Credibilidade e #MeToo: Dylan repete que foi alvo de abusos por parte de Woody Allen; ele diz que estão a “usar cinicamente” o momento

Na primeira entrevista televisiva da filha do cineasta, esta nega ter sido manipulada pela mãe nesta história com 25 anos que, entre o efeito Weinstein e os movimentos anti-assédio, está agora a afastar actores e celebridades de Allen.

Fotogaleria

Dylan Farrow, a filha de Woody Allen que há anos o acusa de dela ter abusado sexualmente, deu a sua primeira entrevista televisiva sobre o tema na manhã desta quinta-feira, em pleno fulgor do movimento #MeToo de denúncia e novo olhar sobre a credibilidade das alegadas vítimas de crimes sexuais. “O que não compreendo é como é que esta história doida de eu ter sido alvo de uma lavagem cerebral e treinada [para fabricar uma história de abuso de menores] é mais credível do que o que estou a dizer sobre ter sido atacada sexualmente pelo meu pai”, disse na CBS. Allen acusa a “família Farrow” de “usar cinicamente a oportunidade dada pelo movimento Time’s Up”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Dylan Farrow, a filha de Woody Allen que há anos o acusa de dela ter abusado sexualmente, deu a sua primeira entrevista televisiva sobre o tema na manhã desta quinta-feira, em pleno fulgor do movimento #MeToo de denúncia e novo olhar sobre a credibilidade das alegadas vítimas de crimes sexuais. “O que não compreendo é como é que esta história doida de eu ter sido alvo de uma lavagem cerebral e treinada [para fabricar uma história de abuso de menores] é mais credível do que o que estou a dizer sobre ter sido atacada sexualmente pelo meu pai”, disse na CBS. Allen acusa a “família Farrow” de “usar cinicamente a oportunidade dada pelo movimento Time’s Up”.

As declarações foram proferidas numa entrevista a Gayle King, conhecida apresentadora e também famosa amiga de Oprah Winfrey, um dos rostos do movimento Time’s Up, nascido de quatro meses de denúncias de assédio, abuso e outros tipos de violência sexual cometidos em Hollywood e noutros contextos e que têm maioritariamente as mulheres como vítimas. Winfrey, além do seu discurso mobilizador nos Globos de Ouro da passada semana, reuniu esta semana algumas das suas correligionárias no mesmo canal generalista, a CBS. Questionou-as sobre a longa sombra de abusos sexuais que paira sobre o conceituado realizador Woody Allen – que negou sempre ter cometido tal crime – e obteve da actriz Natalie Portman um firme: “Eu acredito em ti, Dylan.”

A questão da credibilidade é um dos fundamentos da forma como o escândalo Harvey Weinstein e o seu poder desencadeador de novas denúncias e revelações têm sido descritos como um momento revolucionário: ao partir de casos de mulheres (e depois alguns homens) célebres e consagradas, de actrizes como Ashley Judd, Angelina Jolie ou Gwyneth Paltrow, deu a visibilidade da sociedade do espectáculo à credibilidade da vítima.

Nas últimas semanas, esse mesmo factor tem sido amplamente discutido à medida que surgem novos casos, novas nuances, que se cunha a expressão “má conduta sexual” e se ultrapassam as fronteiras do assédio no local de trabalho e as suas claras linhas de (des)equilíbrio de poder e se entra no campo das relações quotidianas, em que a credibilidade das alegadas vítimas e o escrutínio ao seu comportamento têm dado azo a divisões no próprio seio do movimento feminista. O elemento celebridade, e, sobretudo, no caso de Farrow e Allen, o ingrediente do afecto cultural que certas figuras acusadas suscitam tem sido um dos mais difíceis de destrinçar no actual momento – de Kevin Spacey a Louis C.K., passando há muito por Woody Allen.

Em 2014, Dylan Farrow escrevia pela primeira vez, falando na primeira pessoa para o grande público, sobre o que diz ter acontecido naquele dia de Agosto de 1992 na casa de Mia Farrow, ex-companheira do realizador de Annie Hall, quando foi deixada sozinha com o pai adoptivo. “Quando eu tinha sete anos, Woody Allen levou-me pela mão e conduziu-me até um sótão sombrio, tipo armário, no segundo andar da nossa casa. Disse-me para me deitar de barriga para baixo e brincar com o comboio eléctrico do meu irmão. Então, atacou-me sexualmente.” Na entrevista a Gayle King, emocionada, especifica: “Aos 32 anos, diria que tocou nos meus lábios [vaginais] e na minha vulva com o seu dedo.”

Um dos seus irmãos é Ronan Farrow, jornalista e que há anos apoia as alegações da irmã – e que em Outubro de 2017 publicou a primeira de várias investigações da revista New Yorker sobre o comportamento predatório do produtor Harvey Weinstein a partir dos testemunhos das suas alegadas vítimas. Mas a voz que esta quinta-feira se ouviu nos EUA foi a de Dylan, hoje com mais de 30 anos e usando palavras que muito se têm ouvido desde Outubro de 2017: “Quero mostrar a minha cara e contar a minha história... Quero falar alto e bom som. Literalmente.” Em 2014, na carta publicada no New York Times, tinha escrito: “Durante tanto tempo, a aceitação de Woody Allen silenciou-me.”

Esta quinta-feira, voltou a lamentar que tantas celebridades próximas de Allen “sistematicamente” não a tenham ouvido. Agora sente-se com mais força por “tanto silêncio a ser quebrado por tantas pessoas corajosas contra tanta gente poderosa”. “Senti que era importante acrescentar minha história à deles.”

O efeito Weinstein tinha já voltado a fazer surgir as acusações que eram mais ou menos públicas desde o divórcio entre a actriz Mia Farrow e Woody Allen, no início dos anos 1990 e depois de Allen se ter envolvido com a sua actual mulher, a filha adoptiva de Farrow com o compositor André Previn, Soon-Yi Previn, então com 19 anos. Em Outubro passado, Dylan Farrow questionara, no Los Angeles Times, por que é que a força do #MeToo não tinha ainda atingido Allen; nos últimos dias, vários actores e actrizes anunciaram não voltar a trabalhar com o realizador. São os casos de Greta Gerwig, Rebecca Hall e Timothee Chalamet, além do distanciamento de Natalie Portman, que com ele filmou Toda a Gente Diz Que Te Amo em 1996.

Naquele início da década de 1990, tanto o pediatra da menina de sete anos quanto duas investigações policiais distintas foram accionados; o primeiro defendia que Dylan fora alvo de abuso sexual, as investigações judiciais não lhe deram razão e uma equipa da Clínica de Abuso Sexual de Menores do Hospital de New Haven-Yale concluiu mesmo que criança não fora objecto de abuso sexual, embora um procurador tenha posto em causa a validade desse relatório. Em Fevereiro de 2014, o agente de Allen reagia à carta aberta de Dylan Farrow, dizendo que o realizador acreditava que “provavelmente [ela] teria sido induzida pela mãe, Mia Farrow, a fazer as acusações”, no âmbito do truculento divórcio.

Dylan Farrow põe agora em causa a credibilidade dessa tese contra a sua própria palavra. E Allen, reagindo à entrevista na CBS, acusa em comunicado: “Embora a família Farrow esteja a usar cinicamente a oportunidade dada pelo movimento Time’s Up para repetir esta alegação desacreditada, isso não a torna mais verdadeira hoje do que foi no passado. Nunca abusei da minha filha – como todas as investigações concluíram há um quarto de século.”

Mas Dylan tem outra versão da história. “A cada passo, a minha mãe sempre me encorajou a dizer a verdade. Nunca me treinou”, disse à CBS, antes de chorar ao ver imagens de 1992 em que Allen nega ter cometido tal acto. “Ele está a mentir e tem estado a mentir durante muito tempo.” Em retrospectiva, acrescentou ainda, teria preferido ter ido a tribunal na altura, apesar de a terem considerado demasiado frágil para um julgamento com  previsível mediatização.