Afinal, de onde vieram os actuais ursos-pardos da Península Ibérica?
Nova história da viagem dos ursos-pardos até à Península Ibérica inspirada no seu ADN e em fósseis. Segundo um novo estudo, os ursos-pardos actuais não terão descendido directamente dos ursos do Norte na última glaciação.
Havia uma história sobre os ursos-pardos que todos julgávamos como certa. Temo-la ouvido assim: depois das últimas glaciações na Europa ocidental, o Sul da Europa tornou-se um refúgio para ursos que chegavam do Norte. Viriam então daí os ursos-pardos que hoje vivem na Península Ibérica. Contudo, estudos mais recentes, como um na revista científica Historical Biology, reformularam essa história através do ADN e de fósseis desta espécie de ursos. Querem reescrevê-la desta forma: os ursos-pardos actuais não descendem directamente dos ursos do Norte na última glaciação. Estes ursos abrigaram-se algures na Europa continental atlântica e só depois “desceram” para a Península Ibérica.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Havia uma história sobre os ursos-pardos que todos julgávamos como certa. Temo-la ouvido assim: depois das últimas glaciações na Europa ocidental, o Sul da Europa tornou-se um refúgio para ursos que chegavam do Norte. Viriam então daí os ursos-pardos que hoje vivem na Península Ibérica. Contudo, estudos mais recentes, como um na revista científica Historical Biology, reformularam essa história através do ADN e de fósseis desta espécie de ursos. Querem reescrevê-la desta forma: os ursos-pardos actuais não descendem directamente dos ursos do Norte na última glaciação. Estes ursos abrigaram-se algures na Europa continental atlântica e só depois “desceram” para a Península Ibérica.
O urso-pardo (Ursus arctos), um mamífero com mais de 1,5 metros, tem garras longas, quase direitas, e com elas faz a demarcação visual e olfactiva nos troncos das árvores. O seu tamanho e cor do pêlo variam conforme o sítio onde vive, que pode ser em florestas densas, florestas montanhosas e na tundra. Nos meses mais frios pode ficar a hibernar em grutas.
Este é o ursídeo com maior área de distribuição, encontrando-se na América do Norte, na Europa ou na Ásia. Este peso-pesado das florestas está classificado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) com o estatuto de “pouco preocupante”. “Apesar de a população global estar estável e a sua área de distribuição ser grande, na Europa várias pequenas populações isoladas estão ameaçadas devido à proximidade com o homem”, alerta o site do Jardim Zoológico de Lisboa, acrescentando-se que os perigos que hoje enfrenta são sobretudo a destruição e fragmentação do seu habitat, assim como a caça. Em Portugal, ter-se-á extinto, enquanto espécie reprodutora, por volta do século XVII. Mas o último urso-pardo no território português terá sido morto em 1843, no Gerês, como relembra o livro publicado em Novembro de 2017 Urso-pardo em Portugal – Crónica de uma Extinção (editora Bizâncio), de Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano.
Mas como chegou este urso à Península Ibérica? É sempre uma aventura entrar na máquina do tempo para percorrer os caminhos do urso. A teoria do refúgio glaciar “atreveu-se” a fazê-lo. Dizia que durante as fases glaciares do Pleistoceno (entre há dois milhões e 12 mil anos) que as penínsulas do Sul da Europa se tinham tornado um refúgio para várias espécies de plantas e animais que não se adaptaram ao frio extremo. Quando as condições climáticas melhoraram, voltaram a expandir-se para norte. “Isto foi confirmado através de estudos filogenéticos de uma variedade de espécies, incluindo plantas, insectos e vertebrados, que mostraram que muitas populações do Norte da Europa tinham provindo das regiões do Sul”, lê-se no artigo. Uma das espécies que teriam ainda “vestígios” desta altura seria o urso-pardo, que ainda vive na Península Ibérica. Portanto, o urso-pardo que conhecemos teria descendido directamente dos ursos das últimas glaciações e a Península Ibérica seria o seu refúgio predilecto.
Agora, um novo estudo de uma equipa espanhola propõe uma reviravolta na história. “Durante o período da última glaciação [entre há 31 mil a 16 mil anos], o aspecto da Europa era um pouco diferente do que é hoje”, conta Ana García Vázquez, da Universidade da Corunha (Espanha) e principal autora do trabalho. Ora, a calota polar tapava completamente a Escandinávia e grande parte da Inglaterra e da Irlanda, que na altura estavam ligadas ao continente porque o nível do mar era mais baixo. Para completar este cenário, os Alpes e os Pirenéus formavam duas grandes barreiras, cobertos por glaciares. Antes deste período, os ursos-pardos espalhavam-se pelo resto da Europa, mas com este clima tiveram de procurar uma “casa” mais habitável.
O rasto destes ursos foi agora seguido através de fósseis de ursos, datados por radiocarbono, e cujo ADN mitocondrial (transmitido por via materna e contido nas mitocôndrias, as baterias das células), tal como o de ursos modernos da Europa Ocidental, foi analisado. “Vimos então que a teoria do refúgio glaciar, geralmente aceite, não funciona para esta espécie”, explica em comunicado Aurora Grandal-D’Anglade, também da Universidade da Corunha e outra autora do estudo.
Passagem pelas Ilhas Britânicas
Comecemos pelo ADN. Observou-se que, no Norte da Península Ibérica, havia três linhagens genéticas durante o Pleistoceno. Mas hoje só resta uma só linhagem na Península Ibérica, o que quer dizer que as outras que chegaram de sítios longínquos não sobreviveram aqui. Como tal, a equipa conclui que as linhagens do Pleistoceno se perderam e que os ursos que hoje existem cá chegaram mais tarde, já no Holoceno (época geológica iniciada há cerca de 12 mil anos e em que nos encontramos). Já depois de terem colonizado as Ilhas Britânicas, chegaram por fim há dez mil anos à Península Ibérica. Uma conclusão obtida pela datação dos fósseis: os das Ilhas Britânicas tinham 15 mil anos e os da Península Ibérica dez mil anos.
“Concluimos que a Península Ibérica não era o refúgio glaciar, pelo menos o Norte. Esse refúgio devia ser uma área mais central, como França”, indica Ana García Vázquez. “De França a Inglaterra, não haveria barreiras físicas, por isso entrar na Península Ibérica poderia ser mais complicado, com os Pirenéus cobertos de glaciares e pouca extensão de terra entre o mar e as montanhas. Outro problema seria o País Basco, localizado na entrada na Península Ibérica: tinha uma população humana importante e competia com os ursos por comida e pela ocupação nas grutas.”
Estaremos assim perante uma nova versão desta história para os livros de ciência? “Esta é apenas uma pequena parte da história dos ursos-pardos, e restrita a uma área particular, mas pode servir como um exemplo de como o urso-pardo é uma espécie plástica em termos de habitat”, salienta Ana García Vázquez. Mas nada termina aqui. “O próximo passo é descobrir onde era o refúgio [antes de virem para a Península Ibérica] desses ursos, por isso, será necessário mais amostras de ursos-pardos da Europa atlântica,” adianta a cientista.
Portanto, aguardemos pelos próximos capítulos da história evolutiva do urso-pardo na Península Ibérica. E, enquanto esperamos, podemos conhecer melhor este animal em Lisboa, na exposição Reis da Europa Selvagem – Os Nossos Últimos Grandes Carnívoros no Museu Nacional de História Natural e da Ciência ou vê-los ao vivo no Jardim Zoológico.