Portugueses descobrem molécula que faz as células andar para trás no tempo

Equipa do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, descobriu uma molécula que ajuda a reverter células adultas – e velhas – em células com a enorme plasticidade das embrionárias. Por que é isto importante? Porque é muito difícil fazê-lo em células envelhecidas. A regeneração de tecidos doentes ficou agora um pouco mais facilitada.

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Cortes de teratomas criados pela equipa em ratinhos, com osso, tecido nervoso, músculo ou pêlos Tânia Carvalho

Uma equipa de investigadores portugueses, do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, em Lisboa, descobriu que a manipulação de uma determinada molécula de ARN (ácido ribonucleico) é essencial para levar as células a andar para trás no tempo – passando de adultas, já especializadas e diferenciadas como as da pele, do coração ou do cérebro, para células semelhantes às dos embriões, com a extraordinária capacidade de se tornarem qualquer tecido do corpo.

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Uma equipa de investigadores portugueses, do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, em Lisboa, descobriu que a manipulação de uma determinada molécula de ARN (ácido ribonucleico) é essencial para levar as células a andar para trás no tempo – passando de adultas, já especializadas e diferenciadas como as da pele, do coração ou do cérebro, para células semelhantes às dos embriões, com a extraordinária capacidade de se tornarem qualquer tecido do corpo.

Entremos pois numa máquina do tempo biológica. Do que se está aqui a falar é mesmo disso, da possibilidade de regressar a um passado distante das células, quando estavam numa fase inicial de desenvolvimento embrionário. Os resultados desta reprogramação de células adultas – mais: e já envelhecidas – em células com características das células estaminais dos embriões foram agora publicados pela equipa portuguesa na revista científica Nature Communications.

Todas as células do organismo sofrem um processo gradual de envelhecimento que pode contribuir para o aparecimento de várias doenças, refere um comunicado de imprensa do IMM sobre o trabalho. Uma forma de combater as doenças associadas ao envelhecimento, diz-se ainda, poderá ser através da regeneração celular.

Aliás, o grande sonho da medicina regenerativa é usar células adultas, por exemplo da pele, e transformá-las em células parecidas com as estaminais embrionárias, com plasticidade para originar vários tipos de tecido do organismo. E em seguida levar essas células forçadas a assemelharem-se com as estaminais a tornarem-se células (adultas, diferenciadas) dos órgãos doentes do corpo, usando-as para os reparar. Como neurónios, para regenerar zonas do cérebro responsáveis por doenças neurodegenerativas como a Parkinson, ou células do coração para reparar aí tecidos.

Só que as células adultas envelhecidas tendem a ser muito resistentes a manipulações que visam a sua reprogramação celular. Ora no IMM, a equipa liderada por Bruno de Jesus e Maria do Carmo Fonseca descobriu que células retiradas da pele de ratinhos envelhecidos produziam muito maior quantidade de uma molécula de ARN do que células de ratinhos jovens. E, ao reduzir-se a quantidade deste ARN, degradando-o, viram que se tornava muito mais fácil fazer a reprogramação das células velhas.

Na senda de um Nobel

Vamos por partes. Contidas na molécula de ADN estão todas as instruções com que se constroem os seres vivos, e que depois são “traduzidas” através de outra molécula, o ARN. Muitos genes, tal como o seu ARN, resultam na formação de proteínas. Noutros casos, esses genes e o seu ARN não são o código de fabrico de proteínas; o que fazem é regular o funcionamento de outros genes.

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Da esquerda para a direita, grande parte da equipa: Tânia Carvalho, Sérgio Marinho, Maria do Carmo Fonseca, Bruno de Jesus e Catarina Vale IMM

Dada esta explicação, a equipa de cientistas, toda portuguesa e do IMM,  começou por fazer um rastreio de moléculas de ARN não codificantes de proteínas. Queriam identificar diferenças entre células muitíssimo jovens (ainda embrionárias), células adultas e células envelhecidas. Graças a essas comparações, chegaram ao ARN ligado ao gene Zeb2-NAT. Este gene tem como função regular um outro gene que, esse sim, codifica uma proteína, o Zeb2. Quanto mais ARN do Zeb2-NAT há nas células, mais proteínas existem também do (segundo gene) Zeb2. 

“Vimos que o que distinguia uma célula adulta de uma célula envelhecida era o nível dessa molécula de ARN. Se tirarmos esse ARN das células velhas, elas parecem-se mais com células novas? Vimos que sim”, explica-nos Bruno de Jesus. Mais: “O ARN que estudámos (do Zeb2-NAT) aumentava com a idade [das células], e a remoção desse ARN em células velhas levou a que adquirissem algumas características de células jovens, como a capacidade de serem ‘reprogramadas’”, conta o bioquímico de 37 anos.

É preciso também dizer que os cientistas portugueses seguiram na senda da descoberta do japonês Shinya Yamanaka (da Universidade de Quioto), que em 2006 identificou quatro genes que mantinham as células imaturas. Recorrendo a vírus, Yamanaka introduziu esses genes (Sox2, Klf4, cMyc, Oct4) em células adultas e isso forçou-as a reverterem-se para células estaminais pluripotentes. Conhecidas como “células estaminais pluripotentes induzidas”, esta descoberta valeu a Yamanaka, em 2012, o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina.

E agora a equipa de Bruno de Jesus (utilizando já ratinhos alterados geneticamente por uma outra equipa para activarem aqueles quatro genes) procurou aperfeiçoar a técnica de reprogramação celular dos japoneses. Porque, precisamente, essa técnica não funciona bem quando as células adultas estão envelhecidas. “Esses genes são necessários para a reprogramação celular, no entanto em células muito velhas o processo ou é muito ineficiente ou não ocorre de todo”, explica o investigador português. “Mas vimos que, ao diminuírem os níveis do ARN do gene Zeb2-NAT nas células velhas, elas tinham mais facilidade em serem convertidas em células pluripotentes.”

Para verificar se as células da pele velhas tinham realmente andado para trás no tempo celular, até se tornarem células estaminais pluripotentes induzidas, rejuvenescendo-se, a equipa portuguesa fez mais experiências. Injectou-as debaixo da pele de ratinhos. Se viessem a formar um teratoma, um tumor constituído por vários tipos de células e tecidos diferenciados, queria dizer que essas células tinham de facto capacidades pluripotentes. E foi o que aconteceu. 

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Cortes de teratomas criados pela equipa em ratinhos, com osso, tecido nervoso, músculo ou pêlos Tânia Carvalho

Nos teratomas formados nos ratinhos, os cientistas puderam observar osso, tecido nervoso, músculo ou pêlos. Um teratoma, diz Tânia Carvalho, a patologista da equipa, tem características extraordinárias. “Por comparação com outros tumores, por exemplo da mama, do cólon ou do pulmão, que apresentam características particulares destes mesmos tecidos, o teratoma tem origem em células germinativas com capacidade para se transformar em muitos tecidos diferentes, como pêlos, osso, cartilagem, músculo e tecido nervoso. Será quase como se de uma minipessoa se tratasse, ainda que muito desordenada”, explica a investigadora.

“Fizemos com que fosse possível reverter células adultas envelhecidas em células pluripotentes”, resume por sua vez Bruno de Jesus. “Estes resultados são um avanço importante no sentido de virmos a ser capazes de regenerar tecidos doentes em pessoas idosas”, adianta, agora citado no comunicado.

O que se segue agora no trabalho? “Os próximos passos serão ver se há um paralelismo com as células humanas, ver se há outras moléculas (outros ARN não codificantes) com funções semelhantes e testar o papel desses ARN quer na reprogramação celular quer na capacidade dessas células para formarem tecidos (capacidade de diferenciação)”, responde o investigador.

No Japão, já se transplantaram para os olhos de doentes com degenerescência macular da idade células da retina, geradas a partir de estaminais pluripotentes induzidas, que por sua vez tinham sido criadas a partir da pele. Num caso, em 2017, as células da pele vinham de um dador, noutro, em 2014, eram do próprio doente – o que remete para a questão de quando, afinal, poderemos ver um uso médico alargado destas células. “A translação para a clínica é sempre um passo moroso”, salienta Bruno de Jesus, considerando, no entanto, os dois casos no Japão como passos importantes.

Mas ainda há problemas a ultrapassar, como os relativos à qualidade das células estaminais pluripotentes. “A qualidade e a quantidade estão relacionadas com o envelhecimento da célula original, ou seja, quanto mais ‘danificado’ estiver o tecido, menos células estaminais pluripotentes conseguimos obter. O nosso trabalho foca-se nessa parte inicial, numa optimização do protocolo de reprogramação celular. Descreve uma dessas barreiras que aparecem com o envelhecimento.”

Ainda que haja um longo caminho a percorrer até ao uso habitual destas células em tratamentos médicos – outro problema é o risco de se tornarem cancerosas –, o avanço da equipa portuguesa tornou agora essa possibilidade mais real.