídeo, e eu fiz a montagem na Alfândega do Porto. Correu muito bem, demo-nos muito bem. É uma amizade muito consolidada que ajuda no trabalho.
Porque escolheram tratar em Veneza o tema da importância dos edifícios públicos na construção da cidade?
Porque houve um período recente, que teve a ver com a crise e com o contexto que ela criou, em que se montou política e socialmente um discurso contra a obra pública, vista como uma coisa negativa, despesista e quase como se fosse uma das causas da própria crise. Quando sabemos que isso não é verdade – a crise teve uma causa basicamente financeira. Portanto, achámos que é importante montar uma visão alternativa a esse discurso oficial através da obra pública, que tem uma grande influência na construção da cidade. O edifício público é um factor de progresso social; é uma oportunidade, um momento socialmente igualitário. É esse o nosso discurso.
Vão falar de edifícios públicos já existentes, ou apresentar projectos novos?
Vamos falar de obras construídas por arquitectos portugueses, em Portugal e lá fora, durante, precisamente, o período da crise. Para demonstrar a nossa tese de que, embora em contraciclo, os arquitectos têm, de facto, esta capacidade de resistência e a crença de que a arquitectura é uma arte social.
Pode nomear alguns dos edifícios que irão ser incluídos na selecção da representação portuguesa na bienal?
Não posso adiantar mais nada sobre a bienal.
Acredita em que a arquitectura tem uma função social que precisa de ser reactivada nos tempos que correm? Tem-se falado muito disso ultimamente, nomeadamente na última edição da Bienal de Veneza, dirigida pelo Alejandro Aravena.
A arquitectura tem uma dimensão social inequívoca. Pelo menos, é assim que os arquitectos são formados, genericamente. E os portugueses, especificamente, porque têm uma consciência muito forte da função social da sua disciplina. Porque a arquitectura propõe sempre um modo de vida. Quando estamos a desenhar um espaço, estamos fatalmente a propor um modo de vida a uma pessoa, na expectativa de que essa vida tenha mais qualidade. Quando isso acontece numa circunstância pública, isso é óbvio. E mesmo no domínio privado isso acaba também por acontecer. Quando uma pessoa nos pede uma casa – e uma casa é a vida de uma pessoa, de um casal, de uma família –, nós desenhamo-la na perspectiva de atribuir uma determinada possibilidade àquele casal ou àquele conjunto de pessoas, que tem a ver com a relação que a casa vai ter com a topografia, com o terreno, com o sol, com a iluminação. Existe uma dimensão estética, evidentemente, mas ela tem inserida uma dimensão social, sempre. Isso é a essência da arquitectura.
No seu trabalho, diria que essa dimensão social é prioritária?
Também não se pode dizer que o arquitecto consegue construir um projecto como se fosse uma pirâmide, em que no topo está a função social e na base outra coisa qualquer. O trabalho da arquitectura é uma coisa complexa, tem um lado técnico, uma dimensão estética, uma dimensão cultural, uma dimensão programática… Eu diria que a questão funcional é transversal a elas todas, não está na ponta.
E nesse edifício, em que lugar se encontra o autor?
O autor organiza esse processo complexo.
Acha que o arquitecto é um artista, que a arquitectura é uma arte, além de ser um serviço, uma disciplina, uma profissão?
A arquitectura tem uma dimensão estética, mas com este conteúdo social muito forte. E o do próprio uso. Por exemplo, um escultor, quando faz uma escultura, ou um pintor, quando pinta, espera uma reacção, e uma interpretação, que pode ser muito diversa de pessoa para pessoa – e ele próprio está à espera disso. Na arquitectura, isso também é possível – a percepção não é igual para toda a gente –, mas há uma coisa que tem a ver com a própria rotina, que é o uso do espaço e das coisas.
Na monografia Porosis, a maioria das obras referenciadas são casas, mas há também obras públicas: escolas, bairros, bibliotecas… O que é que gosta mais de fazer?
Não lhe consigo dizer o que gosto mais, porque o entusiasmo pelo projecto vai-se ganhando no próprio processo. Cada projecto coloca questões muito específicas. Não é possível transpor, nem comparar: este é melhor do que o outro. Sinto sempre este paradoxo: de projecto para projecto, há uma continuidade, mas as coisas parecem que começam sempre de novo.
Mas fazer uma casa – mesmo se em última instância isso depende sempre do cliente…
Depende do programa, do cliente e do terreno. São logo três coisas que variam em todas as casas, que nunca são iguais.
Mas fazer uma casa não dá mais liberdade à arte do arquitecto do que, por exemplo, uma escola ou uma biblioteca, previsivelmente com um programa mais pré-determinado?
Não. A liberdade do projecto é uma falsa questão, porque ela é construída pelo próprio projecto.
Porosis foi primeiramente apresentado na Bienal de Chicago, em Novembro. Como é que correu?
Foi uma coisa um pouco à semelhança desta [lançamento na FAUP], relativamente intimista. Em Chicago teve pouca gente, mas foi interessante, porque foi apresentado pela dupla de comissários da bienal, Mark Lee e Sharon Johnston. É sempre uma visão de longe, e de fora, que olha para a nossa arquitectura com fascínio, mas também com interrogações. Foi um diálogo interessante. E eles interessaram-se, já que a edição do livro contou com o apoio da própria bienal.
Além do livro, o que é que levou a Chicago?
Expus a minha obra, já curiosamente também em parceria com o André [Cepeda], numa selecção de seis ou sete projectos, com fotografias e desenhos. Atribuíram-nos uma parede, que pudemos organizar de uma forma muito livre. Fizemos uma exposição muito imagética. Nesse sentido, era uma exposição menos convencional de arquitectura. Por outro lado, dava um retrato muito expressionista da obra.
Como foi a recepção à exposição?
Os comissários fizeram um comentário que achei interessante: “Is very quiet!”. Eventualmente, por oposição com outras coisas que estariam lá, com outro carisma e outro carácter.
Este livro é o nº 3 de uma colecção lançada pela Monade, que abriu com Álvaro Siza (Museu Nadir Afonso) e Paulo Mendes da Rocha (Museu Nacional dos Coches). Surgir nesta sequência é uma grande responsabilidade.
Sim. Sinto um duplo sentimento de responsabilidade e de honra. Para mim, Álvaro Siza e Paulo Mendes da Rocha são os dois maiores arquitectos vivos, porque representam aquela tradição do arquitecto-mestre, do arquitecto humanista, que tem um pouco a ver com a imagem que temos do Corbusier, do Mies van der Rohe, do Alvar Aalto... Eles são, de alguma maneira, metáforas vivas dessa tradição do grande arquitecto humanista.
É uma tradição que se está a perder?
Não sei se se está a perder. Ainda encontramos essa figura, esse carisma, em gerações posteriores. Mas eles personificam essa tradição de uma forma muito óbvia.
Surgir nesta sequência na colecção significa também alguma filiação na obra deles? Sente-se herdeiro?
Não. Não me sinto herdeiro, porque não tenho a soberba de me atribuir essa condição. Mas eles, e outros, porque tenho um interesse relativamente ecléctico pela arquitectura. Gosto de muitos autores.
Enumere alguns deles.
Além destes dois, o Herzog & De Meuron, com quem trabalhei. Depois, arquitectos que já não estão entre nós, como o [James] Stirling… Gosto muito, de uma forma geral, da arquitectura britânica, da arquitectura italiana da tendência, como o Giorgio Grassi. E evidentemente o Corbusier, o Alvar Aalto, o Mies…
E em Portugal, além de Siza, qual é a sua linhagem?
Gosto de muitos arquitectos em Portugal, dos que estão actualmente a fazer obra. Sou daqueles que considera que a arquitectura portuguesa é das melhores do mundo. O que é espantoso, porque somos um país muito pobre, e a nossa arquitectura tem a mesma qualidade da de países muito ricos, como a Inglaterra ou a Suíça. Portanto, gosto de todos os arquitectos que toda a gente reconhece como bons, como o Carrilho da Graça, o Souto de Moura, o Gonçalo Byrne, os Aires Mateus, o José Carlos Loureiro, o Alcino Soutinho, o Alexandre Alves Costa, o Pedro Ramalho... E aquela geração até mais próxima de mim, como o João Pedro Serôdio, o Bak Gordon, a Inês Lobo, o Francisco Vieira de Campos, o João Mendes Ribeiro. E podemos sempre recuar ao Távora, que foi meu professor. Mas é claro que, dentro deste espectro muito grande e temporalmente extenso, tenho um fascínio muito grande, e específico, pela arquitectura que foi feita no período pós-25 de Abril [de 1974], nomeadamente as obras do SAAL, também com muitos arquitectos de Lisboa. É um período heróico da arquitectura portuguesa.
Essa sua admiração chega ao período do pós-modernismo?
Não. Aí fala-se de outros personagens que não têm a ver com isto. Estou a falar mesmo do período entre 1974 e o início dos anos 80. Mas voltando aos arquitectos no activo, é importante perceber como tantas gerações, e dentro de cada geração de tantos arquitectos, conseguem ter permanentemente tanta qualidade. Inclusivamente arquitectos mais novos do que eu, nascidos nos anos 80, que prosseguem esta ideia de qualidade.
Há quem lhe atribua a responsabilidade de, na sua geração e na Escola do Porto, ser o representante dessa linhagem que vem de Távora, Siza, Souto de Moura. Por outro lado, José Miguel Rodrigues escreveu, no texto que lhe dedica em Porosis, que a marca da sua arquitectura é “seguir os mestres, mas à justa distância”. Como se vê na relação com esta herança?
É uma coisa sobre a qual não penso muito. A arquitectura faz parte do meu quotidiano, quer como professor, quer como quando estou a praticá-la, sendo que as duas coisas são muito contamináveis, e às vezes até mimetizáveis. Mas essa é uma preocupação que nunca tive: estar a seguir uma linhagem, ou a herança de alguma coisa. Tenho os meus interesses, tenho uma formação que não posso negar, evidentemente – seria pouco inteligente, porque a formação foi boa. E não estou a falar só da Escola do Porto, mas também, por exemplo, do estágio que fiz na Suíça com os Herzog & De Meuron, e posteriormente com o José Fernando Gonçalves e com o Paulo Providência.
Da sua experiência no atelier Herzog & De Meuron, 1992-93, o que é que trouxe para a sua arquitectura e para a sua carreira?
Na altura, foi muito impactante. Eu estava ainda num processo de aprendizagem, académico. Ainda fazíamos o estágio curricular inserido em contexto escolar: de repente, saíamos da Escola e íamos para um escritório. Eu tomei a decisão, que na altura não era muito comum, de ir para um escritório na Suíça, porque houve um ciclo de conferências no Porto –organizado por um grupo de arquitectos, entre os quais estava o Souto de Moura, ainda um jovem arquitecto, o José Paulo dos Santos, o João Pedro Serôdio e o Carlos Machado – com alguns arquitectos já consagrados, como o Stirling, o Grassi, o Rafael Moneo, o próprio Siza; e depois trouxeram uns arquitectos mais jovens, pouco ou quase nada conhecidos em Portugal, como o [David] Chipperfield, o [Peter] Zumthor e o [Jacques] Herzog, que foi quem veio ao Porto. Fiquei fascinado com a conferência dele e, passado uns anos, quando chegou a altura de fazer o estágio, falando com vários professores – a Escola era ainda muito familiar –, pôs-se a hipótese de ir trabalhar com o Herzog & De Meuron. Lembro-me de que o Souto de Moura dispôs-se a ajudar-me, o que fez de uma forma muito simples, telefonando para a Suíça. E o Herzog disse de imediato que eu podia ir. Era um escritório muito pequeno, mas houve esse impacto de sair do Porto, de um ambiente académico, e cair num escritório que estava em formação mas que tinha uma obra já fascinante.
Lembra-se do que é que a dupla suíça estava a fazer na altura?
Estávamos ainda no período pós-moderno, e eles estavam já a fazer uma obra de ruptura face ao que se estava a passar. Tinham acabado de construir a galeria para a Colecção Goetz [1989-92], em Munique, que na altura teve um impacto enorme. E estavam a começar a fazer o concurso para a Tate. Ainda era um escritório muito pequeno, com pouca gente. Isso foi também interessante para mim, saltar do clima de uma escola que tinha aquela aprendizagem – que ainda se mantém – de não ensinar propriamente o projecto, mas o método do projecto, muito baseado na tríade a construção, a história e o desenho, e ir cair num escritório muito fortemente influenciado pelos pressupostos conceptualistas da percepção do edifício, muito ligado também às artes plásticas conceptuais, não às tradicionais. Foi uma aprendizagem de grande contraste. E estes contrastes, quando têm por base a qualidade, funcionam muito bem. E também se, ao voltarmos, não nos deixarmos deslumbrar e percebermos que temos um contexto diferente. Não se tratava de voltar a Portugal e ir fazer como na Suíça, porque isso não era possível, os meios são outros. É preciso saber gerir essas aprendizagens.
Voltando à sua monografia. Porque escolheu trabalhar com o André Cepeda?
Esta relação com o André vem de antes do livro. Conheci-o na exposição Testemunhos, e sempre tive um fascínio pela sua obra. Acho-o um dos artistas mais interessantes da sua geração, pelo menos aquele que mais me interessa, na fotografia. Mas como ele não é um fotógrafo de arquitectura, nunca se tinha criado a oportunidade de trabalharmos juntos … Depois houve um momento em que essa oportunidade surgiu, suscitada pelo Sérgio Mah, que teve essa capacidade, essa inteligência de ver que a obra fotográfica dele e a minha arquitectura tinham alguma coisa em comum, e entusiasmou-nos a juntarmo-nos. Quando os editores do livro [Daniela Sá e João Carmo Simões] vieram ter comigo, no início do ano passado, para me propor esta monografia, e quando discutimos a questão da fotografia, falei de imediato no André. Ele já tinha fotografado muitas obras minhas, mas faltavam as mais antigas, e ele foi fotografá-las. Aceitou o desafio, e o resultado é o que está aí (aponta para o livro), e que funciona bem.
A hipótese de levar esta obra – a sua arquitectura fotografada pelo André Cepeda – em exposição a espaços públicos está no horizonte?
Não há nada agendado. Mas tenho outro trabalho com o André em curso; é também uma publicação, sobre o processo concreto do Bairro de São João de Deus. Mas numa perspectiva diferente. Tem muito a ver com a dimensão estético-social do trabalho do André, que representa sempre as coisas e as pessoas com uma sensibilidade social muito forte. É uma coisa que me interessa transpor para a arquitectura.
No livro, está representada uma vintena de obras, duma selecção de perto de 80 possíveis. Qual foi o critério de selecção?
A selecção foi feita pelos editores. Eles tinham um plano muito consistente, muito bem estruturado, e eu não quis interferir. Basicamente, todas as obras que estão no livro são de raiz, à excepção de duas, a Quinta de Bouçós e a Casa da Serra de Arga, que são obras de transformação de espaços existentes que eles consideram muito específicos. E eles quiseram fechar o livro com dois projectos muito recentes, com escalas muito diferentes, que é a Casa de Coimbra, que fiz para um primo meu e é uma espécie de parábola sobre a Villa Savoye, do Corbusier, e o Terminal de Campanhã, uma obra com uma escala territorial, que eu nunca tive.
Se lhe pedir para escolher três obras construídas do conjunto da sua carreira de vinte anos, quais seriam?
A Casa em Afife, porque é a primeira e, de facto, foi uma obra muito intensa. Como não tinha mais nenhuma para fazer, pus ali muita energia. Eu acho que a construção é o grande momento da arquitectura, e esse foi o momento em que percebi isso, na prática. Foi a prova de fogo. A segunda, o edifício Viriato, porque foi o primeiro que teve o reconhecimento público [Prémio Secil em 2009]. A terceira será o Bairro de São João de Deus, porque é uma obra em que estou a experimentar uma condição muito específica da arquitectura, que é trabalhar com uma grande elementaridade e para um colectivo muito alargado e socialmente muito difícil.
E quais são os projectos que mais lamenta não ter concretizado?
Tenho vários. Mas há três que tenho muita pena de não ter construído. Um, foi um projecto que me permitiu abrir o escritório, uma biblioteca para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Avenida de Berna, em frente à Gulbenkian, e que seria a biblioteca central dessa faculdade. Nunca percebi porque é que não construíram o edifício, porque eles continuam sem biblioteca. Ganhei o concurso em 1998, tinha apenas 27 anos, e foi com este projecto que iniciei a minha prática autonomamente. Depois houve outro concurso que ganhei, para a extensão da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – parece que tenho um problema com as universidades humanísticas (risos). Gostei muito do projecto de execução. E sem perceber muito bem porquê, também não se construiu. São dois projectos que, se me pedissem para os construir hoje, não mudava uma vírgula. Não por teimosia, ou capricho, mas porque penso que o faria da mesma forma. E há ainda o projecto do mercado de Ramalde, também no Porto, que foi o primeiro concurso público que ganhei, ainda estudante, em 1994, feito em co-autoria com um colega, João Paulo Loureiro, e que também não saiu do papel...
Como concilia o trabalho de arquitecto com o de professor de Arquitectura. São complementares?
É mesmo isso. Não são independentes um do outro. Eu sou professor, e a prática da arquitectura é uma investigação complementar das aulas, e vice-versa. Se não fizesse obras, teria muito pouco para dizer aos alunos. E se não desse aulas, também não era o arquitecto que sou, porque não teria o contacto permanente com uma massa crítica riquíssima, que é aquela que os alunos nos trazem todos os dias.
Como viveu durante estes anos de crise?
Com uma grande angústia, e com um sentimento de revolta, porque também se criou aqui um mito, e um discurso, de que tudo o que estivesse ligado à construção era uma coisa prejudicial. Foi muito negativo, e os arquitectos sofreram todos imenso, desde os mais velhos aos mais novos. Foi uma coisa injusta, porque os arquitectos melhoram a sociedade. E vivemos esse período com a angústia de perceber que a nossa condição estava em risco.