“Reinventar Portugal” - Sobre um discurso quase messiânico (sem Messias)
A mensagem de Ano Novo do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa deixou muita gente surpreendida. “Reinventar Portugal”, agora, porquê? Convém compreender o que ele quis dizer, antes de avaliar a pertinência do seu apelo.
Propõe nada menos do que uma visão para Portugal, melhor, a construção de uma visão, sugerindo já linhas de orientação precisas. Trata-se de definir um objectivo global, um fim que norteie a vida dos portugueses. Essencialmente, em três direcções que convergem:
1. É preciso trazer para a prática política e social uma certa espiritualidade que falta à mentalidade actual. Os sucessos económicos e financeiros não chegam, o povo exige mais – como se viu pela tragédia dos fogos. É aos valores afectivos e culturais específicos do povo português que se irá buscar esse suplemento de alma agora ausente;
2. É preciso trazer uma nova unidade à sociedade, que deve compreender não só a acção do Estado que assegura a segurança, e a justiça social, mas a própria relação de sociabilidade entre os cidadãos. Perante a extraordinária manifestação de afectividade activa de todo o Portugal (Estado, autarquias, empresas, indivíduos anónimos) para com as vítimas dos incêndios, porque não fazer com que essa solidariedade se possa transpor para os momentos bons, para o quotidiano e a convivência da vida normal? Eis um elemento decisivo da utopia do Presidente. Uma nova unidade entre os vários “Portugais” dispersos, entre o interior e o litoral, entre o campo e a cidade, entre os esquecidos e excluídos, e os privilegiados e responsáveis políticos. “Sobreporemos o que nos une ao que nos separa”. Utopia dos afectos mas também da reforma do Estado;
3. “Reinventar Portugal” significa “confiar no futuro”, confiar em nós próprios. Se nos focarmos todos nesse desígnio comum, transformar-nos-emos e transformaremos o país. Se provámos, em 2017, ser tão bons “na música europeia, na arte, na ciência, no desporto” e mesmo na política mundial (Guterres), é porque podemos ser “os melhores entre os melhores”. O nosso destino nacional combina-se com a nossa missão planetária – revelando assim a vocação universalista do espírito português, a lembrar o Quinto Império e outras visões proféticas da nossa cultura.
Temos agora uma ocasião única para tornar real esta utopia: a dor que gerou por todo o país a catástrofe dos fogos, e a compaixão que nasceu entre os portugueses, que atravessou o Estado e as instituições, devem ser lembradas, interiorizadas, para que se possa superar a “saudade dolorosa” e fazer do sofrimento uma força de resistência e de “reinvenção” do futuro. Reinventaremos Portugal. Temos a visão, a oportunidade histórica e os meios para a realizar. Um Portugal uno e solidário, confiante, democrático e consensual que devemos construir “com verdade, humildade, imaginação e consistência”. Valores do humanismo cristão bem temperados numa utopia realista. De um Presidente realista sonhador.
Cabe perguntar: como é possível que um espírito, precisamente, “realista”, (como Marcelo Rebelo de Sousa se caracteriza a si mesmo) proponha este tipo de ideal, aparentemente irrealizável, inexequível? A um país em crescimento, sem turbulências sociais e políticas de maior? Porque, este discurso obedece à lógica ancestral dos discursos de salvação (messiânicos, ou nacionalistas, evangélicos, terapêuticos, populistas); e a nossa sociedade não está doente nem ameaçada. Não tem inimigos nem precisa de um líder carismático; nem de anunciar a vinda de um “homem novo”, de um “novo português”.
No entanto, a lógica da salvação encontra-se embrionariamente no discurso de Marcelo: o nosso Futuro retomará o Passado glorioso, resgatando o presente doente, minado por um inimigo (a inércia, o desleixo do Estado e de todos, com mostrou a tragédia de Pedrógão), através do sacrifício (mortes, sofrimento). Se Marcelo fosse um líder tribunício, ávido de poder, e se se tivesse dirigido aos portugueses com injunções anti-institucionais estridentes do tipo “É preciso reinventar Portugal!”, teria produzido um discurso populista. Não sendo assim, foi um discurso quase messiânico (sem Messias) e proto-nacionalista – coerente e criador de sentido. Se as suas propostas não parecem irrealistas é também porque hoje, no contexto europeu e mundial, se abriu um espaço propício a um curioso discurso anti-populista mas que vai, no entanto buscar ao populismo temas e estratégias discursivos que utiliza (como o faz Macron e outros).
Marcelo sabe que o seu projecto tem limites, os que o capitalismo global impõe a todos os sonhos actuais de transformações radicais. Se “reinventar” significa “revolucionar” recomeçando do zero, não há espaço hoje, em nenhum país, para tais devaneios. É verdade que uma política dos afectos conduzida com rigor até às últimas consequências, tornar-se-ia revolucionária (veja-se o exemplo da utopia de Fourier): acabar com a desigualdade económica, com a injustiça social, com as disfunções gritantes do sistema educativo, promover uma saúde igual para todos, redefinir a democracia, cuidar primeiro das pessoas, eis alguns princípios e tarefas que lhe caberia cumprir – que implicariam o derrube das barreiras do capitalismo e dos credos políticos e morais mais sedimentados. Não é o que Marcelo quer. Mas entre as linhas vermelhas que nos são traçadas do interior e do exterior, há ainda uma larga margem para apresentar vários tipos de alternativas (limitadas): foi o que fez a geringonça, é o que faz o Presidente com a sua utopia realista. Por outro lado, só uma onda popular poderia tornar verosímil a ideia da sua concretização, onda difícil imaginar hoje em Portugal.
Resta que Marcelo detectou sinais de um fenómeno bem português: uma insatisfação subterrânea com raízes ancestrais e que perdura; e sinais de demasiadas frustrações que ficaram por resolver das promessas do 25 de Abril e outras que, entretanto, foram nascendo. Naquela margem de transformação possível de mentalidades, há mudanças profundas a operar na prática política e cívica do nosso povo e das nossas instituições. Entre a Razão cínica da realpolitik e a razão cândida da utopia não se ergue uma antinomia – mas um espaço a libertar, radicalmente a passo e passo.