As origens ideológicas do egoísmo emergente
A influência de Ayn Rand no pensamento político nos EUA e outros países continua a ser forte e atual.
Egoísmo é uma palavra muito recente na história das civilizações. Vem da palavra latina “ego” para “eu” e constituiu pela primeira vez em 1751 uma entrada na Enciclopédia Francesa do Iluminismo. O significado inicial de egoísmo qualifica o comportamento das pessoas que se citam e falam muito delas próprias, das suas virtudes, da sua vida e do que lhes acontece. Este tipo de comportamento constituía uma forma de “vaidade, de soberba, de pequenez de espírito e, por vezes, de má educação”. Lê-se ainda na Enciclopédia que os senhores de Port-Royal, a célebre abadia perto de Paris que teve um papel importante na Contrarreforma e no desenvolvimento do Jansenismo, deixaram de escrever as suas obras na primeira pessoa por considerar que isso “procedia de um princípio de glória vã e de uma opinião demasiado boa sobre si próprio”. Para marcar a sua distância ridicularizaram os autores que escreviam na primeira pessoa afirmando que praticavam o egoísme, uma expressão que até então não se utilizava. Em Inglaterra, a palavra selfish só começou a ser usada no século XVII pelos presbiterianos com o significado de procurar satisfazer os seus próprios interesses.
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Egoísmo é uma palavra muito recente na história das civilizações. Vem da palavra latina “ego” para “eu” e constituiu pela primeira vez em 1751 uma entrada na Enciclopédia Francesa do Iluminismo. O significado inicial de egoísmo qualifica o comportamento das pessoas que se citam e falam muito delas próprias, das suas virtudes, da sua vida e do que lhes acontece. Este tipo de comportamento constituía uma forma de “vaidade, de soberba, de pequenez de espírito e, por vezes, de má educação”. Lê-se ainda na Enciclopédia que os senhores de Port-Royal, a célebre abadia perto de Paris que teve um papel importante na Contrarreforma e no desenvolvimento do Jansenismo, deixaram de escrever as suas obras na primeira pessoa por considerar que isso “procedia de um princípio de glória vã e de uma opinião demasiado boa sobre si próprio”. Para marcar a sua distância ridicularizaram os autores que escreviam na primeira pessoa afirmando que praticavam o egoísme, uma expressão que até então não se utilizava. Em Inglaterra, a palavra selfish só começou a ser usada no século XVII pelos presbiterianos com o significado de procurar satisfazer os seus próprios interesses.
O egoísmo pode ser considerado de um ponto de vista descritivo ou normativo. No primeiro caso, temos a tese do egoísmo psicológico, segundo a qual a motivação de qualquer ação humana é sempre satisfazer o seu próprio interesse, mesmo quando alguns a possam interpretar como um exemplo de altruísmo. No segundo, o egoísmo ético é uma tese normativa na qual a condição necessária e suficiente para uma ação humana ser moralmente correta é maximizar o interesse próprio (Shaver, 2015). A definição de egoísmo racional obtém-se substituindo na definição anterior a expressão moralmente correta por racional. No Cristianismo e na tradição moral que legou ao Ocidente, ajudar os outros, especialmente os pobres, os famintos, os doentes e os abandonados, ou seja, praticar aquilo que mais tarde, em 1852, Auguste Comte designou por altruísmo, é considerado uma virtude redentora. Ao longo da história do Ocidente vários filósofos e teólogos, entre os quais se destacam Aristóteles (384-322 a.C.), Tomás de Aquino (1225-1274) e Baruch de Espinoza (1632-1677), salientaram ser racional o homem procurar o que lhe é útil e dá felicidade. Thomas Hobbes (1588-1679), na sua teoria sobre a natureza e a moralidade humanas, fortaleceu a afirmação do egoísmo na cultura Ocidental. Segundo ele, o homem é essencialmente uma criatura selfish, quezilenta e agressiva, pelo que apenas um Estado forte pode evitar uma “guerra de todos contra todos”. Hobbes foi o primeiro a defender que todo o comportamento humano é em última análise selfish, ou seja, a defender a teoria do egoísmo psicológico.
Alissa Rosenbaum, que mais tarde adotou o nome de Ayn Rand, nasceu em São Petersburgo numa família judia burguesa no ano de 1905. O pai era farmacêutico e proprietário da farmácia e do prédio onde viviam. Desde muito cedo revelou uma extraordinária aptidão para escrever peças de teatro e novelas. Aos 12 anos assistiu à Revolução Russa e passados poucos anos os dirigentes bolcheviques confiscaram o negócio e os bens da família Rosenbaum, que fugiu para a Crimeia, onde viveu com grandes dificuldades e passou fome. Aos 20 anos conseguiu um visto para visitar familiares em Chicago e ao ver Manhattan do barco chorou, reconhecendo mais tarde serem “lágrimas de esplendor”. A sua grande ambição de ser escritora e argumentista de sucesso levou-a para Holywood, onde encontrou Cecil B. DeMille, que lhe deu trabalho. Em 1931, consegue a nacionalidade americana depois de se casar com um ator americano. A sua visão política do mundo consolidou-se após a Grande Depressão de 1929 ao considerar as políticas de reformas financeiras e de programas de desenvolvimento do New Deal como uma forma de “coletivismo”, logo uma perigosa imitação do bolchevismo ao qual se opunha visceralmente.
As teorias que desenvolveu podem ser interpretadas como um esforço de justificação moral de uma política que literalmente inverte o Marxismo. Neste, os trabalhadores produzem todo o valor enquanto os capitalistas sugam os resultados do seu trabalho. Na análise de Ayn Rand, exposta nos seus livros de grande sucesso The Fountainhead (1943) e Atlas Shrugged (1957) (publicado pela primeira vez em Portugal em 2017 sob o título A Revolta de Atlas), os capitalistas são empresários com qualidades notabilíssimas de liderança, iniciativa e inteligência que criam riqueza para toda a sociedade enquanto os trabalhadores das respetivas empresas beneficiam dessa riqueza, e viveriam muito pior se abandonados a eles próprios.
Ayn Rand organizou as suas ideias em torno de um conjunto de princípios a que pretendeu dar a respeitabilidade de uma teoria filosófica, com o nome de Objetivismo. A ideia central é a defesa de uma forma de egoísmo ético-racional que é a conjunção do egoísmo ético com o egoísmo racional, dado que no Objetivismo o egoísmo não pode ser justificado plenamente sem uma análise epistemológica baseada na razão. No seu livro The virtue of selfishness (1964), explica detalhadamente o tipo de egoísmo normativo que defende, incita a sociedade a praticá-lo e escreve: “Se o Homem aceita a ética do altruísmo, a sua primeira preocupação não é como viver a sua vida, mas como a sacrificar... O altruísmo mina a capacidade humana de entender o valor da vida individual; revela uma mente de onde a realidade do ser humano foi apagada.” Rand defende que “o Homem existe para si próprio e que a procura da sua própria felicidade constitui o seu propósito moral mais importante, pelo que não deve sacrificar-se pelos outros, nem sacrificar os outros para si próprio”.
A maioria dos filósofos contemporâneos rejeitam ou ignoram o Objetivismo devido à incoerência e confusão das suas ideias. Contudo, esta desvalorização não constituiu nenhum obstáculo para a divulgação e impacto que teve na sociedade americana. Pelo contrário, o Objetivismo permitiu defender o capitalismo radical como um sistema ético no qual os empresários de sucesso lideram o progresso da sociedade em benefício de todos. Apesar do Objetivismo ter ficado limitado a um grupo restrito de seguidores do culto em Ayn Rand, conhecido ironicamente por “O Coletivo”, o facto importante é que a sua influência no pensamento político nos EUA, Reino Unido e outros países continua a ser forte e atual. A resiliência e vigor das suas ideias são particularmente notáveis porque Ayn Rand era uma judia ateia que repudiava a moral judaico-cristã. Esta, apesar de todas as transformações sociais que se deram nos EUA, continua a ter alguma influência na sociedade. As ideias sobre o egoísmo de Ayn Rand conseguiram convencer muitas pessoas e passaram a constituir uma alternativa. Um exemplo desta ascensão é o resultado de uma sondagem realizada em 1991, pela American Library of Congress, para saber qual o livro mais influente nos EUA. Nesse estudo, Atlas Shrugged ficou em segundo lugar a seguir à Bíblia (Heller, 2009).
Atualmente, os livros de Ayn Rand são estudados, juntamente com os de Thomas Hobbes e Edmund Burke, em cursos de ciência política e economia em várias universidades dos EUA e através do mundo. No Reino Unido, o programa da disciplina pré-universitária de Política (A-Level Poltics) incluiu em 2016, pela primeira vez, a leitura dos livros de Ayn Rand. O banco BB&T fez doações a mais de 60 universidades e instituições de ensino superior dos EUA para ensinar aquilo que designa por “fundações morais do capitalismo”. Estes donativos, da ordem de um milhão de dólares, são feitos na condição de que os cursos passem a incluir a leitura e análise dos livros de Ayn Rand. Nas grandes empresas muitos empresários aconselham aos seus empregados a leitura dos seus livros.
Há um elevado número de políticos dos EUA, principalmente republicanos, que testemunham grande admiração pelos livros de Ayn Rand e afirmam terem sido influenciados pelas suas ideias. É o caso de Alan Greenspan, o economista que pertenceu ao “Coletivo”, foi presidente da Reserva Federal de 1987 a 2006 e que muitos consideram ter sido um dos principais responsáveis pela crise financeira de 2008-2009, devido às suas políticas de desregulação dos mercados financeiros, ou às políticas do capitalismo laissez-faire, usando as palavras de Ayn Rand. Em 4 de setembro de 1974 começou a exercer as funções de presidente do Council of Economic Advisors, posição para a qual foi designado pelo Presidente Gerald Ford. Mais tarde recorda o momento da posse ao escrever num livro autobiográfico: “Não passou despercebido que Ayn Rand tenha estado ao meu lado quando fiz o juramento da tomada de posse na presença do Presidente Ford na Sala Oval. Ayn Rand e eu continuámos próximos até ela falecer em 1982, e estou-lhe grato pela influência que ela teve na minha vida. Eu era intelectualmente limitado até a encontrar.”
Há muitos outros políticos dos EUA que dizem ter sido profundamente influenciados pelas ideias de Ayn Rand. Paul Ryan, atualmente speaker da Câmara dos Representantes nos EUA, e grande admirador de Rand, afirmou em 2003, numa entrevista, que costuma oferecer o livro Atlas Shrugged como presente de Natal e procura que os seus colaboradores o leiam. O Presidente Donald Trump declarou ser admirador de Ayn Rand numa entrevista realizada em 7 de abril de 2016 à jornalista Kirsten Powers. Apesar de citar nas entrevistas que apenas leu um número muito restrito de livros, disse ter lido e elogiou The Fountainhead, afirmando que “trata de negócios, beleza, vida e emoções interiores. Esse livro diz respeito a... tudo”.
Na essência da visão do mundo defendida por Ayn Rand está a tentativa de promover o individualismo humano para construir uma elite de “super-homens” que lideram o progresso da civilização humana. Esta forma extrema de individualismo representa uma perigosa tentativa de contrariar a natureza social do homem, que potencialmente poderá conduzir a comportamentos individuais e coletivos auto-destruidores. Ayn Rand cativa erroneamente os seus leitores acariciando-lhes o ego o convencendo-os que, cada um deles, seja quais forem as suas qualidades, pode ser um super-homem de sucesso se defender exclusivamente os seus interesses. Porém, considerar que o altruísmo não defende os interesses próprios é negar a felicidade e o bem-estar que resultam de ajudar os outros, especialmente os fracos e doentes, os pobres, os desalojados e os perseguidos. É negar que seja no nosso próprio interesse a contribuição, o empenhamento e, por vezes, o sacrifício feito na construção de uma sociedade mais justa e equitativa para bem de todos.
Este tipo de negacionismo fundamenta e favorece a fuga ao pagamento de impostos, a utilização dos offshores, a desregulamentação financeira, a luta contra a progressividade dos impostos e as formas cada vez mais variadas, sofisticadas e ubíquas de corrupção que proliferam em todo o mundo. Favorece ainda a ascensão do 1% que já possui cerca de metade da riqueza mundial. Estamos perante um negacionismo que se está a fortalecer, especialmente nos EUA com o atual governo, e que conduz à sociedade do egoísmo.
Prevalece a perceção de que os que praticam o egoísmo têm maior sucesso na conquista da prosperidade económica. É pois muito provável que o desenvolvimento e o enobrecimento do egoísmo tenha constituído uma forma de adaptação na fase atual da evolução cultural dominada pelo consumismo e pela tecnologia. O egoísmo promove e está frequentemente associado à cupidez ou ganancia, comportamento que está bem identificado desde tempos muito mais recuados do que o egoísmo. O egoísmo e a ganancia são indissociáveis do atual paradigma civilizacional e na prática contribuíram para o seu sucesso e para a sua insustentabilidade. Como é possível termos um mundo sustentável do ponto de vista social, económico e ambiental se o egoísmo e a ganancia forem os valores emergentes? Maravilhados pelo sucesso, desvalorizamos a insustentabilidade, e corremos como se quiséssemos atingir os limites do egoísmo e da ganancia, sem nos apercebermos que essa ilusão destrói progressivamente o respeito, a convivência e a cooperação com os outros e finalmente acaba por destruir as regras da democracia e da paz.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico