Os vizinhos são mais do que paredes meias

Passamos a vida num chat e esquecemo-nos de quem vive mesmo ao nosso lado, distanciamos expressões e nem percebemos quando estão bem ou quando estão mal, às vezes quando estão

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Marco Gil

Não são bem família mas podem sê-lo, às vezes são atritos e outras vezes um pacote de farinha: são os vizinhos.

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Não são bem família mas podem sê-lo, às vezes são atritos e outras vezes um pacote de farinha: são os vizinhos.

Podemos passar todos os dias por eles e nunca reparar nos hábitos que muitas vezes são também parte de nós, são rotina e acaso, mas também cumplicidade obrigatória. Vemo-los mais vezes do que aos nossos amigos.

Evitamo-los na maior parte dos dias, mas acabamos sempre por nos cruzarmos com eles. Porque tem mesmo que ser. As escadas são na maioria das vezes o espaço que dá lugar aos encontrões e a pouco mais do que um “Bom dia, como está?”.

Os vizinhos deveriam ser mais do que “paredes meias” porque, na realidade, mesmo quando não existe proximidade, são eles que ouvem de perto as nossas conversas (até quando não o queriam fazer), que conhecem as vozes, sentem o cheiro do refogado, conhecem as mesmas discussões e já sabem o que vamos comer para o almoço de amanhã. São intimidade mesmo não sendo. Muitas vezes são os nossos vizinhos os primeiros a descobrir os nossos maiores segredos.

Passamos a vida a tentar encurtar distâncias, a aproximar metas e a fazer viagens impossíveis quando nunca conseguimos diminuir a distância de uma porta para a outra. Porque os vizinhos são pessoas para lá do betão; sorrisos e lágrimas feitos gente que vivem a cinco metros de nós, por todos os dias.

Passamos a vida num chat e esquecemo-nos de quem vive mesmo ao nosso lado, distanciamos expressões e nem percebemos quando estão bem ou quando estão mal, às vezes quando estão. Da falta de um sorriso ou de meia dúzia de minutos só para lhe perguntarmos se está tudo bem. Negamos conforto quando nos cruzamos com a desilusão sem darmos conta. Não percebemos amor porque íamos a olhar para o ecrã do telefone dentro do elevador e não lhes vemos as lágrimas porque também estamos absorvidos em nós. Deixamos as palavras nos dedos e o abraço nos phones altos.

— A Vitória era a melhor das vizinhas, quando fazia uma fornada de pão era para a rua toda. Mas era domingo quando perceberam que já não a viam há dois dias. Vivia sozinha e foi traída por um AVC. Mesmo assim foi salva no limite da vida, mas podia não ter perdido o lado direito ou a voz.

Os vizinhos são da nossa responsabilidade. São mais do que um evento de vida, marcam horários, ritmos e passos que duram décadas. Devemos tocar-lhes à campainha no mesmo dia em que deixarmos de ouvir o som dos sapatos. São estes minutos que devolvem vidas e são segundos que dão segundas vidas a muita gente. Nem precisa de ser pessoal, um vizinho que vive sozinho faz parte do nosso dever.

— A Inês chegava de viagem quando viu o vaso com a flor feito em cacos. Nem foi pela planta, mas sim a falta de cuidado de lhe ocultarem o acto sem um bilhete que a levou a escrever a todos os vizinhos da rua. Ela disse-lhes que aquela flor era de todos, era da rua. Que gostava apenas de ter lido um bilhete e que a falta de consideração a levou a escrever a todos. Que ainda assim deixava a porta aberta para quem quisesse fazer da rua amor, que gostava que enchessem aquele local de sorrisos e cuidassem mais uns dos outros.

Todos os vizinhos foram ter com a Inês, uns levaram-lhe admiração, outros espanto e todos se uniram em torno daquilo que lhe era comum a todos, a rua. Meses depois, a rua da Inês em Sines está repleta de buganvílias. Deixaram de ser estranhos para serem amigos.

Já não baixam a cabeça quando passam uns pelos outros e até pedem farinha para o bolo de domingo.

O problema reside em nós próprios, pensamos tanto em nós que esquecemos quem nos rodeia; não damos atenção ao que realmente vale a pena. Somos mais do like que do abraço e não nos lembramos que a partilha não está num click, mas num gesto tomado pelo coração.

— A Ana, no outro dia, foi à mercearia e quando saía ouvia de sussurro o senhor do café ao lado a dizer ao dono desta “É a nova vizinha, António”, contara-me dias depois que aquilo lhe soou tão familiar que já gosta mais de viver ali. Às vezes damos um abraço sem precisarmos de o dar realmente.

Levamos com o mau humor matinal daqueles que não conhecemos, mas que também não gostamos porque o filho mais pequeno deles chora a noite toda e não nos deixa dormir. O cortador de relva deles está assim há três anos e nunca mais o arranjam; o cão destes ladra noite e dia e já não o suportamos. Os filhos dão uma festa na ausência dos pais e ainda temos que levar com a música até tarde.

Mas também foram eles que nos seguraram a porta no dia anterior quando vínhamos com o mais novo da maternidade, que levaram os sacos da avó para cima e nos resolveram o problema do esgoto há dois anos. E alguma coisa pode ser mais pessoal do que tudo isto? São tão distantes como próximos.

São os estranhos que vivem mesmo ali lado. Porque os nossos lares são mais do que paredes e tectos. São pessoas para todos os dias e às vezes para sempre.