A minha família é diferente da tua

Numa altura em que mais de 17% dos bebés nascem sem coabitação dos pais, que tal se deixássemos de impingir às criancinhas a versão waltdisneyana e heteronormativa do “E foram felizes para sempre”?

Monoparental, porque aconteceu mas também porque apeteceu assim. Com papéis, sem papéis. Debaixo do mesmo tecto ou em casas separadas. Sem filhos, com filhos: dos dois ou só dele ou só dela. Com dois pais, duas mães. Eterna enquanto durar ou até que a morte os separe. O figurino familiar e conjugal está finalmente a libertar-se de espartilhos moralizadores e a adaptar-se aos desejos e às possibilidades de cada um e ainda bem.

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Monoparental, porque aconteceu mas também porque apeteceu assim. Com papéis, sem papéis. Debaixo do mesmo tecto ou em casas separadas. Sem filhos, com filhos: dos dois ou só dele ou só dela. Com dois pais, duas mães. Eterna enquanto durar ou até que a morte os separe. O figurino familiar e conjugal está finalmente a libertar-se de espartilhos moralizadores e a adaptar-se aos desejos e às possibilidades de cada um e ainda bem.

Continua, como antes, a ser núcleo de afectos e sustentáculo financeiro, mas o facto de 17,1% dos bebés que nasceram em 2016 em Portugal terem chegado ao mundo sem pai e mãe a viverem sob o mesmo tecto diz muito do processo revolucionário em curso na realidade portuguesa - ainda um pouco à margem dos holofotes mediáticos e do escrutínio dos cientistas sociais, eles próprios surpreendidos pela escalada galopante das crianças nascidas nestas circunstâncias, sobretudo porque ocorre num cenário de contínua quebra no número de nascimentos.

As explicações sobre esta realidade ainda pouco estudada vão da emigração (ainda iminentemente masculina) às possibilidades inauguradas pelas alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida, passando pela disseminação do chamado living apart together, em que a conjugalidade mas também a parentalidade passou a dispensar a partilha de morada. E como avisou o norte-americano Andrew J.Cherlin, sociólogo e professor na Universidade de John Hopkins, num artigo que o The New York Times intitulou “A família americana em mudança”, a revolução ainda vai a meio.

Não será caso para sobressaltos ou para vaticínios apocalípticos sobre a desagregação da célula familiar. Afinal, nada nos mostra que a revolução em curso nos conduza a um lugar pior.

Se recuarmos alguns séculos, abunda a informação que nos demonstra que o casamento para a vida é uma instituição social e não uma prerrogativa genética. Os cisnes e os pinguins acasalam para a vida, mas os humanos não são nem um nem outro.

Portugal pode ter chegado tarde a esta nova realidade – caleidoscópica, fragmentada. Mas todos sabemos quão acelerada costuma ser nestas matérias a adesão dos portugueses aos novos costumes – as quebras abruptas no casamento e na natalidade, o aumento dos divórcios e a união de facto estão aí para o provar. Não passaram tantas décadas desde que o – curiosamente solteiro – Salazar disseminava o seu ideal de família indissolúvel e esteio do regime: ele provedor, detentor único do papel de representante da família no exterior, ela cuidadora do lar, dona de coisa nenhuma a não ser da chave da despensa.

Este ideal da família salazarista – patriarca, hierarquizada – manteve-se, com algumas nuances legais, até que, no pós-25 de Abril foi escancarada a porta do divórcio mesmo aos casados pela omnipresente Igreja católica. Muito para além da bebedeira colectiva que se instalou nos anos que se seguiram ao garrote ditatorial, que levaram por exemplo a um boom de gravidezes adolescentes, deu-se o adeus definitivo à sacralização do casamento: de eterno e infinito passou a uma relação circunstancial, facilmente desfeita. E deixou, à mesma velocidade de um TGV, de ser o acto fundador da conjugalidade, primeiro, e da parentalidade, depois.

Resultado: além dos 17,1% dos bebés que nasceram sem coabitação dos pais em 2016, 52,8% dos nascimentos ocorreram fora do casamento, naquele mesmo ano.

E num cenário em que os dois membros do casal prosseguem nas suas profissões e usufruem dos respectivos salários, gerou-se um equilíbrio que, ainda que precário, se mostrou muito mais igualitário – se ignorarmos a parte da desigualdade salarial e dos diferentes investimentos na carreira a pretexto das exigências colocadas pela existência de filhos pequenos.  

Foto
Victor Ruiz Garcia/Reuters

Por outro lado, parece-me claro que se as pessoas se submetem de livre vontade à dolorosa ruptura que um divórcio acarreta é porque ainda acreditam na possibilidade de viver melhor doutra maneira, por oposição a casamentos que não passam, para utilizar uma expressão do psicólogo Eduardo Sá, de uma espécie de “solidão assistida” em que cada um vai ficando infeliz devagarinho, numa espécie de “divórcio às prestações” e que – desde que salvaguardada a imperiosa necessidade de as crianças se sentirem muito bem-amadas, seja em que circunstância for – todos podem sair a ganhar duma ruptura conjugal e das recomposições familiares de todos os géneros e feitios que daí possam resultar.  

Está na altura de revelar estas novas formas de família, hétero ou homossexuais, com ou sem papéis, monoparentais ou sem filhos, com papéis, sem papéis, debaixo do mesmo tecto ou em casas separadas, mais instáveis e voláteis, é verdade, mas também muito mais exigentes no afecto que elegem como principal elo. Não me parece a mensagem que daqui possa escorrer para os filhos seja pior do que quando o casamento era sagrado e inviolável, doesse o que doesse. Por isso, e que tal se deixássemos de impingir às criancinhas a versão waltdisneyana e heteronormativa do “E foram felizes para sempre?”