Ou Rosa celebrava a "missa" ou a igreja fechava
Há uma máquina montada. Em Reguengos de Monsaraz, à falta de padres, são os leigos que mantêm as celebrações dominicais. Oito mulheres e sete homens fazem uma espécie de missa, que não é missa. A prática que começou a generalizar-se na Igreja Católica em Portugal desde os anos 90 dificilmente colhe tantos adeptos como nesta unidade pastoral alentejana.
Uma das fiéis prepara as velas, ajeita o altar. Vêm as crianças da catequese e as cerca de 30 pessoas que neste domingo vieram à igreja da Vendinha, em Reguengos de Monsaraz, acabam de se sentar, pousando as carteiras no beiral dos bancos de madeira. A audiência, quase só mulheres, é o coro. As letras das músicas, impressas em acetatos, estão projectadas numa tela branca para que todos as vejam. A melodia é sabida de cor. O cântico de entrada está quase a terminar, quando Rosa Calado se levanta da primeira fila, a cantar, para tornar lugar no púlpito. Não há padre. É ela que o substitui. “Neste domingo, trouxemos aquilo que cada um de nós é, nas nossas fragilidades”, começa por dizer, como que contando a sua história.
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Uma das fiéis prepara as velas, ajeita o altar. Vêm as crianças da catequese e as cerca de 30 pessoas que neste domingo vieram à igreja da Vendinha, em Reguengos de Monsaraz, acabam de se sentar, pousando as carteiras no beiral dos bancos de madeira. A audiência, quase só mulheres, é o coro. As letras das músicas, impressas em acetatos, estão projectadas numa tela branca para que todos as vejam. A melodia é sabida de cor. O cântico de entrada está quase a terminar, quando Rosa Calado se levanta da primeira fila, a cantar, para tornar lugar no púlpito. Não há padre. É ela que o substitui. “Neste domingo, trouxemos aquilo que cada um de nós é, nas nossas fragilidades”, começa por dizer, como que contando a sua história.
Rosa, 55 anos, empregada fabril em Évora, ainda tem um “santo tremor” que sobe sempre consigo ao altar. Apesar de já ter dirigido centenas de celebrações dominicais, ao longo das mais de duas décadas que as tem a seu cargo. Começou de forma pontual, quando o padre tinha que ir à terra. Ou Rosa ia ou a igreja fechava. “O Nosso Senhor havia de meter as palavras certas na minha boca”, acreditou.
Se dependesse dela, aquela igreja, que quase parece uma pequena casa, nunca fecharia a porta. É pequena, caiada de branco, com um altar de pedra. Cá fora, emoldurada pelo olival e campos de pasto, cor de folhas e terra molhada.
Dentro, Rosa celebra uma espécie de missa que não é missa. Chama-se celebração da palavra, em substituição da eucaristia, que, diz a Igreja Católica, apenas pode ser feita por um padre. Na sua ausência, os cristãos designados para orientar as cerimónias seguem um guia de celebração. Há leituras, salmos, as mesmas orações, os mesmos cânticos, a comunhão e a oração dos fiéis. Só não há homilia — em sua substituição, os leigos fazem uma interpretação do evangelho — e a consagração das hóstias — estas são consagradas pelo presbítero numa missa anterior.
Tudo se tornou oficial quando o padre Manuel José Marques viu a Unidade Pastoral de Reguengos ficar sem sacerdotes que assegurassem o serviço dominical, nos inícios dos anos 2000. O padre criou um grupo, onde Rosa foi incluída. Escolheu gente da terra, conhecidos da igreja. Deu-lhes formação. Organizou uma agenda.
O grupo ganhou força e responsabilidade quando o “Manuel Zé”, como é conhecido, se viu com sete paróquias em mão, auxiliado apenas por um diácono. Eram 15 igrejas para dois homens só. Hoje há mais oito mulheres e sete homens a assegurar que as igrejas continuam de portas abertas.
“Se me dissessem que iria estar aqui nas celebrações tantos anos, eu tremia, tremia deveras. Teria até a tentação de dizer que não”, confessa Rosa. “Isto é um trabalho que nem é nosso. Temos que ser humildes. Crescemos muito”, diz a mulher, que chegou a trabalhar das 23h às 7h na fábrica, dormindo duas ou três horas para estar às 11h na catequese e ao meio-dia na missa. Hoje esta mulher, a quem a fé “faz bem”, só sai dali quando o padre ou a igreja o quiserem.
Florista, bancário, GNR
Escolhidas pelo padre, estas 15 pessoas “receberam a missão” do bispo de Évora. Fora isso, o formalismo fica à porta. Afinal, Rosa trata a audiência por “amigos”, senta-se nos bancos da plateia e canta durante toda a cerimónia. Usa a roupa de um dia normal. Não têm um curso específico nem um diploma.
As profissões dos orientadores são tão díspares quanto as suas idades: há uma assistente de call center de 35 anos, uma florista de 25, uma professora de 35, um bancário de 50, um agricultor reformado e um militar da GNR com 38 anos. Alguns foram escuteiros, dos coros ou grupos de jovens, a maioria são catequistas. Rodam entre si a vez de celebrar o sábado ou o domingo nas comunidades que lhes estão atribuídas. A máquina, oleada, funciona em pleno. Já é natural que assim seja.
Os crentes não se opõem, nunca o fizeram, garante o sacerdote. “Senti sempre que não houve nenhuma resistência, pelo contrário.” Recebeu vários agradecimentos quando a rotina se consolidou, diz. “Venha um qualquer, nós queremos é que haja celebração”, disseram-lhe. “De alguma maneira, quando os cristãos sentem esta necessidade de celebrarem o domingo, reúnem-se. Depois é preciso dar-lhe um nome e organizar a celebração, para que não se transforme numa reunião ou numa catequese.” O objectivo sempre foi claro: “Não o sendo, tem que ser o mais parecido com uma eucaristia.”
“Não estou ali para ser padre”
O que se passa em Reguengos de Monsaraz não é caso único: acontece noutras dioceses do Alentejo e também no Algarve e Trás-os-Montes. Ali, o papel dos leigos é apenas singular pela dimensão e organização. Noutros locais, “muitos padres não estão abertos a esta possibilidade”, praticada “desde os anos 1990”, diz Manuel José Marques. “Preferem ir às comunidades de mês a mês do que confiar o serviço em alguém que não foi ministrado”, entende. “Afinal, os padres não são todos iguais.”
É um sinal dos tempos, da falta de padres, do abandono do interior. Em Portugal há 3040 padres para 4377 paróquias, segundo o anuário católico, a cargo da Conferência Episcopal Portuguesa. E o número de sacerdotes diocesanos (que não pertencem a uma ordem religiosa e têm atribuídas uma ou mais paróquias) tem baixado de ano para ano.
Cerca de um terço das paróquias da diocese de Évora alternam entre missas e celebrações da palavra, orientadas sobretudo por diáconos permanentes, nalguns casos por leigos, explicou a diocese ao PÚBLICO. É uma das soluções possíveis para fazer face à crise das vocações. O outro recurso são os padres estrangeiros: das 157 paróquias da diocese alentejana, 22 estão a cargo de sacerdotes estrangeiros, sobretudo brasileiros e angolanos. Ainda assim, 108 paróquias não têm pároco residente.
A carência tornou-se “crítica” na aldeia de Cláudia Rocha quando esta tinha pouco mais de 20 anos. Não teve como não se chegar à frente. Aturou as questões dos amigos — “Mas tu és padre?” —, a desconfiança dos pais, os olhares curiosos de quem “via uma miúda frente ao altar”, a falar para uma assembleia que raramente ultrapassa as dez pessoas. Aos 32 anos, não lhe perdeu o gosto.
Era a única católica lá de casa. “Sempre tive necessidade de estar e partilhar com a minha comunidade mesmo que os meus pais não fossem religiosos”, recorda. Ia à catequese com as amigas. Ia à missa sozinha todos os domingos. Foi baptizada aos 17 anos e quando voltou à terra, depois da universidade, recebeu o convite do padre. “Fiquei lisonjeada e em pânico.” Mas a capacidade de comunicação, que aperfeiçoou no curso que a tornou assistente social, moldou-a para o papel.
“Há muita gente que vai à igreja, apregoa aqueles valores, mas não os reproduz na sua vida. Gosto de os colocar à prova. Se vejo que há um maior constrangimento sobre dado tema, vou por aí.” Cláudia faz por traduzir os textos bíblicos, desconstruir ideias preconcebidas, passar os valores cristãos. É assim há dez anos, nas cerimónias que dirige em Santo António do Baldio e no Carrapatelo, alternando com o padre, uma florista e uma socióloga. “Não sou ninguém para julgar, mas acho que estamos ali para transmitir sabedoria. São comunidades envelhecidas, muito resistentes à mudança, para quem muito poucos olham. Porque iriamos nós também deixá-los sozinhos?”, questiona.
A comunidade também não a abandonou quando pensou que o faria. Ao divorciar-se, questionou o padre se faria sentido continuar. “Para ele e para as pessoas, isso nem foi uma questão.” Continuou.
Cláudia não o faz para se valorizar. “Nem estou ali para ser padre. Estou ali para passar uma mensagem e questionar, mas isso nada tem a ver comigo. Poderia ser qualquer cristão naquele papel”, acredita.
Na verdade, a prática e a escassez aguçaram esse engenho nas pequenas aldeias de Monsaraz. À falta do padre e orientadores, são os crentes que abrem a igreja. Fazem uma pequena celebração, à sua maneira. “Estando envolvidas, as pessoas tornam-se responsáveis e levam o barco até onde for preciso.” Cláudia também poderá não estar sempre disponível para o ofício.
Tornar as coisas mais bonitas
Apesar de ter havido um certo reconhecimento do papel das mulheres na Igreja Católica, impulsionado pelo Papa Francisco, que criou no ano passado a Comissão de Estudo sobre o Diaconado Feminino, a posição da igreja e do sumo pontífice é clara: só os homens podem ser padres. Mas a discussão ganhou fôlego.
Curioso é que Dora Cruz, de 32 anos, não se lembra de outra cerimónia na aldeia do Campinho que não as dirigidas por mulheres. O que em Monsaraz “já está no hábito das pessoas”, “só é estranho para os de fora”, acredita.
Quando foi a sua vez de dirigir, “queria dizer tudo às pessoas, não deixar nada para trás”. Depois percebeu que não era o contexto histórico das leituras que os crentes da pequena aldeia, entre campos, queriam ouvir. “As pessoas abalavam daqui vazias.” Então ganhou ritmo, capacidade de síntese e à-vontade. Agora separa-se mais dos apontamentos que prepara durante a semana, desde que não lhe falte a “providência divina”.
A celebração dirigida por esta educadora de infância é uma coisa de família: o marido Francisco toca guitarra, o filho bebé já assiste, os amigos são pessoas da comunidade. “Nasci aqui, os meus pais são daqui, sempre estive aqui. Já que vínhamos à igreja de qualquer maneira, porque não contribuir para ela? Animar um bocadinho as coisas, torná-las mais bonitas?”
Os dois compromissos
As olarias, porta sim, porta sim, ladeiam o caminho até ao centro de São Pedro do Corval. A estrada sem passeios, com as casas brancas à boca da rua, há-de levar à pequena igreja no largo da aldeia. Joaquim Cebola, 65 anos, reformado da função pública, há-de preparar o altar sozinho, se não vier nenhum acólito. Acontece que os jovens, os poucos que permanecem na aldeia, já não se interessam tanto. Num dia bom, chegariam 30 a 40 pessoas à cerimónia.
Subirá ao altar em tons de azul, daquela igreja branca, vestido tal como está, calças bordô, camisa e casaco preto. Só veste a alva quem já era acólito.
Nem sempre Joaquim seguiu a educação cristã que tivera em pequeno. “Há um momento em que não somos capazes de encaixar aqui.” Havia de sair de casa para fazer o serviço militar na Marinha e “não estava para essas coisas”. Foi a sua “passagem pelo deserto”, diz hoje.
Regressado à terra, voltou à missa. Juntou-se ao coro, “de meia dúzia de pessoas, carolas”. Reconquistou a fé. E, volvidas várias décadas de ligação à igreja, “caiu-lhe nas mãos” aquela responsabilidade. Há cerca de oito anos fez a formação teológica através da diocese e dirigiu as primeiras cerimónias. Hoje já dirige funerais (exéquias) e leva a comunhão aos idosos do centro social. Todos os anos, em Outubro, faz a formação litúrgica. É a forma que a diocese encontrou para ir actualizando os estudos dos leigos. Alguns frequentam também os cursos de cristandade da Arquidiocese de Évora.
A Internet serve a todos como fonte de estudo. Rosa Calado deixou de ir a Fátima ou à livraria eclesiástica em Évora para comprar os livros dos anos A, B e C. “Googla” e encontra. Apesar do tom informal com que dirige a cerimónia na Vendinha e na Cumeada, sabe que não é a única a procurar os textos. A sua audiência é interessada, exige-lhe constantemente uma “prova de fogo”. “Agora estamos numa aldeia global, as pessoas não querem só a parte teológica, querem ver isso reproduzido nas questões da sua vida”, retorque. Precisa de tempo para meditar durante a semana e conseguir adequar o evangelho “àquilo que a comunidade pede” de si.
Pela disponibilidade que exige, nem sempre é fácil conciliar a vida eclesiástica e familiar. Para Joaquim, a fronteira é cada vez menor. Casado, com filhos, partilha com a mulher, salmista, esta “disponibilidade e vontade de servir”. “A percepção da vida antes e depois é diferente. Às vezes prejudicamos a família para servir os outros, porque são dois compromissos assumidos perante Deus: de um lado o matrimónio, do outro o compromisso perante a família cristã.”
Para este homem, a igreja é algo do qual todos se servem, mas à qual poucos servem. “Servi-la é o mais difícil. Por isso, quando seguimos este caminho, isto muda-nos.”