O drama da pletora médica?
Temos de deixar de ter medo da "avalanche de médicos" e aumentarmos a possibilidade de acesso aos cursos de medicina.
“A avalanche de novos médicos acarreta por preceitos deontológicos a diminuição das receitas da classe.” Mais adiante corrige: “A abundância de médicos não significa riqueza da profissão: basta reparar nos médicos, vítimas de certas explorações comerciais e industriais que por aí começam a organizar-se e que são indicio certo de miséria profissional” (carta ao diretor da Revista Medicina [1], em 1935, de um dirigente da Associação Médica Lusitana [2], a propósito da publicação de um artigo [3]).
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“A avalanche de novos médicos acarreta por preceitos deontológicos a diminuição das receitas da classe.” Mais adiante corrige: “A abundância de médicos não significa riqueza da profissão: basta reparar nos médicos, vítimas de certas explorações comerciais e industriais que por aí começam a organizar-se e que são indicio certo de miséria profissional” (carta ao diretor da Revista Medicina [1], em 1935, de um dirigente da Associação Médica Lusitana [2], a propósito da publicação de um artigo [3]).
Na mesma missiva afirmava-se que os médicos a exercer na cidade do Porto eram cerca de 200, considerados suficientes para a procura existente. Curioso acrescentar que mais adiante também se dizia que em tempos de crise o recurso às urgências hospitalares aumentava, o que continua a ser verdade.
Atualmente, a Ordem dos Médicos continua a afirmar que há uma pletora de médicos e que continuam a entrar médicos acima das capacidades formativas. Contudo, as opiniões dividem-se: uns dizem que temos médicos a entrar acima da nossa capacidade e outros dizem que, apesar de as faculdades estarem a formar muitos médicos, o Serviço Nacional de Saúde tem falta de médicos — 2,7 médicos por mil habitantes, abaixo da média de 3,3 da OCDE.
Mas os estudos de demografia médica realizados até à data, quer pela Prof. Paula Santana, quer pelo Prof. Correia da Cunha, e o último inquérito realizado na região Norte pela Prof. Marianela Ferreira, chegam todos à conclusão que há médicos a menos no Serviço Nacional de Saúde.
O estudo demográfico, realizado em 2015, na região Sul, pelo Prof. Correia da Cunha, intitulado O que fazer com tantos médicos?, teve como finalidade refletir sobre a evolução demográfica dos profissionais de medicina em Portugal, nas últimas duas décadas.
"Neste estudo, apresenta-se a grande contradição sobre a classe médica em Portugal: existem demasiados licenciados em Medicina, com os números a crescer, mas o Serviço Nacional de Saúde tem cada vez menos médicos. Entre outros aspetos, as conclusões desta reflexão vão apontar para a necessidade de rever o numerus clausus e ao mesmo tempo reativar as carreiras profissionais, não só para contrariar a tendência de envelhecimento dos médicos, mas também para, por exemplo, incentivar a imersão em áreas especializadas com poucos médicos e apoiar a fixação dos mesmos, colmatando assimetrias regionais e evitando que se agravem as condições de igualdade de acesso dos portugueses aos cuidados de saúde" (in Introdução).
A caracterização demográfica apontou para uma carência evidente de médicos no setor intermediário, feminização da profissão e desigualdade na renovação das especialidades. Sendo as mais problemáticas a Medicina Geral e Familiar, Saúde Pública e Estomatologia.
Neste estudo, várias soluções foram apontadas: a reativação das carreiras profissionais, sem as quais não temos profissionais dedicados que inclusive possam apoiar a formação em regiões mais carenciadas, assim como a fixação de médicos.
Conferindo um inquérito que está a ser realizado pela revista da Ordem dos Médicos (OM) aos presidentes das 21 sub-regiões, são constantes as queixas de falta de médicos no setor público, inclusive na região de Lisboa-Cidade. Cito: "Com consequente sobrecarga para os profissionais, diminuição da qualidade do serviço prestado e da capacidade formativa" [4] (OM, n.º 183, Outubro de 2017).
Durante os anos 70 e 80, mesmo em anos em que se formaram cerca de 2000 médicos, houve um esforço em criar uma pletora de especialistas correspondendo ao desejo da maioria dos médicos. Esta política, planeada ou não, foi responsável pelos grandes avanços da medicina portuguesa e colocou o nosso Serviço Nacional de Saúde entre os melhores do mundo. Outros países não seguiram este caminho, como por exemplo a vizinha Espanha, que optou pela formação de clínicos gerais em detrimento de uma pletora de especialistas. Cabe agora ao Governo e aos profissionais de saúde decidirem qual o caminho a seguir: retomar o papel dos hospitais como formação de excelência de médicos especialistas e/ou investir mais na saúde pública e nos cuidados primários.
Uma coisa é certa, todos estão de acordo que faltam médicos no SNS e que devido à sobrecarga destes profissionais o serviço público está a degradar-se com fuga de médicos para o sector privado e para o estrangeiro.
Temos de deixar de ter medo da "avalanche de médicos", para utilizar a expressão do nosso colega, em 1935, e aumentarmos a possibilidade de acesso aos cursos de medicina, assim como a formação específica de todos os médicos.
Já temos a experiencia dos anos 80, em que um aumento excessivo do numerus clausus foi prejudicial. Ainda estamos a pagar esse erro com uma carência de médicos no sector etário intermédio, fundamental para a formação dos mais jovens.
Ao longo de todos estes anos, houve uma enorme falha no planeamento dos efetivos médicos por parte dos sucessivos governos. Não foi tomado em conta a transformação da medicina, o aumento das necessidades de cuidados médicos, o envelhecimento da nossa população empobrecida por longos períodos de crise. Não foi tomado em conta a evolução da sociedade, as mentalidades, o aumento merecido do tempo de descanso, a feminização salutar da profissão, as atividades profissionais não relacionadas diretamente com cuidados médicos, diplomas não utilizados, horários em tempo parcial, falta de atrativos para fixar clínicos nas zonas rurais e periféricas das grandes cidades.
Em suma, impediram-se centenas de jovens — sobretudo os oriundos de famílias mais carenciadas — de serem médicos, privando as populações dos seus serviços. Digo das famílias mais desfavorecidas, referindo-me às que não têm posses para que os filhos se licenciem em Espanha, República Checa ou outros países da Comunidade Europeia, o que lhes permitiria exercer no nosso país.
[1] Espólio de Abílio Mendes
[2] Associação Médica Lusitânia era a associação dos médicos do Norte do país (1914-1938)
[3] Pinho VA. Ao lado da Medicina, o imposto profissional por capitação, Aspectos Sociais e Económicos, Medicina, Ver. de Ciências Médicas e Humanismo, n.º15, Outubro 1935, Ano II
[4] Corte Real S., Atualidade, OM. N.º 183, Outubro de 2017