Em defesa de um homem sem escrúpulos
Há três coisas que surpreendem na decisão da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género contra o fundador do semanário Sol.
Com uma rapidez impressionante, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género decidiu apresentar uma queixa-crime contra o jornalista José António Saraiva, que durante 22 anos foi director do Expresso e a seguir fundou e dirigiu o Sol, onde hoje é conselheiro editorial.
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Com uma rapidez impressionante, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género decidiu apresentar uma queixa-crime contra o jornalista José António Saraiva, que durante 22 anos foi director do Expresso e a seguir fundou e dirigiu o Sol, onde hoje é conselheiro editorial.
A primeira coisa que surpreende é que a instituição leve a sério José António Saraiva, autor de uma das mais extraordinárias violações da ética jornalista da história. Em 2016, no seu livro Eu e os Políticos, que a Gradiva publicou com gosto (e 13 edições), Saraiva violou pelo menos metade dos artigos do código deontológico da sua profissão, como na altura escrevi aqui. Nenhuma das 42 pessoas com direito a capítulo falara imaginando que um dia leria essas conversas de bastidores num livro. Na altura, até Pedro Passos Coelho se sentiu “desobrigado” em relação ao compromisso prévio de apresentar o livro. E agora, nem o Sindicato dos Jornalistas, corporativo como todos os sindicatos, se deu ao trabalho de sair em defesa de Saraiva ou da liberdade de expressão. O bom senso diz-nos que há coisas mais eficazes do que processar um homem cuja credibilidade e imagem pública estão desacreditadas. E se um homem se sentir galinha, a crónica de opinião controversa publicada há uns dias no Sol, saiu da mesma mente sem escrúpulos da qual saiu o livro de 2016.
A seguir, surpreende que seja esta comissão, cuja presidente foi escolhida por um governo progressista, a mesma que vem defender a visão mais antiquada da liberdade de expressão.
Francisco Teixeira da Mota, desde sempre advogado do PÚBLICO, especialista e pioneiro nesta área — foi o primeiro advogado de Portugal a levar um caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violação da liberdade de expressão (e ganhou) — diz no seu ensaio A Liberdade de Expressão em Tribunal (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013) que “a liberdade de expressão é não só um bem individual, mas também um valor colectivo numa sociedade democrática, permitindo a livre circulação das suas mais diversas informações e opiniões, mesmo aquelas que possam ser consideradas absurdas ou aberrantes.” É a primeira frase, não tem que enganar. Mais à frente, escreve que ainda parece ser maioritária a corrente, em Portugal, que “trata a liberdade de expressão como um direito de menor importância, que se deve subordinar ao direito à honra e ao bom nome”. Liguei-lhe para saber se havia evolução. “A evolução global mostra que há mais decisões mais modernas, mais europeias, menos paroquiais”, diz, mas que, nos tribunais superiores, que conhece melhor, há duas correntes claras: juízes punitivos versus juízes modernos. É no Supremo que se vêem mais juízes a perfilhar o entendimento da liberdade de expressão que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Estamos a falar de meia dúzia de casos? Pedi os números ao Ministério da Justiça. Na primeira instância, as estatísticas impressionam: houve 749 processos por difamação em 2012, 690 em 2013, 519 em 2014, 669 em 2015 e 660 em 2016, envolvendo um total de 4902 arguidos. Destes, houve condenações em 30% dos julgamentos. José António Saraiva precisa de um bom advogado.
É a este rol de queixosos que se juntou a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Deste debate sobre a liberdade de expressão, a nova presidente, Teresa Fragoso, faz a leitura mais conservadora. “A liberdade de expressão é um dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição, mas, como tem sido apontado pela doutrina e pela jurisprudência, pode ter limites que visam salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos, como os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação”. Como vimos, essa tem sido a posição de 30% dos juízes portugueses — se foram doutrina maioritária, já deixaram de ser. Teresa Fragoso explica também que a comissão avançou para a queixa-crime a 3 de Janeiro, depois de ter recebido uma queixa, na véspera, da Associação ILGA Portugal, e esclarece que “receber queixas” de casos de “discriminação e violência com base no género” faz parte do seu mandato. Não parece haver, no entanto, tradição europeia de serem as comissões de igualdade a processar quem tem opiniões ofensivas.
E aqui chegamos ao terceiro espanto. A comissão anunciou no seu comunicado que o texto de Saraiva “é profundamente atentatório da dignidade das pessoas transexuais e a sua mensagem é susceptível de favorecer a prática de actos de violência homofóbica e transfóbica”. À pergunta “em que medida considera real a hipótese de o texto gerar actos de violência” a resposta de Teresa Fragoso é longa, interessante e verdadeira, mas omissa. O comunicado público da CIG a denunciar Saraiva é perfeito até à frase “a CIG decidiu apresentar queixa no DIAP contra o jornal Sol”. Mas tal como o Papa não deve pedir aos humoristas franceses que não gozem com Maomé, não podemos pedir aos cronistas portugueses que sejam pessoas de bem. Atrás desse pedido, vêm os empresários, os autarcas, os deputados e os primeiros-ministros, sempre prontos a verem o seu bom nome e honra manchados por notícias que lhes são incómodas.