A fogueira das vaidades de um psicopata americano
O polémico livro de Michael Wolff serve para reforçar as ideias feitas sobre a presidência de Donald Trump. E diz bem mais sobre o estado da política norte-americana do que parece.
Na viragem para a última década do século XX, dois livros captaram de forma perfeita a atmosfera em que vivia a alta-roda nova-iorquina. O Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, e A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, deram conta de uma sociedade completamente disfuncional, amoral e superficial em que as aparências mandavam e a violência era tão física como psicológica. À época, Nova Iorque batia ao ritmo do coração de Wall Street, com os resultados especulativos do capitalismo promovido por Ronald Reagan a fazer milionários de um dia para o outro e a permitir todos os excessos.
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Na viragem para a última década do século XX, dois livros captaram de forma perfeita a atmosfera em que vivia a alta-roda nova-iorquina. O Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, e A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, deram conta de uma sociedade completamente disfuncional, amoral e superficial em que as aparências mandavam e a violência era tão física como psicológica. À época, Nova Iorque batia ao ritmo do coração de Wall Street, com os resultados especulativos do capitalismo promovido por Ronald Reagan a fazer milionários de um dia para o outro e a permitir todos os excessos.
Se nesses anos foi a ficção a fazer história, hoje, o registo do tempo ficou nas mãos de um jornalista polémico, Michael Wolff. E é sintomático que o primeiro livro a codificar a presidência Trump venha acompanhado de acusações de falta de rigor e de liberdades criativas em excesso na narrativa: provavelmente porque só assim se pode esculpir de forma rigorosa o clima político da pós-verdade.
O quarto de século que separa os dois períodos é unido por uma linha sequencial: foram os anos 80 da loucura bolsista que conferiram o carácter místico e o poder desmesurado a entidades como a Goldman Sachs e a Morgan Stanley, responsáveis pela crise financeira de 2008 que abriu caminho a vários populismos nos países ocidentais. Nesse sentido, é possível afirmar que o apresentador de reality shows Donald Trump é filho do actor de cinema Ronald Reagan — não só porque ambos passaram do partido Democrático para o Republicano, mas também porque ambos assinaram leis de enquadramento fiscal que privilegiaram os ricos em detrimento dos pobres.
Não que O Fogo e a Fúria se incomode com essas minudências: o livro de Michael Wolff é um relato directo dos primeiros meses caóticos da nova Casa Branca, em que o ritmo trepidante das incompetências só encontra paralelo nas confidências feitas ao jornalista-observador que se instalou num sofá da Ala Oeste da Casa Branca. É assim que se fica a saber que o Presidente passa horas a ver televisão e a discutir ao telefone segredos de Estado com amigos milionários; que grande parte da equipa da Casa Branca sente a responsabilidade de evitar que Trump se cubra de ridículo, ao mesmo tempo que acreditam na sua incapacidade funcional; que quase ninguém acreditava na vitória durante a campanha eleitoral; que o Presidente é um ignorante que se recusa a ler briefings e documentos oficiais e que nem a Constituição conhece.
Esta é uma casa Branca em que todos se odeiam: o populista Steve Bannon detesta o republicano Priebus e ambos desprezam os familiares mimados que são conhecidos como “Jarvanka” — corruptela dos nomes Jared (genro) e Ivanka (filha), os familiares próximos de Trump que são judeus praticantes e democratas convertidos que tentam conferir alguma grandeza ao homem que ocupa o “cargo mais importante do mundo”.
À distancia, esta é uma guerra que opõe as duas forças que elegeram Trump: a direita populista que se ergueu com o Tea Party e que quer destruir o sistema democrático norte-americano gerido, entre outros, por Roger Ailes e que teve como ponta de lança Steve Bannon; e o
o dinheiro conservador de Rupert Murdoch, que quer perpetuar um capitalismo tão selvagem quanto possível. Os choques diários entre ambos só não serão maiores porque a incapacidade mental de Donald Trump o impede de perceber exactamente o que se passa, alega o virulento Wolff.
As maiores revelações do livro têm que ver com o processo que deverá fazer cair esta presidência: a investigação que o procurador especial Robert Mueller está a fazer sobre as ligações entre a campanha presidencial e os operacionais russos. De acordo com Steve Bannon, citado extensivamente no livro, a conexão russa é razão para “traição” e há “hipótese zero” de que Trump não estivesse a par dos detalhes. Ao mesmo tempo, diz que até hoje o Presidente ainda não se apercebeu da verdadeira dimensão do risco que corre com a investigação nem com os vários laços que unem a família a investimentos russos.
Wolff, o egocêntrico
Michael Wolff é uma daquelas personagens maiores do que a vida, que podia ter sido ela mesma figura central de um romance sobre excessos. Como jornalista, passou pelo Hollywood Reporter, pela Newsweek e pelo USA Today, cobrindo a indústria dos media, mas o que lhe deu verdadeira notoriedade foram as suas colunas na New York Magazine e mais tarde na Vanity Fair — em que fazia um detalhado “quem é quem” da indústria dos famosos e dos media, que em grande medida se sobrepõe numa Nova Iorque cada vez mais fascinada por quem tem poder e que faz questão de medir esse poder através da intensidade com que brilham as estrelas.
A frase que melhor o caracteriza será a que saiu no perfil que a New Republic lhe fez em 2004, quando Michelle Cottle escreveu que o jornalista gosta de “ficar no centro das histórias que conta” e que para o conseguir “é capaz de escrever absolutamente qualquer coisa sobre qualquer pessoa”.
O seu trabalho valeu-lhe dois National Magazine Awards, em 2002 e 2004, para além de polémicas várias com outros jornalistas — como o mítico jornalista do New York Times David Carr, com quem desenvolveu uma relação profissional de amor-ódio. Ao mesmo tempo, escreveu vários livros, sendo o último um elogio ao poder da indústria televisiva chamado Television is the New Television. O seu trabalho mais famoso será a biografia semiautorizada que fez de Rupert Murdoch em 2010, chamada The Man Who Owns the News, igualmente criticada pela suposta falta de rigor no perfil traçado da poderosa figura, que também tem um lugar central neste livro sobre a Casa Branca de Trump.
Wolff é um deslumbrado com o poder e entrega-o de forma cénica neste livro, que, sendo muito crítico, é também uma homenagem à forma como o caos tomou conta da Casa Branca.
A verdade é que as ideias centrais do livro não só não foram desmentidas, como se confirmaram pelo que sucedeu nesta semana. Steve Bannon não negou qualquer das citações incluídas no livro, nem sequer a acusação de traição que dirigiu — tendo apenas explicado que se dirigia ao assessor e não ao genro de Trump. Sam Nunberg, o homem encarregue de explicar a Constituição americana a Donald, também não negou o relato feito no livro, dizendo apenas que Wolff se limitou a usar “floreados” na descrição dos factos.
Wolff terá assistido a demasiadas coisas na Casa Branca, mas não pode ter vivido tudo o que relata: quando cita conversas telefónicas de Trump com Murdoch, por exemplo, Wolff está a empurrar a fronteira do jornalismo para o âmbito da ficção, pois a única maneira de as relatar de forma rigorosa seria estando presente — o que não assume em nenhum momento.
Não deixa de ser sintomático que tenha sido preciso aparecer um escriba dado a devaneios com o rigor jornalístico para captar o instantâneo de uma presidência em descontrolo permanente. O relato despudorado e simplista de Wolff liga bem com o modelo caótico da Casa Branca e o registo impressionista capta bem um Presidente mais dado a improvisos do que a reflexões.
Todos contra todos
O que acaba por ser mais revelador da obra é a forma sistemática como todos tentam minar o trabalho de todos os outros, resultando num poder executivo em grande medida inoperante. Tirando isso, é importante perceber que nada no livro é verdadeiramente surpreendente — nem sequer o clima de traição permanente em que vive a Casa Branca.
Já os jornalistas do Washington Post, do New York Times, do Guardian e da Vanity Fair, para só citar alguns títulos, tinham relatado com minúncia as incompetências da Casa Branca. É verdade que ninguém o tinha feito de forma sistemática nem tão contundente: o livro de Wolff é um tijolo atirado para dentro de uma Sala Oval através de uma janela onde os vidros já tinham sido estilhaçados pelo trabalho de muitos bons jornalistas. Esse é o aspecto mais dramático dos anos em que estamos, que mesmo com todo o trabalho jornalístico dos últimos 18 meses ainda exista quem se choque com as revelações do livro.
É o sintoma da falha do alcance do jornalismo de qualidade, que já não chega ao grande público como acontecia anteriormente — na sociedade norte-americana são as televisões que mandam e, nelas, reina a Fox News, com a sua estratégia de descredibilização do jornalismo sério e o seu percurso de manipulação informativa.
Este processo nasceu nas redes sociais e é o reflexo de uma sociedade que entrou num mecanismo sistemático de recusa em aceitar a opinião de especialistas, preferindo funcionar com base em “achismos” — é isso que explica que este Governo tenha escolhido um céptico do aquecimento global para chefiar a agência do clima e um homem que suspeita de que a vacinação provoca autismo para a saúde pública. Foi aliás este sistema que permitiu a eleição de Donald Trump, um homem que tem tendências racistas, misóginas e manifesta absoluta incompetência para tratar de assuntos de política internacional.