O álbum que Anouar Brahem demorou 20 anos a gravar

No ano em que celebra o 60º aniversário, o músico tunisino reuniu à sua volta uma formação de luxo – Dave Holland, Jack DeJohnette e Django Bates – para a gravação de Blue Maqams, lugar de encontro entre as liberdades da música árabe e do jazz.

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Nasceu em Tunis em 1957 e começou por seguir o caminho da música tradicional árabe. A curiosidade na voragem da adolescência havia de colocá-lo diante de um rádio onde começou a descobrir, em doses moderadas, o jazz semanal Marco Borggreve/ECM Records

Passaram-se quase duas décadas desde Thimar. Mas Anouar Brahem era capaz de jurar que entre a gravação desse disco, em que pela primeira vez tocou com o contrabaixista Dave Holland, e o reencontro em estúdio para o registo de Blue Maqams não teriam passado mais de quatro ou cinco anos. A explicação talvez se encontre no facto de durante todo este tempo a ideia de se reunir uma vez mais com um músico que lhe “dava asas” nunca ter deixado de estar presente. Mas de cada vez que compunha um novo reportório e punha em marcha um projecto do zero, por muito que gostasse e quisesse, não ouvia o contrabaixo de Holland a insinuar-se de início. E não era mesmo por falta de se pôr à escuta. Os temas faziam-se anunciar e, por alguma razão, Holland não vinha com eles.

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Passaram-se quase duas décadas desde Thimar. Mas Anouar Brahem era capaz de jurar que entre a gravação desse disco, em que pela primeira vez tocou com o contrabaixista Dave Holland, e o reencontro em estúdio para o registo de Blue Maqams não teriam passado mais de quatro ou cinco anos. A explicação talvez se encontre no facto de durante todo este tempo a ideia de se reunir uma vez mais com um músico que lhe “dava asas” nunca ter deixado de estar presente. Mas de cada vez que compunha um novo reportório e punha em marcha um projecto do zero, por muito que gostasse e quisesse, não ouvia o contrabaixo de Holland a insinuar-se de início. E não era mesmo por falta de se pôr à escuta. Os temas faziam-se anunciar e, por alguma razão, Holland não vinha com eles.

Anouar Brahem não sabe como explicar esta discrepância entre a vontade e a concretização. Até porque nunca esteve particularmente interessado em explicar a sua música ou em procurar justificações num processo criativo em que prefere que corram de forma livre e pouco controlada as suas emoções. As melodias surgem-lhe e ele segue-as, tentando descobrir para onde o levam; não faz por escolher-lhes antecipadamente caminhos e paragens. E em cada ocasião, sempre que percebia que ainda não chegara a hora de voltar a estender as notas do seu oud sobre a tapeçaria do contrabaixo quente e melodioso de Dave Holland, desvalorizava dizendo-se que estava apenas a adiar até ao disco seguinte.

Até que, por graça do destino, acabou por escutar distintamente o contrabaixo de Dave Holland ao começar a juntar esboços das peças que haviam de figurar no disco que o músico tunisino planeou lançar para coincidir com o seu 60º aniversário. É possível que a solenidade de ocasião o tenha também afastado do seu quarteto habitual – partilhado com François Couturier, Björn Meyer e Klaus Gesing – e tenha reforçado a pertinência de encontrar um contexto extraordinário, capaz de estilhaçar a sua normalidade.

Assim que Holland se tornou uma peça evidente e essencial na música que estava a criar, o curso de Blue Maqams foi assaltado por uma memória que ressurgiu na cabeça de Anouar Brahem. Ao pensar em Holland, o tunisino reavivou a imagem de um concerto a que assistira em Zurique, em 1993, durante a digressão europeia da cantora Betty Carter – imortalizada no álbum ao vivo Feed the Fire. A secção rítmica de então era composta por Holland e por Jack DeJohnette, e a interacção entre os dois músicos fascinou de tal forma Brahem que, ainda que nunca tivesse partilhado o palco com o baterista do trio Standards de Keith Jarrett, não precisou pensar duas vezes sobre quem convidar para Blue Maqqam. “O Jack De Johnette é um dos maiores bateristas que conheço e é um grande desafio para um tocador de oud tocar com um baterista porque a dinâmica é extremamente difícil. Mas sabia que ele tinha a capacidade de ser muito subtil.”

A escolha do pianista britânico Django Bates foi menos imediata. A única coisa que Brahem sabia era que gostaria de manter a decisão de avançar para terreno desconhecido, embora o perfil exacto do músico a ocupar esse lugar tardasse em revelar-se. A indecisão terminou, por fim, graças a um blind date preparado por Manfred Eicher, o histórico director da ECM, editora para a qual Brahem grava desde a publicação de Barzakh, em 1990. “Ele não me disse o nome do pianista, pôs simplesmente a gravação de um pianista a tocar e eu gostei muito do estilo dele, altamente lírico, subtil, sensível. Fiquei tocado por aquele excerto e quis logo gravar com ele. Só depois soube como se chamava”, diz.

São vários os momentos de Blue Maqams em que a escolha se revela acertada, mas talvez saia mais engrandecida pela elegância obsessiva do piano em La passante e pelos nove minutos de The recovered road to Al-Sham, tema lânguido quase sempre em duo, num inspirado jogo em que piano e oud desenvolvem caminhos solitários e paralelos, como se ignorassem a presença do outro e, no entanto, coexistem numa mesma melancolia que se estende belissimamente, sem pressa, as notas a pingar como um lamento devastado. É um dos grandes momentos do álbum – com apresentação ao vivo a 16 de Abril, na Fundação Gulbenkian – e, porventura, aquele que mais surpreenderá pela construção provisória desse mundo a dois.

Da Primavera Árabe à normalidade

Anouar Brahem nasceu em Tunis em 1957 e começou por seguir o caminho óbvio da música tradicional árabe. A curiosidade na voragem da adolescência havia depois de colocá-lo diante de um rádio onde começou a descobrir, em doses moderadas, o jazz semanal emitido pela rádio nacional tunisina e a investigar um pouco mais graças às sintonias de estações europeias – que ajudaram a que o seu conhecimento não se ficasse por Louis Armstrong e Sidney Bechet. Foi depois o contacto com a música de Bill Evans, Miles Davis, Keith Jarrett e John McLaughlin a sugerir-lhe que a improvisação presente na música árabe poderia não ser completamente estranha à liberdade reclamada nos reportórios jazzísticos. “Foi essa nova expressão, com um enorme espaço para a experimentação acontecer, que me atraiu muito”, justifica.

A assunção de um caminho menos dependente da tradição musical árabe nunca ditou, no entanto, o seu afastamento dessa primeira natureza que é praticamente indissociável do oud. Anouar partiu para Paris em 1981 em busca de novas experiências musicais, mas nunca abandonou em absoluto a Tunísia – num percurso com alguns pontos de contacto com o do libanês Rabih Abou-Khalil. Blue Maqams, de resto, traz para título a designação árabe para as escalas musicais, não por ser uma coordenada fundamental para entrar na sua música – “não é especialmente explicativo daquilo que está no álbum”, garante – mas antes por significar quase uma incapacidade prática de escapar às suas fontes primeiras de inspiração. De resto, nem sequer reconhece a existência de alguma tensão particular entre a tradição árabe e alguma modernidade jazzística no seu discurso musical. Pelo contrário, responde que “haverá músicos de jazz que tocam de forma tradicional e eu não toco oud de acordo com a tradição – há tradição e modernidade em ambas as linguagens e a mim interessa-me ser livre, ser guiado pela intuição e deixar-me surpreender por cada nova peça”.

A capa do álbum, por outro lado, distancia o músico de uma relação mais consequente e directa com aquilo que observa no estado do mundo. Souvenance, de 2014, foi composto durante a Primavera Árabe e ecoava a turbulência que atingiu a Tunísia com particular pungência. Embora esclareça que não havia uma correspondência fiel entre temas como Ashen sky e January – cuja ponte com a imagem de um homem em fuga, saindo de uma cortina de fumo, nas ruas de Tunis, em Janeiro de 2011, durante a revolta popular desencadeada pelo suicídio de um vendedor de frutas, autoimolado em protesto contra a pobreza e a corrupção no país - Brahem reconhece que todo o álbum tinha sido criado “sob esse estado emocional” de saber o país e a região num estado de sublevação e de contestação de regimes autoritários.

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Bart Babinski/ ECM Records

“Aconteceu o que todos sabemos que aconteceu e senti-me muito tocado por isso, mas quando componho nunca penso em questões concretas”, argumenta. “Penso mesmo que é sempre melhor não tentar traduzi-las para a música; parece-me algo estúpido tentar fazê-lo.” Por isso, diz, a presença da Primavera Árabe em Souvenance era sobretudo uma sombra, uma intromissão da realidade na sua criação mas sem uma forma clara e definida. Até mesmo a escolha da fotografia de capa, afirma, não tem uma leitura obrigatória daqueles acontecimentos, “não é compreensível quem é aquele homem nem o que está a fazer ou a suceder à sua volta”. “Gostei que a imagem tivesse um certo mistério e uma certa poesia, não era uma reportagem fotográfica.”

Em Blue Maqams, reconhece, esse estado emocional já se havia extinguido e regressou a uma relação inteiramente descomprometida com a criação. Há apenas ideias, muitas novas, outras resgatadas ao seu passado – Bahia já tinha sido testada, com bons resultados, ao lado de Dave Holland – com a ideia de garantir um espaço para a improvisação que as novas criações nem sempre comportavam. Mas Anouar Brahem pouco teria com que se preocupar. Blue Maqams não tinha muito por onde errar – documenta um quarteto soberbo, compacto na forma como recolhe e investiga as pistas líricas e sinuosas do tunisino, e disponível para uma música que parece desenvolver-se por moto próprio, sem destino marcado.