É mais uma que fecha na Baixa: Livraria Aillaud & Lellos desmancha a casa
Histórica livraria da rua do Carmo, no Chiado, fechou as portas no virar do ano por causa do aumento “brutal” da renda que o proprietário não está disposto a comportar. E nem a distinção no programa “Lojas com História” da câmara de Lisboa impediu que as estantes se esvaziassem definitivamente.
Um cartaz improvisado onde se lê “Encerrado” denuncia o fim da histórica Livraria Aillaud & Lellos na rua do Carmo, em Lisboa. O jornal online O Corvo deu conta do fecho da casa na segunda-feira e a confirmação chegou ao PÚBLICO assim que batemos à porta da livraria. Já de portas fechadas, Teresa, Isabel e Conceição, que ali trabalham há décadas, estão a desmanchar um espaço que ajudaram a construir.
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Um cartaz improvisado onde se lê “Encerrado” denuncia o fim da histórica Livraria Aillaud & Lellos na rua do Carmo, em Lisboa. O jornal online O Corvo deu conta do fecho da casa na segunda-feira e a confirmação chegou ao PÚBLICO assim que batemos à porta da livraria. Já de portas fechadas, Teresa, Isabel e Conceição, que ali trabalham há décadas, estão a desmanchar um espaço que ajudaram a construir.
É mais uma casa quase centenária, que ali abriu em 1931 pela mão de duas famílias livreiras - os Lello e os Aillaud -, a fechar de vez as portas por conta do aumento “brutal” da renda, imposto pelo senhorio, e que o proprietário da livraria não está disposto a pagar.
São "muitas, muitas mesmo” as pessoas que, por estes dias, lhes têm batido à porta, diz Teresa Alemão, 61 anos, dos quais 25 foram dedicados aquela casa. "Temos clientes que quando souberam saíram daqui com os olhos rasos de água", conta.
A decisão de encerrar a livraria foi-lhes comunicada no início de Novembro pela família Lello, que detém também a célebre livraria homónima no Porto, junto à Torre dos Clérigos, por causa do “aumento brutal” da renda, imposto pelo senhorio, para aquele espaço. O PÚBLICO entrou em contacto com a Lello Editores, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Foram dizendo aos clientes mais antigos, que se tornaram amigos, de que iam fechar. "As pessoas batem à porta e dizem: 'Tenho muita pena'", partilha Isabel Ferreira, 62 anos, que ali está há 44.
O último dia de abertura ao público foi a 30 de Dezembro, mas os últimos dias têm sido ocupados a esvaziar as estantes da livraria. Sem possibilidade de os transferir para outro lugar, os livros vão sendo encaixotados, grande parte para serem devolvidos às editoras. No dia 15, contam ter a casa vazia para com “muita mágoa e muita tristeza”, a entregarem ao senhorio.
Conceição Fernandes, 57 anos, chega a meio da conversa porque esteve a contar a uns fregueses que a livraria ia mesmo fechar. "Agora que estamos a chegar ao fim, está a ser muito doloroso. Começamos a tomar isto como se fosse a nossa casa", diz a funcionária que ali trabalhou durante 27 anos.
As dificuldades pelas quais o mercado livreiro atravessa não deixam de ser tema de conversa. As grandes cadeias e a Internet ameaçam as casas mais pequenas. O mês de Dezembro, por exemplo, aponta Teresa, “foi um fracasso, ao contrário dos outros anos”.
Os últimos anos não têm sido fáceis para o sector livreiro em Portugal. Em Fevereiro do ano passado, o PÚBLICO dava conta do encerramento da Livraria Rodrigues, situada entre as ruas do Ouro e dos Sapateiros. Já em 2012, a Livraria Portugal, aberta em 1941, fechou as portas para dar lugar a uma loja de brindes também na rua do Carmo. Assim como a Livraria Barateira, desde 1914 na rua Nova da Trindade, que também fechou nesse ano. No Rossio, a livraria do Diário de Notícias (de 1938) foi substituída, em 2013, por uma loja de tecidos.
Mas a crise chega a outros sectores, apontam as funcionárias da livraria, referindo o desaparecimento de mais duas lojas antigas na rua, só nos últimos três meses: a Sapataria Hélio e a Camisaria Trezentos.
Uma “Loja com História”
A rua do Carmo é testemunha de muito da história do comércio de Lisboa. A agora de portas fechadas Livraria Aillaud & Lellos está frente a frente com a Luvaria Ulisses e a Joalharia do Carmo. Estas três fazem parte, aliás, do programa “Lojas com História”, promovido pela câmara de Lisboa, para “preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural”.
Mas nem essa distinção “safou" a Aillaud & Lellos. "A câmara disse-nos que não podia fazer nada porque o senhorio queria um aumento de renda e não podiam intervir", explica Isabel.
Questionada pelo PÚBLICO, a câmara de Lisboa referiu que quando teve conhecimento do fecho de portas da Livraria Aillaud & Lellos, “já existia acordo entre o senhorio e o inquilino para o encerramento do espaço no final do ano”. Ainda assim, acrescentou a autarquia, “o grupo de trabalho das Lojas com História, reuniu, por um lado, com a entidade que explorava a Livraria, e com o senhorio, tentando sensibilizá-lo para a perda da distinção da loja caso não se preservassem os elementos que deram origem à distinção”.
Sem o fausto da livraria do Porto, a Aillaud & Lellos organiza-se em torno de uma coluna central, que é também uma estante, e um friso que emoldura a quase totalidade da loja. Mas é a fachada, trabalhada em mármore, por António José Ávila do Amaral, colaborador de Cassiano Branco, para que se assemelhasse à lombada dos livros, que dá nas vistas. Nas colunas que ladeiam a porta de entrada, além dos motivos que aludem aos livros, estão gravados nomes de autores portugueses, como Camilo Castelo Branco ou Eça de Queiroz.
A par dos clássicos da literatura portuguesa, a livraria detinha obras de editoras “que noutro lado eram difíceis de encontrar”, como a Colibri ou a Antígona, aponta Isabel.
"Depois tínhamos sempre muitas promoções, livros muito em conta que não se arranjavam em mais lado nenhum", completa Teresa. A clientela já tinha alguma idade, mas, no Verão, a livraria animava quando chegavam os estrangeiros.
Já chegaram a ser sete funcionários, sobraram “as três da vida airada”. Que, entre caixotes e estantes vazias, lembram os clientes mais inusitados que por ali entraram, como um "senhor alto, todo bem composto" que chegava à estante central e rasgava sempre uma folha de um livro. "O senhor fazia sempre aquilo, até que um dia descobrimos. Acho que o senhor tinha problemas de cabeça e um dia veio-nos pedir desculpa porque não sabia porque fazia aquilo”, recorda Teresa.
Serão obrigadas agora a ir para o desemprego, depois para a reforma. Houvesse capital disponível e ainda fundavam as três uma nova livraria, atira Conceição. “Se saísse o Euromilhões, pode crer que abríamos”.