Unicef subscreve críticas, SIC defende-se. Já há queixas na ERC e Ordem dos Psicólogos
Comissão de protecção de menores considera que o conteúdo do programa Supernanny, que este domingo se estreou na SIC, é “manifestamente contrário ao superior interesse da criança". SIC rejeita as críticas. No primeiro episódio, menor de sete anos é apresentada como o “Furacão Margarida”.
Uma criança porta-se mal, a família inscreve-se no programa e, caso seja escolhida, recebe a visita de uma “superama” para a ajudar a recuperar “o controlo da educação dos filhos”. Funciona assim o Supernanny, o novo programa de domingo à noite da SIC, que no dia seguinte à estreia recebeu as críticas da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), por considerar que existe um “elevado risco de o programa violar os direitos das crianças, designadamente o direito à imagem, à reserva da vida privada e à intimidade”.
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Uma criança porta-se mal, a família inscreve-se no programa e, caso seja escolhida, recebe a visita de uma “superama” para a ajudar a recuperar “o controlo da educação dos filhos”. Funciona assim o Supernanny, o novo programa de domingo à noite da SIC, que no dia seguinte à estreia recebeu as críticas da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), por considerar que existe um “elevado risco de o programa violar os direitos das crianças, designadamente o direito à imagem, à reserva da vida privada e à intimidade”.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social e a Ordem dos Psicólogos já receberam queixas sobre o programa. A Unicef e o Instituto de Apoio à Criança subscreveram as críticas.
Numa primeira análise ao programa de entretenimento britânico, agora reproduzido em Portugal, a presidente da CNPDPCJ, Rosário Farmhouse, considerou que o conteúdo é “manifestamente contrário ao superior interesse da criança, podendo produzir efeitos nefastos na sua personalidade, imediatos e a prazo”, escreveu num comunicado enviado nesta manhã às redacções.
Ao final da tarde, a SIC saiu em defesa do programa, justificando que este aborda "situações reais, ocorridas em ambiente familiar, de um modo responsável, não exibicionista e sem explorar situações de particular fragilidade".
A estação de televisão tece, em comunicado, que o Supernanny teve sucesso noutros países – como a Alemanha, Espanha, França e Suécia –, “onde os padrões de protecção dos direitos dos menores não se revelam menos exigentes do que os existentes em Portugal”. E, continua, essas experiências demonstraram que o programa “não gera efeitos negativos ou de censura em ambiente escolar e social, antes contribuindo para uma melhoria significativa da qualidade de vida familiar”.
A SIC advoga ainda que Supernanny é produzido e exibido respeitando a lei, com todas as autorizações necessárias, e com "um mero intuito pedagógico, não substituindo qualquer diagnóstico e/ou aconselhamento psicológico".
Cada episódio relata uma história diferente. O primeiro, transmitido neste domingo, passou-se em Loures, acompanhando uma mãe que “sente que está a perder o controlo da educação da filha”. A criança de sete anos é apresentada, no site da SIC, como o “Furacão Margarida”, a criança que “manda em casa” e “distribui gritos e palmadas” sempre que é contrariada. As imagens são apresentadas sem desfoque, dentro de casa.
Depois de apresentada a criança e o contexto familiar, Teresa Paula Marques, a psicóloga clínica apelidada “supernanny”, que conduz o programa, diz estar disponível para ajudar famílias como esta “a controlar a rebeldia dos filhos” e para “dar resposta aos apelos de pais e educadores”, como se lê no comunicado que apresentava o programa à imprensa.
Teresa Paula Marques é autora de quatro livros sobre infância e parentalidade e é, por vezes, convidada a comentar temas relacionados com psicologia infantil em programas televisivos.
Queixas à ERC
A CNPDPCJ, à qual chegaram queixas, garante que já “manifestou junto da estação de televisão SIC a sua preocupação face a este tipo de formato e conteúdos, solicitando uma intervenção com vista à salvaguarda do superior interesse da criança”.
A comissão pediu igualmente à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) para analisar o conteúdo do programa e encaminhou a queixa para a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens com competência territorial. A ERC confirmou, em comunicado, que recebeu "participações/preocupações subscritas por diferentes cidadãos visando" o programa, que serão apreciados pelo seu conselho regulador.
Também o Instituto de Apoio à Criança (IAC) e a Unicef Portugal apoiaram a posição da comissão de protecção de menores, durante a tarde desta segunda-feira. “Assistimos ontem a situações de conflito entre uma criança e sua mãe, ocorridas em contexto privado, as quais foram exibidas em horário nobre num canal televisivo de grande audiência” e a “um aconselhamento dito psicológico”, que “jamais” deveria acontecer “perante câmaras", denuncia a direcção do IAC.
Já a directora da Unicef Portugal, Beatriz Imperatori, instou o Estado a tomar medidas para "proteger a criança e o seu bem-estar", em conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Criança, e os meios de comunicação a assegurarem "sempre o superior interesse da criança".
Os responsáveis do IAC lembram ainda que a União Europeia está a trabalhar numa directiva que deverá entrar em vigor em Maio e irá restringir “ainda mais os direitos dos pais à imagem dos filhos, para que estes não possam ser privados de direitos fundamentais, apenas por serem crianças”.
Parecer negativo da Ordem
Também para a Ordem dos Psicólogos é “claro que a intervenção psicológica não deve ser associada a programas em que se exponham publicamente casos particulares”.
Num parecer datado de Março de 2016, feito a pedido da produtora do programa Supernanny, a comissão de ética da Ordem revelara a sua oposição à "prática da psicologia em programas de divulgação maciça". “Qualquer profissional de psicologia que intervenha neste contexto deve explicitar que não está a levar a cabo qualquer tipo de intervenção psicológica”, considerou o redactor do documento e presidente do comité de ética, Miguel Ricou.
Ao PÚBLICO, fonte do gabinete de comunicação da Ordem dos Psicólogos fez saber ainda que já chegaram queixas relativas à psicóloga que apresenta o programa. Não é possível precisar quantas, mas foram todas reencaminhadas para o conselho jurisdicional da Ordem, que “poderá abrir um processo ou arquivar”, adiantou. Neste momento, não decorre na Ordem qualquer processo disciplinar que envolva Teresa Paula Marques.
O parecer do comité de ética entende que o “espaço público mediático não pode ser considerado como um setting adequado para a intervenção psicológica”, assim como a “exposição pública de clientes não pode, de forma alguma, ser considerada no melhor interesse destes”. Em causa está também o risco de generalização das intervenções. “Com a exposição pública de casos particulares pode estar a promover-se a ideia de que estes poderão ser directamente aplicáveis a outras situações”, alertou Miguel Ricou, neste parecer.
“Por muito que a psicologia e a prática psicológica despertem um grande interesse social, é importante compreender que a sua transformação em espectáculo poderá levar a uma má interpretação dos seus propósitos e prejudicar as pessoas que procurem mimetizar alguns desses comportamentos”, lê-se ainda no parecer.
O programa Supernanny, criado em 2004 no Reino Unido (onde terminou em 2010, ao fim de seis temporadas), foi reproduzido em países como os EUA, Brasil e China, para além dos já mencionados. Em Portugal é produzido pela Warner Bros TV Portugal, responsável pelos programas Apanha se Puderes, da TVI, e Portugueses pelo Mundo, da RTP.
O programa também já valeu críticas ao Reino Unido por parte do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Em 2008, citada pelo The Guardian, a relatora Lucy Smith questionou, a propósito da privacidade e da relação com os meios de comunicação, a “invasão da privacidade das crianças em virtude de programas de televisão como Supernanny”.
A CNPDPCJ deixou um apelo aos meios de comunicação nacionais para que “assumam um papel responsável, protector e defensor dos direitos da criança”.