Ramada
Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa
Quantos dos meus leitores (não confundir com eleitores) se podem gabar de ter assistido à erecção de uma ramada? Pois é digno de se ver. Para os mais impressionáveis, uma pequena explicação para a escolha das palavras precedentes: alguns vão objectar à minha utilização de “gabar”, por escusado, em era de constantes gabarolices espalhadas pelos ventos comunicacionais electrónicos, seja televisão, o “Livro de Rostos”, o “Quem Te Tirasse o Pio” ou outras redes de pesca sociais em que as pessoas em geral, colaborando na embrulhada global, mostram até que ponto estão apaixonadas por si próprias (“Se eu não gostar de mim, quem gostará?...”).
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Quantos dos meus leitores (não confundir com eleitores) se podem gabar de ter assistido à erecção de uma ramada? Pois é digno de se ver. Para os mais impressionáveis, uma pequena explicação para a escolha das palavras precedentes: alguns vão objectar à minha utilização de “gabar”, por escusado, em era de constantes gabarolices espalhadas pelos ventos comunicacionais electrónicos, seja televisão, o “Livro de Rostos”, o “Quem Te Tirasse o Pio” ou outras redes de pesca sociais em que as pessoas em geral, colaborando na embrulhada global, mostram até que ponto estão apaixonadas por si próprias (“Se eu não gostar de mim, quem gostará?...”).
Poderia imaginar-se que se houvesse um número suficiente de aventureiros para enfrentar mais do que 120 caracteres de cada vez, para ir além dos símbolos das “raspadinhas” (jogo instantâneo) e das bulas de medicamentos, o livro mais vendido poderia ser a peça de teatro “Pigmalião”, de George Bernard Shaw (como se fosse possível ler peças de teatro). Ora, como ninguém lê peças de teatro e as vendas de livros estão a cair 14 por cento ao ano, as referências mais próximas a “Pigmalião” ficam limitadas ao filme “My Fair Lady”, de George Cukor, ou à Rainha de “Branca de Neve e os Sete Anões” perguntando: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?...”, mas só se passarem no Netflix.
Voltando à erecção da ramada, que foi, afinal, o que nos congregou em assembleia ideal: sei o que estão mortinhos por perguntar: o que é uma ramada? Certo. Uma ramada é uma estrutura de suporte ao crescimento das videiras (ou vides) para a produção de uvas e de vinho, constituída por colunas de madeira ou pedra (esteios) dispostas aos pares sobre os quais se apoiam travessas de madeira ou de ferro que recebem, na horizontal, os arames que vão correr longitudinalmente e aos quais se vão amarrar os galhos aéreos produtivos das videiras durante a estação da poda. Quando as videiras são adultas, na época das colheitas (vindimas), o emaranhado de varas, folhas (parras) e cachos de uvas formam uma cobertura vegetal bastante acima do nível das cabeças de habitantes locais ou forasteiros, formando um abrigo acolhedor e salvador desses meses de sol mais forte. Mas passear debaixo de uma ramada é sempre uma experiência muito particular, mesmo que seja pouco mencionada em literatura, principalmente a policial.
Uma ramada, em locais diferentes, pode ter outros nomes, tais como latada ou parreira, mas na minha parte do mundo é ramada, um mundo em que não há chapéus-de-chuva, só chapéus de chuva e guarda-chuvas. Em criança, vi erigir uma sem auxílio de máquinas; só força de homens (as mulheres ainda não tinham conquistado esse direito) e de juntas de bois (sem intenções irónicas sobre o poder autárquico), quadro inspirador para o pintor que se preze (não necessariamente da construção civil) e mesmo para alguns indivíduos sem qualquer traço de amor-próprio (que é como deveríamos escrever e dizer, em vez do anglicismo “auto-estima”).
Quanto a esta de que me ocupo agora, quando eu lá cheguei, já ia avançada. Ainda vi a aplicação dos últimos arames, a serem puxados, em espiral, dos pesadíssimos rolos que esperavam a sua vez no atrelado do tractor. Gostaria que ouvissem o som rico dos arames quando passam nos furos dos ferros horizontais em T invertido que se apoiam no esteios de granito, parecendo fios telegráficos a transbordar conversas simultâneas de que se percebem apenas as sílabas sibiliantes. Não há dúvida de que as ondas harmónicas geradas no atrito de metal contra metal daquele deslizamento falam connosco, se não formos duros de ouvido ou de coração. Anos depois, ainda falam.
No final da obra, o contentamento foi generalizado e não era caso para menos: a erecção tinha corrido bem. No entanto, nenhum dos intervenientes (chamar-lhes “actores”, como agora se usa, em meios pouco conhecedores das subtilezas das traduções, seria um rematado disparate) se conseguiu atrever a dizer: “Parabéns pela erecção!”. Mais uma vez se confirmou que há palavras que o indivíduo adulto, culto, mesmo jurisconsulto, em ambiente social, se confrange em utilizar, embora correctíssimas, tais como “desculpe”, “obrigado”, “amo-te”, “pudico”, “dióspiro”, “termóstato”, Úrano”, “pode passar à frente” e “cáspite”.
Só mais duas notas que o leitor citadino, especialmente o capitalista (da capital), não me perdoaria que lhe sonegasse, ainda que entrechocando com a sua natural predisposição para a ignorância das coisas “do interior” (isto é, à distância de dez quilómetros em diante do limite urbano olissiponense, mas só do lado de terra, já que do lado marítimo sabem tudo).
Primeira: antes do advento do império dos plásticos e do ambiente económico com dinheiro de sobra, o trabalhador rural, o lavrador, o aldeão, o praticante da agricultura de subsistência, em suma, o desgraçado, tinha de se arranjar com as soluções mais baratas que fosse possível inventar. No tempo da poda, resolvia industriosamente a necessidade de atilhos com os quais segurar os galhos (varas) das videiras aos arames da ramada: antes de subir à comprida escada de encosto de madeira, colhia, de uma espécie de palmeira precavidamente plantada num campo ou num quintal, as suas folhas compridas, estreitas e robustas, que prendia à cinta e que ia utilizando ao longo da jornada. A árvore fornecedora dessas maravilhas ecológicas biodegradáveis é a fiteira (Cordyline australis). Também tenho uma, e dá-me jeito.
Segunda: fazem alguma ideia do peso total de varas (galhos), braços (ramos), parras e cachos de uvas sobre os arames de uma ramada? Pensem no cantor havaiano Israel Kamakawiwo’ole e no seu cavaquinho e ouçam-no cantar Over the rainbow enquanto fazem as contas. Por isso, a sabedoria do projectista dita que, em cada extremidade da ramada, e para não a deixar abater-se, seja implantado um maciço de pedra de cada lado, de tamanho certo para contrabalançar a carga a suportar e na maior parte enterrado, qual iceberg de granito, a cujo conjunto se prendem os ferros de topo (bancas). A cada um destes pedregulhos chama-se prisão.
Hoje em dia, na região dos vinhos verdes, este sistema tem sido substituído por conformidades mais modernas, em bardo, cruzeta ou cordão, mas a ramada que eu descrevi é ainda a paisagem dominante dos pequenos terrenos que têm sido o cenário da minha vida real e da imaginária também.
Concluída a erecção, fui convidado para os festejos, organizados com a boa vontade natural de quem sabe trabalhar e comer (“Quem não é para comer não é para trabalhar”), numa casa de traça antiga que, embora dotada dos confortos modernos de aquecimento por recuperadores de calor, fogões e esquentadores de água a gás, mantinha espaços dedicados à maneira de cozinhar de outras épocas: ao canto, o forno a lenha de cozer broa e assar cabritos, ao centro a pedra da lareira com as panelas de ferro pretas de três pés de onde eu sei que saem sopas e cozidos cujo sabor não é possível igualar com tecnologias eléctricas de indução, vitrocerâmicas ou outras. E saíram. Bebeu-se bem, comeu-se melhor, e a fogueira que aquecia os panelões aquecia-nos a nós e mostrava-nos por que a palavra lareira vem de lar, pois lar é casa, mas também é fogo e por isso é que fogo é também sinónimo de casa.
Falta concluir com o ouro da sobremesa ancestral, tradição de uma bolsa de território nortenho apenas, talvez coincidente com uma bolsa linguística (quem sabe?...), mas digna de algumas linhas de esclarecimento e celebração: celebração do sabor e esclarecimento do significado. Chama-se sopas-secas, mas estas sopas não se referem ao prato quente mais ou menos líquido ou mais ou menos engrossado com batatas, couves, massa e feijão que também se conhece por caldo, mas tão-só a pedaços de pão demolhados num líquido, de que são exemplo as antigas sopas de vinho (sopas de cavalo cansado).
Nesta sobremesa, temos pedaços de pão demolhados em água com açúcar-loiro (açúcar-amarelo, mascavado ou mascavo), canela e limão, dispostos às camadas num alguidar de barro torto, daqueles achatados pelo oleiro antes da cozedura, de modo a não ficarem redondos. Depois de cheio com as camadas de pão entremeadas de açúcar e canela, vai ao forno de lenha para secar as sopas e tostar a parte de cima, para quem gostar (nanja eu) e tiver dentes fortes ou a toleima de os ter. Tirada essa cobertura tostada reservada aos apreciadores, o resto corta-se à faca ou apenas com colher de sopa, o que parece mais apropriado para servir as sopas-secas. E há quantos anos as não via tão genuínas e com tanto sabor a infância. Só não chorei mais porque as lágrimas grossas – como só sabe quem chora – se transformam em lentes que nos desfocam o que temos diante dos olhos e eu não estava preparado para a desfeita de deixar de ver o que há uma vida não via. Provem e entendam...
Foi festa até às tantas. E, a páginas tantas, já eu tinha perdido todas as noções, excepto a de estar onde queria: entre amigos. E a de receber o maior crédito de todos: não o do cartão de plástico, mas o de ser convidado a entrar numa casa e comigo partilharem o que lá têm.
Correio Premente
De Joselino Medronheiro, freguesia de Pedorido, concelho de Castelo de Paiva: “Quando tirei o meu carro de bois para a Festa do Vinho Verde, em Julho, uma roda traçou-me o pé, que em três tempos parecia uma gaita-de-foles. Foram todos a correr à farmácia e trouxeram-me os remédios que eles lá têm de agora, mas que pouco ou nada fazem a um homem que caiu ao mar. Nada quis daquelas mixórdias e só me curei com a receita da minha falecida avó, que Deus tenha porque nós não podemos pagar os preços de um lar: papas de linhaça. Podeis correr tudo e encomendar drogas pela Internet que não tereis resultados destes. Não há nada como papas de linhaça, aplicadas a quente ou a frio (é melhor a quente) e resguardadas com um pano de algodão, para respirar. Para os senhores da cidade: as papas de linhaça não são para comer! Essas são as de sarrabulho, que também fazem bem, mas a outras partes. Ora dê lá notícia disto aos seus clientes da leitura. Pode ser que a alguns lhes aproveite. Caso não, vão ao Senhor dos Aflitos, a Lousada!”
Caro amigo, espero que por este início do ano já se tenha recomposto completamente do infortúnio que teve a amabilidade de nos dar conta. Obrigado, especialmente, por ser a alma caridosa que trouxe a esta rubrica um reforço do didactismo que tem andado bastante tremido. Para quando uma tese de mestrado sobre “as virtualidades das papas de linhaça em contexto educativo inclusivo”?