Revolução Russa: abalo e réplicas
Cem anos depois, é pouco sério querer representar a Revolução Russa como natureza morta no museu do século XX.
Quis a teia da História, e não certamente a intenção dos seus protagonistas, que na última noite de dezembro de 2017 encerrássemos o centenário da Revolução Russa para entrar na comemoração dos 200 anos do nascimento de Karl Marx. Uma não existiria sem o outro e não fosse a coincidência temporal continuaria a fazer sentido comemorá-los juntos, embora suspeite que esta não seja uma opinião consensual no atlas da esquerda.
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Quis a teia da História, e não certamente a intenção dos seus protagonistas, que na última noite de dezembro de 2017 encerrássemos o centenário da Revolução Russa para entrar na comemoração dos 200 anos do nascimento de Karl Marx. Uma não existiria sem o outro e não fosse a coincidência temporal continuaria a fazer sentido comemorá-los juntos, embora suspeite que esta não seja uma opinião consensual no atlas da esquerda.
O debate sobre o centenário da Revolução foi disso prenúncio. Publicaram-se artigos, edições especiais de revistas, revisitações de John Reed, escaparates de “Terror Vermelho”. Esses contributos atuais, a par dos livros que marcaram gerações, fazem parte da disputa da memória coletiva sobre “os dez dias que abalaram o mundo”.
É natural que assim seja. A História não é neutra, tem versões e leituras que se projetam nas lutas do presente e nos projetos de sociedade que subscrevemos. Os regimes não se dividem cientificamente entre felizes e trágicos, como se as ideias que lhes deram origem não tivessem nada a ver com o enredo. Esquecer isto ao revisitar o abalo de 1917 é apenas uma forma de desmoralização, não do regime, mas da Revolução.
Encaixa aqui a frieza com que o centenário foi celebrado na Rússia. No entanto, Putin não foi o único a retirar carga simbólica ao momento. Em Portugal, durante o ano, vários artigos limitaram-se a relatar a Revolução de Outubro como uma simples sucessão de factos históricos, importantes mas demasiado distantes para mobilizar ódios ou paixões.
É como se a viragem de um século de convulsões nos obrigasse a perguntar se a Revolução de Outubro ainda é capaz de entusiasmar espíritos revolucionários no século XXI. Ou se, pelo contrário, dela apenas resta uma memória incómoda, sem nada para celebrar.
No PÚBLICO, Manuel Carvalho escreveu que “O que entre 1917 e 1991 foi visto como um acontecimento fulcral do século passado parece hoje um exotismo incidental, insusceptível de festejo ou de condenação”. Como ele, Rui Tavares foi um dos que afirmou que já não há quem seja capaz de defender o legado da Revolução Russa. É uma conclusão demasiado precipitada para representar a esquerda sem equívocos.
Comecemos pelo fim. Cem anos depois, é pouco sério querer representar a Revolução Russa como natureza morta no museu do século XX, seja ela classificada como um facto histórico distante ou uma tragédia inesquecível.
A condenação do terror não é embaraço em que a esquerda se deixe atrapalhar. O regime soviético transformou-se num regime bárbaro, abdicou da democracia e, ao fazê-lo, negou o socialismo. Não era inevitável, mas o passado não se conjuga no condicional. Dito isto, estará tudo dito sobre a Revolução Russa?
Não. A revolução socialista também deu origem, no seu tempo e contexto, ao sistema político e económico que mais poder e liberdade concedeu ao seu povo. Em 1917, a Revolução foi capaz de retirar a Rússia do feudalismo e lançá-la para a modernidade com um projeto que inspirou direta ou indiretamente todos os movimentos progressistas e grande parte das conquistas populares do século XX.
Ainda que exista um debate sobre o isolamento e a incapacidade de transpor fronteiras como uma das debilidades da Revolução, só um movimento capaz de mobilizar povos para além delas poderia ter suscitado o nazismo e o fascismo como reação das classes dominantes. Da mesma forma que, depois de lhes impor a derrota, o seu espectro obrigou a cedências do capital que estão na origem dos Estados Sociais que as elites do século XXI têm vindo a desmantelar.
Foi um abalo que mudou o mapa da esquerda até aos dias de hoje. Às visões que a querem apresentar como obsoleta, a Revolução dialoga com o presente através da atualidade dos objetivos imediatos que proclamou: fim do imperialismo e da guerra, fim da dívida, distribuição da propriedade fundiária, direito à autodeterminação, direitos laborais, igualdade entre homens e mulheres, descriminalização da homossexualidade, legalização do aborto, universalização do ensino...
A memória também serve para despertar gerações dos argumentos com que nos querem embalar, é por isso que interessa disputá-la. A minha geração só conhece direitos graças a uma longa luta do socialismo, ainda que alguns deles não fossem sequer sonhados pelos trabalhadores de 1917, conquistas democráticas e sociais, pluralidade partidária e democracia representativa com sufrágio universal, às quais nenhum futuro socialismo poderá renunciar.
É por isto que há uma esquerda que olha para a Revolução de Outubro pelo que foi: um movimento de esperança para milhões de pessoas que mais tarde viria a desembocar num regime político de repressão e tragédia. Confundir as duas coisas tem como único propósito desacreditar qualquer força revolucionária como uma utopia anacrónica face a um capitalismo perpétuo.
Dizem os ideólogos contrários que num ideário socialista por concretizar não há mais do que uma profecia, mas nada tem sido mais profético do que a defesa do capitalismo. Algumas dessas utopias, como a inquebrável aliança entre democracia e mercado, acabaram em violentas ditaduras. Outras, como a mobilidade social e a globalização da riqueza, foram atropeladas pela austeridade impiedosa. Para milhões de pessoas no mundo, a guerra matou todas as promessas do capitalismo.
As transformações impostas ao capitalismo pela globalização, tendo benefícios como os avanços no conhecimento e na tecnologia, deixaram a injustiça social e económica como fratura exposta. No entanto, e ao contrário do que diz Paulo Rangel, o conflito social dos dias de hoje não nasce da clivagem entre “uma classe globalizada e uma classe não globalizada”, antes da violência dos poderes económicos no contexto da globalização financeira que gerou novas formas de exploração. Continua a haver luta de classes, e uma delas está a levar os povos a uma nova vaga de perda de direitos económicos, sociais e políticos.
Resta-nos agora saber se o legado da Revolução Russa nos dá pistas para enfrentar este novo mundo. E é aí que nos reencontramos com as comemorações dos 200 anos de Marx. Espera-nos mais um ano de debates, conferências e edições especiais, chamada à qual o Bloco de Esquerda não faltará e que será tão diversa quanto as correntes que se reclamam do socialismo moderno.
O contributo de Marx para a filosofia, economia e teoria do socialismo fundou um sistema ideológico sem forma política rigidamente pré-definida. De outra forma o conteúdo de Marx não seria marxista, uma antítese de profecia. O marxismo enquanto complexo teórico de explicação e superação do capitalismo tem como pressuposto a emancipação política e social da sociedade a partir de uma classe em concreto, os trabalhadores. Esta é uma herança que ninguém rejeita, da esquerda socialista à social-democracia mais ou menos moderada.
Marx escreveu as bases do pensamento socialista moderno. A Revolução de Outubro foi a primeira e maior tentativa de fazer o socialismo. Foi a possibilidade de assalto aos céus projetada para o mundo inteiro. Que dela também tenha surgido um regime indefensável nunca apagará a esperança que representou para milhões de pessoas. Celebrar a Revolução Russa e a queda do Muro de Berlim não só não é incompatível como é condição da esquerda de que me reclamo. Pior seria sacrificar o papel da memória para o futuro do socialismo em nome de uma vergonha sem razão.
Dizer que estas ideias morreram com o fim do século XX é tão absurdo como anunciar o fim da história. O fim das Revoluções, como o fim da história, não passa de um sonho das classes dominantes. Como poderia ser a esquerda capaz de abandonar o legado da Revolução? Ficar condenada a sucumbir à mera gestão do capitalismo, desistir do assalto aos céus? Nunca.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico