O Maria Matos como sintoma
Com os erros que também terá cometido, a equipa do Maria Matos conseguiu tornar-se num teatro insubstituível.
Não deixa de ser surpreendente que na actual discussão em torno da cedência do Teatro Maria Matos a uma empresa privada as dimensões simbólica e ritualística não tenham sido praticamente abordadas. Isto num campo em que estas dimensões devem estar subjacentes, quer seja na apresentação, quer na recepção dos públicos. Colateralmente, estas dimensões são também fundamentais na vida social gerada pela produção de um tipo de conhecimento que conjuga emoções e racionalidade. Esta é uma singularidade da actividade artística, tão pouco repetível noutros campos da actividade humana. Como é que então estas dimensões estão ausentes do debate?
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Não deixa de ser surpreendente que na actual discussão em torno da cedência do Teatro Maria Matos a uma empresa privada as dimensões simbólica e ritualística não tenham sido praticamente abordadas. Isto num campo em que estas dimensões devem estar subjacentes, quer seja na apresentação, quer na recepção dos públicos. Colateralmente, estas dimensões são também fundamentais na vida social gerada pela produção de um tipo de conhecimento que conjuga emoções e racionalidade. Esta é uma singularidade da actividade artística, tão pouco repetível noutros campos da actividade humana. Como é que então estas dimensões estão ausentes do debate?
Este é um primeiro sintoma que revela como a actividade artística se vem transformando numa parte da cadeia do consumo diário e os lugares onde estes actos acontecem são tidos apenas como equipamentos-máquinas de alimentação do fluxo de eventos para consumidores (dois termos do léxico da sociedade do espectáculo), facilmente substituíveis por outros equipamentos-máquinas por via de um processo administrativo. Foi, aliás, esta decisão a maior ligeireza da Câmara Municipal de Lisboa (CML) neste processo, ao submeter o simbólico e o valor da curta tradição a um acto administrativo. No contexto financeiro actual nada obstaria a que a CML não pudesse manter o Maria Matos, o Teatro Luís de Camões e o Teatro do Bairro Alto — como unidade de produção experimental —, desde que essa indicação fosse dada como uma prioridade na gestão da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC).
Contudo, um outro sintoma que emerge deste debate revela a importância do simbólico: o debate iniciado por uma parte da comunidade artística, tão pouco dada a atitudes políticas reivindicativas, tão pouco pró-activa na intervenção política da cidade. Esta tomada de posição é significativa de como o Teatro Maria Matos adquiriu um lugar fundamental na cidade ao ter arriscado ser um teatro que colocou no âmago da sua actividade a produção ousada de conhecimento, a crítica transcultural e uma ludicidade que se desejava ir além do consumo. Com os erros que também terá cometido, a equipa do Maria Matos conseguiu tornar-se num teatro insubstituível; também por isto este debate está a acontecer. E ninguém poderá afirmar que este perfil não teria continuidade apesar da saída dos programadores.
Programações contra a sala ou a favor é um falso dilema. Cada teatro tem os seus limites e as suas possibilidades que devem potencializar a programação — a Judson Church, onde nasceu a dança pós-moderna americana, é uma sala com quatro pilares no centro. Foram os artistas-programadores e o público cúmplice daquele lugar que criaram a sua aura.
Este anúncio da CML revela ainda outro sintoma: o da EGEAC, a empresa municipal que gere hoje a grande maioria dos equipamentos municipais, com a sua actual organização e modelo de gestão, ter grandes dificuldades em se ocupar de todos os espaços a seu cargo. Em abstracto, a participação de uma empresa privada na gestão de um equipamento da cidade não é um mal em si. Mas pode a CML assegurar que a empresa a quem for concessionado o Maria Matos, com o pretexto de ter lucro imediato, não vai programar stand-ups grosseiros, tão comuns noutros espaços empresariais? É porque não vale tudo o mesmo: um espectáculo deste género não vale o mesmo que uma peça da Cláudia Dias ou do Guillermo Calderón que uma empresa de eventos nunca irá programar.
Ao pretender que um acto administrativo possa transferir a massa crítica e a programação do Maria Matos para o Teatro do Bairro Alto, sob o pretexto que esta última (pequena) sala tem as dimensões do “público” do Maria Matos, a CML assume que se demite do trabalho continuado de formação de públicos e propõe a guetização de um tipo de teatro fundamental e de um público que ainda poderia crescer (até aos limites de uma cidade que tem 550 mil habitantes). A saída dos programadores, mas a conservação da actual equipa do Maria Matos, sem concessão a privados, pode ter um efeito invulgarmente positivo: o de permitir que uma nova geração de programadores possa aceder a um lugar de decisão artística, de programar, cuidando do património que lhe foi deixado. Como fazer? Abrir concurso público em que este pressuposto faça parte da política da CML e os critérios de selecção sejam exactamente estes: dar espaço e visibilidade e oportunidade a uma outra geração de programadores. Esta oportunidade nunca acontecerá na lógica de uma concessão a privados já providos de capital de investimento que vão querer rentabilizar de imediato.