As nossas cidades são capazes de se alimentar?

O Colégio F3 da Universidade de Lisboa reúne diferentes faculdades num estudo alargado sobre a forma como as cidades se alimentam e as mudanças desejáveis, do aproveitamento de áreas agrícolas abandonadas à aproximação entre produtores e consumidores.

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Fernando Veludo / NFACTOS

Sabemos quantos alimentos são produzidos à volta das nossas cidades? Quantos entram diariamente e quantos saem? Quantos são efectivamente consumidos? E durante quanto tempo teríamos comida em caso de catástrofe, greve ou outro factor que alterasse o sistema existente?

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Sabemos quantos alimentos são produzidos à volta das nossas cidades? Quantos entram diariamente e quantos saem? Quantos são efectivamente consumidos? E durante quanto tempo teríamos comida em caso de catástrofe, greve ou outro factor que alterasse o sistema existente?

Este texto começa com tantas perguntas porque neste tema há, por enquanto, mais perguntas do que respostas. Precisamente por isso, o Colégio F3 (Food, Farming e Forestry), que reúne as várias faculdades da Universidade de Lisboa (UL), decidiu começar a trabalhar as questões da alimentação urbana e da sustentabilidade alimentar das cidades, cruzando diferentes áreas de conhecimento. O aspecto mais público desta iniciativa será um ciclo de seminários que começa nesta quinta-feira, em Lisboa.

“Se olharmos para a bacia alimentar na perspectiva da área que abastece uma região em alimentos, conhecemos a utilização dos solos”, explica Samuel Niza, do Instituto Superior Técnico e um dos oradores (com Henrique Cabral, da Faculdade de Ciências da UL) do seminário desta quinta-feira. “O que não sabemos exactamente são as quantidades de alimentos que são consumidos, as que vão para fora da região e as que vêm de fora.” Ou seja, apesar de sabermos que “cerca de 40% do território da região de Lisboa é superfície agrícola utilizada”, ignoramos se o que aí se produz é consumido localmente.

Alguns dos mais importantes actores no sistema alimentar são as grandes empresas distribuidoras, e “é possível, por exemplo, que alimentos produzidos em Loures sejam levados para um centro logístico mais longe para depois serem transportados novamente para Lisboa”.

Se conseguirmos um retrato aproximado destes circuitos, podemos pensá-los “de uma forma mais racional e que reduza a pegada ecológica”, explica o investigador, que faz parte do grupo de trabalho “Bacias Alimentares e Planeamento Alimentar Urbano”, que em breve irá começar a recolher dados mais concretos junto do Mercado Abastecedor da Região de Lisboa.

Uma das formas de tornar o sistema mais racional seria, de acordo com outra investigadora do Colégio F3, Isabel Rodrigo, do Instituto Superior de Agronomia (que irá participar no seminário de 12 de Abril), apostar nos circuitos curtos agro-alimentares, que aproximam produtores de consumidores.

“Este modelo surgiu no Japão, teve um grande avanço nos Estados Unidos, passou para a Europa, em França está muito desenvolvido, mas também em Espanha e em Itália, entre outros países da União Europeia.” E Portugal? “Estamos muito mais atrasados. Na sociedade civil estamos adormecidos relativamente a este tema e a nível político também.”

Há, apesar de tudo, alguns (poucos) bons exemplos, como o Circuito Curto Cabaz PROVE, que Isabel Rodrigo tem acompanhado.

Uma medida importante para impulsionar os circuitos curtos, defende, seria garantir que o abastecimento de cantinas escolares e outras cantinas públicas fosse feito preferencialmente com pequenos produtores locais e, se possível, biológicos.

“Já há algumas autarquias mobilizadas nesse sentido, mas há imensas dificuldades burocráticas” que passam, por exemplo, pelas regras de contratação pública. Aí seria importante olhar para as experiências de outros países. “A França tomou medidas que visaram facilitar o aparecimento e o reforço dos circuitos curtos”, sublinha. Não é um trabalho fácil, reconhece, contudo, a docente e investigadora. É preciso começar por fazer um levantamento dos produtores que existem na região e dos produtos que cada um poderá vender, assim como das necessidades das cantinas e de outros potenciais clientes. Depois, é necessário coordenar a oferta e a procura, de modo que não haja, por exemplo, excesso de batatas e falta de cenouras. Isto exige a participação dos produtores, que, por vezes, têm de ser “mobilizados e apoiados”.

Pagar o preço justo

Mas é um esforço que vale a pena, prossegue Isabel Rodrigo: “É um sistema que permite pagar ao produtor o preço justo, permite a manutenção da biodiversidade, da coesão social, a redução do desperdício alimentar e da pegada de carbono.”

Leonel Fadigas, da Faculdade de Arquitectura da UL e orador no seminário de 8 de Fevereiro, acredita que este é um caminho que está a iniciar-se, mas no qual já se deram passos importantes. “Esta é uma discussão que começou em vários países e que aborda a questão alimentar de uma perspectiva diferente da tradicional, muito voltada para um problema novo, embora isso não seja dito de forma expressa: a alimentação, especialmente das cidades, é hoje uma questão de defesa nacional.”

O que se tem vindo a constatar é que “por alterações dos comportamentos dos consumidores, dos mercados, abertura de fronteiras e especialização da actividade produtiva, estamos muito dependentes de circuitos longos”. As hortas urbanas e sociais, por exemplo, são uma das respostas a esta inquietação e a um desejo de auto-abastecimento de algumas comunidades, associado a uma procura de produtos alimentares mais afastados dos processos industriais de fabrico.

O crescimento das cidades, explica Leonel Fadigas, “fez-se quase sempre sobre terrenos agrícolas férteis, que lhes davam o abastecimento de que necessitavam”. Hoje, com o aumento da construção, os alimentos vêm de zonas mais distantes, muitas vezes de avião. O conceito de bacia alimentar tem que ver com a área, maior ou menor, que abastece determinada cidade — e é isso que é importante começar a conhecer melhor. Se Lisboa, por exemplo, ficasse isolada por uma catástrofe natural ou deixasse de receber alimentos devido a uma greve, conseguiria alimentar-se? E, em caso afirmativo, durante quanto tempo? É aqui que entra a ideia de defesa nacional.

Parte do trabalho do grupo “Bacias Alimentares e Planeamento Alimentar Urbano”, no qual Fadigas está integrado, passa, entre outras coisas, por identificar os muitos terrenos agrícolas que se encontram abandonados nas zonas em redor das cidades (por enquanto, os investigadores estão mais centrados em Lisboa) e que poderiam voltar a ser explorados. “Esses terrenos constituem um potencial alimentar que deveria ser aproveitado”, conclui Leonel Fadigas. “Há aqui novos desafios do ponto de vista da política alimentar.”

O ciclo de seminários O Planeamento Alimentar Urbano, organizado pelo Colégio F3 da Universidade de Lisboa, decorre entre Janeiro e Junho, com cinco sessões sempre a partir das 18h, no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) da Câmara Municipal de Lisboa. A primeira decorre hoje e tem como tema: “Pegada alimentar urbana: de onde vêm e para onde vão os alimentos consumidos nas cidades?”

Seguem-se a “Expansão das áreas urbanas e regressão das áreas agrícolas: o caso da Área Metropolitana de Lisboa” (8 de Fevereiro), “Perspectivar o futuro da alimentação nas áreas urbanas num mundo em mudança” (8 de Março), “Circuitos curtos agro-alimentares, o direito à alimentação e as redes cidadãs” (12 de Abril), “O clima do meu bairro: lições do passado para o consumo sustentável de alimentos no futuro”(10 de Maio) e “A influência da ética e da justiça alimentar na cidade” (14 de Junho). A entrada é livre, mas é necessário registo prévio para o email ciul@cm-lisboa.pt.