Governo português esconde há cinco semanas parecer jurídico sobre Manuel Vicente
Presidente angolano diz que processo contra ex-vice-presidente é uma ofensa e faz depender relações entre os dois países do seu desfecho.
O presidente angolano foi claro nas declarações que fez ontem sobre as tentativas da justiça portuguesa para fazer sentar no banco dos réus o ex-vice-presidente Manuel Vicente: são “uma ofensa” de tal forma grave que podem vir a condicionar todo o relacionamento entre os dois países.
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O presidente angolano foi claro nas declarações que fez ontem sobre as tentativas da justiça portuguesa para fazer sentar no banco dos réus o ex-vice-presidente Manuel Vicente: são “uma ofensa” de tal forma grave que podem vir a condicionar todo o relacionamento entre os dois países.
O Governo português, por seu turno, opta por não dizer nem uma palavra sobre o assunto. O primeiro-ministro tem nas mãos, há cerca de cinco semanas, um parecer que solicitou ao conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre se o antigo governante goza ou não de imunidade, perante as acusações de corrupção activa de que é alvo. Um parecer que anunciou publicamente que havia pedido mas cujo teor nunca divulgou, apesar dos insistentes pedidos nesse sentido por parte da comunicação social.
Ao contrário do que esperaria António Costa, o documento em causa subscreve as teses já defendidas não só pelo Ministério Público no âmbito deste processo como mais recentemente pelos juízes que irão julgar o caso, apurou o PÚBLICO: suspeito de ter corrompido o procurador português Orlando Figueira para que arquivasse processos judiciais em que era visado, Manuel Vicente não goza de imunidade.
Aproxima-se o momento em que a justiça portuguesa terá de decidir a melhor forma de continuar a lidar com o imbróglio jurídico-diplomático. O colectivo de juízes a quem foi distribuído o processo vai ter de decidir até ao próximo dia 22, data marcada para o arranque do julgamento, se tem condições para começar a julgar os arguidos mesmo sem a presença do ex-vice-presidente angolano ou se é preferível adiar tudo. Isto porque as autoridades angolanas têm invocado a suposta imunidade para se recusarem a notificar Manuel Vicente da acusação que sobre ele impende e da sua condição de arguido, e as portuguesas não o podem fazer sem a colaboração destas suas congéneres.
“Este julgamento está condenado ao insucesso”, antevê o advogado Dantas Rodrigues, explicando que o acordo de cooperação judiciária assinado entre os dois países dificulta os intentos do Ministério Público, uma vez que não prevê a extradição senão com a concordância do extraditado. Por outro lado, assinala o mesmo jurista, segundo aquele diploma bilateral, o direito de não comparência faz com que ninguém esteja obrigado a deslocar-se ao outro país no âmbito de um processo penal sem ser de livre vontade.
Nas declarações que proferiu na conferência de imprensa para assinalar os seus primeiros cem dias à frente do Governo, o presidente angolano João Lourenço assegurou não estar interferir no poder judicial: “Não estamos a pedir que seja absolvido, não estamos a pedir que o processo seja arquivado. Nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro: a intenção não é livrar o engenheiro Manuel Vicente da acusação”.
O que Luanda exige é que o processo relativo ao seu antigo governante seja tratado pela justiça angolana, e não pela portuguesa. “Lamentavelmente, Portugal não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Consideramos isso uma ofensa, não aceitamos este tipo de tratamento”, declarou o presidente, segundo o qual o governo angolano não se inibirá de tomar medidas adequadas no caso de o desfecho do caso não lhe agradar. “O que é que é preciso fazer para que as relações voltem aos bons níveis do passado recente? Apenas um gesto. Esse gesto é remeter o processo para Angola”, insistiu João Lourenço, poucos dias depois de o ministro da Justiça angolano ter revelado que a transferência do processo estava a ser discutida entre os dois países.
Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério dos Negócios Estrangeiros recusou-se a fazer qualquer comentário sobre o assunto, o mesmo tendo sucedido com a Presidência da República. A única informação que o ministério confirmou foi a de que já foi dado "agrément ao novo Embaixador de Angola em Portugal", que deverá ser Carlos Alberto Fonseca.
Há fontes judiciais que entendem que o mais avisado seria os juízes que vão julgar o caso separarem a parte do processo respeitante a Manuel Vicente, não para a remeterem para Angola, mas sim para ela retornar ao Ministério Público, que assim ficaria encarregue, uma vez mais, de tentar notificar o suspeito. Não o conseguindo, como é expectável que suceda, os procuradores poderiam levar a cabo uma missão aparentemente impossível, usando um mandado de detenção internacional que poderia ser accionado assim que Manuel Vicente viajasse para fora de Angola. Se este é ou não um passo juridicamente viável depende das opiniões.
Tanto a recusa do Ministério Público como a dos juízes encarregues do julgamento de encaminhar o processo do antigo governante para Luanda se apoia na ideia de que as autoridades angolanas não garantem, pelo menos no caso em questão, nem uma “boa administração da justiça” nem a adequada “reinserção social em caso de condenação”.
E se o Governo português se manteve em silêncio perante as ameaças de João Lourenço, o mesmo não sucedeu com os procuradores, que falaram pela boca do presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas.
"O princípio da separação de poderes é essencial num Estado de Direito democrático. O poder executivo não pode condicionar a actuação do poder judicial ou ordenar que os juízes decidam num determinado sentido que lhes seja mais favorável politicamente", disse o sindicalista. E sublinhou que "as decisões do sistema de justiça português relativamente a casos concretos são independentes da estratégia do Governo no âmbito das relações internacionais", acrescentando, porém, ser “desejável que se fortaleçam as relações judiciárias entre dois países que são tão próximos e tanto têm em comum". com C.C.S. e N.R.