Um belo manto de música nova em poesia antiga
José Peixoto e Sofia Vitória gravaram poesia luso-árabe e medieval com músicas originais. Belo Manto, já nas plataformas digitais, chega este mês às lojas em CD.
Em 2016 o guitarrista José Peixoto trabalhou com a cantora Sofia Vitória num disco dedicado à poesia em inglês de Fernando Pessoa, Echoes, gravado em Abril desse ano. Mal sabiam que um ano depois voltariam a estúdio para gravarem juntos um disco bem diferente: Belo Manto, com música original baseada nas poesias luso-árabe e medieval portuguesa dos séculos X a XV. Já nas plataformas digitais, é este mês lançado em CD.
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Em 2016 o guitarrista José Peixoto trabalhou com a cantora Sofia Vitória num disco dedicado à poesia em inglês de Fernando Pessoa, Echoes, gravado em Abril desse ano. Mal sabiam que um ano depois voltariam a estúdio para gravarem juntos um disco bem diferente: Belo Manto, com música original baseada nas poesias luso-árabe e medieval portuguesa dos séculos X a XV. Já nas plataformas digitais, é este mês lançado em CD.
Começou assim: ele tinha de apresentar duas canções para outro projecto e agarrou num poema de Al-Mu’tamid e numa cantiga de amigo. “Fiz a minha maquete, em casa, mas precisava de uma voz, porque não podia mostrar aquilo a ninguém sem uma voz. E telefonei à Sofia.” Ela foi a casa dele, gravou, e ao ouvi-la José Peixoto achou que as canções deviam mudar de rumo: “Mal ela gravou, eu percebi, e acho que ela também percebeu, que havia ali matéria para um outro projecto que nós pudéssemos construir. E com a casualidade de termos já as duas direcções de base: os luso-árabes e as cantigas de amigo.” Começaram, então, a aprofundar a ideia. Por coincidência, José Peixoto foi convidado pelo maestro Christoph Poppen, director do Festival Internacional de Música de Marvão, a apresentar lá um projecto em 2017. E tudo se conjugou. “Nós tínhamos um embrião do projecto, tínhamos a maquete e o convite, que surgiu no final de 2016. Só tínhamos de preencher o espaço vazio.” Sofia Vitória: “Em termos de tempo, nós gravámos o Echoes em estúdio e logo a seguir começámos a trabalhar neste.” Assim nasceria o disco Belo Manto, gravado em Abril de 2017, um ano depois de Echoes.
Para gravarem a maquete, José Peixoto e Sofia Vitória fizeram uma primeira selecção de poemas com base em dois livros: O Meu Coração é Árabe, a poesia luso-árabe, de Adalberto Alves, e a Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade. Mas a música inspirada nesses poemas buscou caminhos que a afastassem do tempo da escrita, trazendo-os para o nosso tempo. E essa, a par do resgate de vozes poéticas de há séculos, é uma das maiores virtudes deste trabalho: enquadrar poesia antiga em música nova, contemporânea, sem abandonar uma atmosfera favorável a tal “casamento”. Daí que surjam, com ecos de trova, ritmos pulsantes de raízes portuguesas ou luso-árabes, mas em estruturas musicais mais livres, que por vezes parecem rasar a euforia do jazz.
Directamente das fontes
Há, no passado musical de José Peixoto, sementes férteis deste universo luso-árabe ou mesmo da música antiga que o rodeou: antes de integrar os Madredeus, ele começou a trabalhar profissionalmente, nos anos 1980, com Pedro Caldeira Cabral no grupo La Batalla e ao mesmo tempo com Janita Salomé num período em que ele estava a lançar o disco Cantar ao Sol. “E era este mundo. Havia aquele contacto com a música antiga, directamente com as fontes, que era o trabalho que o Pedro Caldeira fazia; e havia a visita do Janita ao mundo norte-africano, estilizada, com música contemporânea dele.”
Por outro lado, o trabalho de José Peixoto com vozes femininas, enquanto guitarrista mas também compositor ou produtor, não começou com Echoes, já tinha antecedentes. Fora dos Madredeus (onde pontificava a voz de Teresa Salgueiro), gravou Aceno com Manuela Azevedo e Filipa Pais (em 2003) Estrela com Filipa Pais (2004), Pele (com Maria João (2006) e Todas Las Horas Son Viejas, de e com María Berasarte (2008).
Em Belo Manto surgem, todos eles musicados por José Peixoto, poemas de Ibn Ammâr, Al-Mut’tamid (ambos do séc. XI), Dom Dinis (séc. XIII-XIV), Fernando Esquio (séc. XIII-XIV), Abu-L-Qâsim Ibn Al-Milh (séc. IX-X), Ibn Darrâj Al-Qastalli (séc. X-XI), João Roiz de Castelo-Branco (séc. XV), Ibn Abdun (séc. XI), Martín Codax e Pedro Meogo (ambos do séc. XII), todos com música original de José Peixoto, a par de uma composição original de Sofia Vitória, A árvore da vida, um instrumental com vocalizos.
“Este universo já me dizia muito”, diz José Peixoto ao Ípsilon. “Mas aqui não houve intenção nenhuma de fazer ou recriar música antiga, mas sim música original para poesia antiga, tentando respeitar a diferença dos universos. Porque os poemas árabes têm uma forma livre, aberta, não estrófica (pelo menos daquilo que nos chega traduzido), enquanto as cantigas de amigo têm repetições e outro tipo de aproximação.”
No canto, diz Sofia Vitória, a abordagem foi também “muito natural”: “Não houve preocupação de recriar nenhum tipo de som, ou ideia de som, associado a esta música mais antiga, mas sim a minha abordagem espontânea em relação a este material.”
Lisboa, em Fevereiro
O trabalho que antecedeu as gravações foi fluente e calmo, segundo diz Sofia Vitória: “Trabalhei com o que já trago da música que vou ouvindo, world music, portuguesa, grega, iraniana. Nós íamos trabalhando mais ou menos semanalmente, tema a tema, com calma. Trabalhando só os dois, gravando e ouvindo o resultado dessas gravações.” José Peixoto explica, por sua vez, como foram entrando no projecto os restantes músicos: “Fui fazendo os arranjos. Mas embora eu tivesse ideias, cada novo instrumentista, com o seu vocabulário, mostra que há sempre ali algo que pode ser acrescentado. O primeiro músico que associámos foi o Luís Peixoto, que por curiosidade é meu primo. Mas não foi por isso que ele entrou, foi por ser bom músico e tocar os instrumentos necessários: sanfona, bouzouki, bandolim. Fizemos um primeiro trabalho com ele e ficou assim estruturada a parte harmónica, dos cordofones. Depois entrou o Carlos Barretto, o pilar [no contrabaixo]; e por último o Quiné [percussão], até por uma questão física, porque não vive em Lisboa.” Quando foram para estúdio já foi sem surpresas: “Íamos fazer aquilo que já tínhamos ensaiado e bem ensaiado, e já conscientes do resultado.”
Apresentado pela primeira vez em público no 4.º Festival Internacional de Música de Marvão, com todos os músicos, na noite de 29 de Julho de 2017, e já disponível nas plataformas digitais, Belo Manto chega às lojas em formato físico este mês de Janeiro. E deverá ser apresentado num concerto em Lisboa, em Fevereiro, numa sala a anunciar.