Os iranianos já não têm medo do ayatollah
A República Islâmica que Ali Khamenei ajudou a fundar, há 38 anos, já enfrentou muitas convulsões e sobreviveu. É provável que o mesmo aconteça com os protestos destes dias. Mas nem tudo ficará igual. Nem para o regime nem para o seu Guia Supremo.
É o mais poderoso dos homens da República onde mais se gritou “morte à América” — e que é, ao mesmo tempo, o país da região onde mais se simpatiza com os norte-americanos (não com o Governo dos Estados Unidos). Nos últimos dias, o grito de “morte a...”, tão frequente que quase parece impossível para muitos iranianos protestarem sem gritarem “morte a...” alguém, foi-lhe pela primeira vez dirigido.
O académico irano-americano Karim Sadjadpour defende há anos que a legitimidade do Guia Supremo, o ayatollah Ali Khamenei, foi uma das várias vítimas do chamado “movimento verde”, em 2009, quando o regime esmagou meses de protestos em que dezenas de milhares de iranianos denunciavam umas eleições consideradas fraudulentas.
“Ao longo de duas décadas, ele tinha tentado cultivar uma imagem de guia imparcial e magnânimo, acima das rixas políticas, mas o seu desafiante apoio público ao radical Mahmoud Ahmadinejad — no meio de revoltas populares em massa e fendas inéditas entre as elites políticas do país — expô-lo como um autocrata sectário e mesquinho”, escreve Sadjadpour num perfil do chefe de Estado, comandante-chefe e principal ideólogo do Irão.
Aos 78 anos, Khamenei, no cargo que antes só foi de Khomeini desde 1989, assiste a mais uma vaga de manifestações no país onde controla todas as áreas importantes (directamente ou através de quem nomeia). Mas se em 2009 o descontentamento tinha um motivo muito concreto, a quantidade de razões por trás dos protestos que começaram no fim do ano (inicialmente promovidos para prejudicar a imagem do Presidente Hassan Rohani, um centrista moderado) levou os manifestantes a escolher palavras de ordem impensáveis.
Enquanto uns pedem o regresso do Xá, mesmo em Qom, espécie de capital dos estudos islâmicos no país, outros gritam “fora com os mullahs” ou mesmo “morte ao ditador, morte a Khamenei”. Slogans considerados tão inaceitáveis que, segundo contam os poucos jornalistas estrangeiros em Teerão, estão a deixar muitos reformistas de cabelos em pé. Nem eles, incluindo os que saíram à rua em 2009, dizem, alguma vez quiseram derrubar realmente a República Islâmica, antes reformá-la por dentro.
Foi preciso esperar até terça-feira para que o Guia Supremo comentasse os protestos. Fê-lo em duas ou três frases para, em resumo, responsabilizar “agentes estrangeiros”. Khamenei falará à nação sobre o tema “quando for o momento adequado”, acrescentou. É um ayatollah mais prudente este, comparado com o de 2009, que prefere deixar apoiantes e críticos esgrimirem argumentos em público e manter-se resguardado até perceber a dimensão da revolta.
Com protestos sem líderes ou um motivo específico nunca se sabe: podem esfumar-se depressa, debaixo dos canhões de água e das balas, podem atrair cada vez mais gente — quando uns perdem o medo, outros tendem a segui-los — até que as classes mais politizadas da capital decidam juntar-se a estes manifestantes que vêm das províncias. E quando nas ruas se unem os mais desfavorecidos à classe média que está farta de ter dinheiro e continuar a enfrentar restrições sociais, culturais e políticas, o resultado costuma ser uma revolução. Ou um “Despertar Islâmico”, como Khamenei descreveu as revoltas que varreram parte do Magreb e do mundo árabe em 2011.
Para Khamenei, o mundo está a meio de uma viragem, a caminho do início de uma “nova era total”, e esse movimento, que só resultou e produziu paz na Tunísia, foi uma espécie de prólogo a uma revolta global contra os Estados Unidos e Israel. A crise financeira de 2008 e os protestos conhecidos por Occupy Wall Street são outra prova, considera. Os cartazes onde se lia “Nós somos os 99%”, comentou em Outubro de 2001, “significam que 99% dos americanos são dominados por 1%... Hoje, o sistema capitalista chegou a um beco sem saída. Talvez demore anos até assistirmos às consequências desta morte e até que se atinja o seu fim completo. Mas a crise no Ocidente começou a sério”.
O declínio ocidental
Em geral, deste lado do mundo, pensa-se em Khamenei como um religioso radical, decidido a manter um país que já foi moderno, retrógrado e isolado do progresso externo. Mas o Irão é o país dos paradoxos, do lenço islâmico usado a deixar ver o cabelo, das festas em que se discute tudo o que não se diz na rua, do melhor cinema e da música mais subversiva, mesmo quando era tocada e cantada em caves (os concertos voltaram a ser autorizados com Rohani na presidência), das palavras-passe para pedir álcool ou carne de porco nos melhores restaurantes.
Khamenei não é excepção, na sua complexidade. Por exemplo, o seu anti-imperialismo não vem da religião, pelo contrário, fundou-se na convivência com os círculos intelectuais seculares da oposição ao Xá Mohammad Reza Pahlavi, altura em que o modelo de cultura ocidental era visto como estando em declínio, em simultâneo com a ascensão do chamado Terceiro Mundo, “composto pelos pobres e pelas nações colonizadas, que são ao mesmo tempo revolucionárias”, nas palavras do escritor Daryush Ashuri, contemporâneo de Khamenei.
O papel dos EUA e da CIA no golpe contra Mohammed Mosaddeq, que enfrentara os interesses britânicos no país mas confiava nos americanos, é visto como o pecado original. Foram os EUA a convencer o Xá, não o contrário.
Khamenei nasceu a tempo de se lembrar do nacionalista Mosaddeq, mas longe do seu gabinete em Teerão. Nasceu, adequadamente, na cidade mais santa do Irão, Mashad (Nordeste), precisamente onde começaram os protestos, no dia 28, impulsionados pelos líderes religiosos locais contra Rohani. Segundo de oito filhos, o seu pai era um estudioso religioso com posses modestas — Khamenei seguiu os seus passos no seminário. Estudou em Qom e ali se juntou ao movimento religioso de oposição liderado pelo ayatollah Ruhollah Khomeini, em 1962.
Entre essa altura e a revolução em que haveria de ter um papel predominante, continuou os estudos religiosos mas promoveu contactos e relações com os intelectuais seculares. Leu muito, romances e poesia, ouviu muita música, pensou muito e concluiu que a ciência e o progresso são a “verdade da civilização ocidental”, uma verdade que ele quer ver aprendida pelos iranianos, ainda que nem tudo o que constituiu essa civilização seja “bonito”.
O milagre de Os Miseráveis
Nenhum outro actual marja (ayatollah veterano) ou faqih (jurista islâmico) importante tem um passado tão cosmopolita, sublinha o jornalista Akbar Ganji no longo perfil que dedicou ao Guia Supremo em 2013.
Para além dos clássicos iranianos, Khamenei devorou Leo Tolstoi, Mikhail Sholokhov, Honoré de Balzac ou Victor Hugo. “Na minha opinião, Os Miseráveis é o melhor romance escrito na história. Eu não li todos, claro, mas li muitos relacionados com acontecimentos em vários séculos, li alguns romances mesmo antigos. Por exemplo, li A Divina Comédia. Li Amir Arsalan. Também li As Mil e Uma Noites. Mas Os Miseráveis é um milagre no mundo dos romances. Já o disse e repito, leiam Os Miseráveis pelo menos uma vez. É um livro de sociologia, um livro de história, um livro de crítica, um livro divino, um livro de amor e sentimento”, disse Khamenei em 2004 a um grupo de responsáveis pela televisão pública.
Se há algo de que Khamenei não tem dúvidas, é da superioridade do islão e da “democracia islâmica”, que mantém a sua atracção depois do fracasso das ideias marxistas, liberais e nacionalistas. É assim que ele explica a sobrevivência da República Islâmica, proclamada com a revolução de 1979, face a décadas de oposição internacional.
Para Khamenei, há pouco no mundo que seja a preto e branco. Por exemplo, recusa que as questões que possam opor o mundo muçulmano ao Ocidente sejam colocadas em termos de religiões. “Temos de perceber”, disse em 2000, que estes problemas “não têm nada que ver com as igrejas ou o cristianismo e os cristãos ou o seu clero não podem ser responsabilizados pelos actos de alguns religiosos idiotas e mercenários”.
O mentor e a ummah
Em paralelo à frequência dos círculos pré-revolucionários e dos estudos da cultura ocidental, Khamenei nunca deixou de ser um seminarista empenhado em promover mudanças sociais em concordância com os ensinamentos da religião. E aí o seu mentor foi o egípcio Qutb, executado às ordens do Presidente Gamal Nasser em 1966.
O islão de Qutb era uma religião que teria chegado até nós para “construir uma sociedade progressiva e completa”. Como escreveu no seu livro The Battle Between Islam and Capitalism: “O islão sem Governo e uma nação muçulmana sem o islão não têm sentido.” Justiça, igualdade e redistribuição da riqueza eram os princípios mais importantes.
O egípcio passou pelos EUA nos anos 1940 e observou que “os americanos voltaram a pensar no islão”. Mas, avisa, “não querem um governo islâmico, já que, quando o islão governa, desenvolve outra ummah [a comunidade islâmica] e ensina as nações que é obrigatório tornarem-se fortes e que rejeitarem o imperialismo é uma necessidade, e que também os comunistas são como os insectos imperialistas, e que ambos são inimigos e agressivos”.
Sabe-se que Khamenei foi contra a ocupação e tomada de reféns da embaixada dos EUA em Teerão, uma acção de um grupo de estudantes radicais que acabaria por iniciar uma crise nunca resolvida entre Teerão e Washington. Quem mandava, o ayatollah Khomeini, defendeu a ocupação e Khamenei, como outros, seguiu-o. O primeiro Guia Supremo nomeou Khamenei para o Conselho da Revolução Islâmica e fê-lo ministro adjunto da Defesa, comandante em exercício dos Guardas da Revolução e seu representante no Conselho Superior de Defesa. Logo a seguir, em 1981, torna-se Presidente.
À frente da segurança e na presidência enfrentou a agressão de Saddam Hussein no que seria uma longa e mortífera guerra (1980-88) e viu os EUA apoiarem o esforço de guerra iraquiano. Discursou várias vezes na ONU, acusando Washington de pôr em causa a segurança e a tranquilidade da região, mas foi desde que se tornou Guia Supremo, em 1989, que as suas posições sobre a política dos EUA se afunilaram. Passou a considerar que os governos ocidentais, liderados pela Casa Branca, querem derrubar a República Islâmica e destruir assim a revolução — como fizeram com a URSS.
As convulsões e o presente
Viu os iranianos de 2009 como uma confirmação do “longo braço da América”, numa altura em que se falava de revoluções coloridas (como a “rosa”, na Geórgia) e as sanções contribuíram para sedimentar essa crença, já que, como recordou várias vezes, começaram antes de qualquer programa nuclear.
Um dia, em 2012, disse: “Não concordo, mas não me oponho” e assim Rohani pôde negociar um acordo com a Administração Obama. Fê-lo por convicção ou sobrevivência — quando a economia se torna a principal preocupação de um povo, são os próprios laços que unem essa sociedade a ameaçar quebrar-se.
Ao contrário de anteriores vagas de protestos, as actuais não têm sido completamente pacíficas. Ao mesmo tempo, mostram o fim da dicotomia entre reformistas e conservadores nas mentes dos iranianos que gritam ora contra Rohani ora contra Khamenei. O regime já sobreviveu a muitas convulsões e é bastante provável que ultrapasse mais esta. Sabendo o ayatollah que por estes dias se enterram crenças fortes e até tabus.
Como escreveu Amir Ahmadi Arian, jornalista e romancista iraniano, a elite religiosa acaba de aprender que o mundo rural não está necessariamente com a revolução. Ao mesmo tempo, ao contrário do que descrevia Hooman Majd em 2008 (The Ayatollah Begs to Differ), quando visitou as casas de muitos iranianos e concluiu que criticavam tudo e todos menos Khamenei, agora alguns gritam a sua “morte”. Dois pormenores de relevo que dificilmente terão recuo ou poderão ser apagados.