A arte voltou a ser subversiva no Brasil
As guerras da cultura, agora com sexo à mistura, são a última forma de confronto político no Brasil. O país pró-Temer e o país anti-Temer confrontam-se nas ruas, nos jornais e nas redes sociais, mas também à porta dos museus.
O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) faz parte da identidade da enorme Avenida Paulista. O edifício da arquitecta Lina Bo Bardi (1914-1992) impressiona: quatro pernas de cimento, gigantes e encarnadas, abraçam um rectângulo de vidro e erguem-no do chão, permitindo que a vida urbana continue a circular sob o MASP. Caetano Veloso parece, também, cantá-lo, na letra da sua Sampa, quando se refere à “dura poesia concreta de tuas esquinas”.
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O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) faz parte da identidade da enorme Avenida Paulista. O edifício da arquitecta Lina Bo Bardi (1914-1992) impressiona: quatro pernas de cimento, gigantes e encarnadas, abraçam um rectângulo de vidro e erguem-no do chão, permitindo que a vida urbana continue a circular sob o MASP. Caetano Veloso parece, também, cantá-lo, na letra da sua Sampa, quando se refere à “dura poesia concreta de tuas esquinas”.
Ao chegar, uma hora antes da inauguração da exposição Histórias da Sexualidade, a esse espaço híbrido sob o edifício, entre o exterior e o interior, deparei com uma pequena mas muito ruidosa multidão. Num primeiro momento, pensei ser uma manifestação contra a exposição que tem “sexualidade” no título, mas afinal era contra a censura nas artes, parte do protesto que se intensificara nos últimos meses em função de vários casos específicos e que agora voltava a estar na ordem do dia com a grande exposição do MASP.
Inaugurar Histórias da Sexualidade neste contexto, em finais de Outubro de 2017, parecia, de facto, uma resposta imediata aos acontecimentos dos últimos meses. Mas não era. Em vez de uma provocação, era apenas uma (feliz) coincidência: o debate público sobre censura e artes tinha cerca de dois meses, pois começara em Setembro com o fecho de uma exposição sobre arte queer brasileira, em Porto Alegre, mas a exposição, no mais prestigiado museu brasileiro ou mesmo sul-americano, estava a ser preparada há mais de dois anos.
Tinha ido ao Brasil para participar numa conferência sobre a Índia, parte de um projecto sobre história e literatura goesas da Universidade de São Paulo (USP), mais uma prova, entre tantas outras, da riqueza académica, intelectual e cultural brasileira. Foi Iris Kantor, historiadora e professora da USP, que me fez o convite para a inauguração da exposição e que me ajudou a compreender a natureza das tensões políticas, sociais e artísticas que se vivem no Brasil.
A polémica com a exposição do MASP, que estará aqui até Fevereiro de 2018, não seria o culminar, mas antes mais um entre vários casos de politização das artes que revelam até que ponto o Brasil contemporâneo está dividido.
Manifestações e museus
Uma rapariga distribuía as t-shirts que quase todos tinham vestidas na manifestação. As brancas diziam “Fazer Arte. Ver Artes. Gostar de Arte. Sem medo. Sem censura”. Mas como sou uma mãe que acredita que museus e exposições devem ser, também, espaços infantis, vesti a cor de laranja que dizia “Lugar de criança também é no museu. Leve seus filhos para visitar uma exposição hoje!”.
A frase era uma interpelação directa ao facto de a entrada na exposição ser proibida a menores de 18 anos. A decisão do museu foi polémica e alguns viram-na como uma concessão à pressão pública que surgira, em força, contra a exposição de Porto Alegre, vista como uma ameaça à “família brasileira”. Mas como depois me contou uma das curadoras, Lilia Moritz Schwartz, foi uma forma de possibilitar a abertura, legal, da exposição, na esperança de que o próprio público — sobretudo mães e pais — pressionasse o museu para que a abrisse a crianças acompanhadas pelos pais. Foi o que acabou por acontecer duas semanas depois da inauguração.
Palavras de ordem liam-se nos cartazes e ouviam-se nas réplicas enunciadas em voz alta, ao ritmo de batuques e do trânsito de fim de tarde na Avenida Paulista. No meio da multidão, dei por mim ao lado do artista chinês Ai Weiwei, sozinho e silencioso. A sua presença enquanto símbolo mundial da arte contra a censura era suficiente. Afinal, vários curadores, funcionários de museus e artistas brasileiros tinham sofrido ataques verbais, escritos e mesmo físicos nos últimos meses, mas nenhum tinha sido preso como fora Ai Weiwei na sua China natal, por misturar prática artística e denúncia política. A censura e a repressão estão presentes tanto em regimes políticos de direita como de esquerda, tanto no passado como no presente.
Ai Weiwei tinha ido ao Festival de Cinema de São Paulo apresentar o seu documentário Human Flow, sobre a crise global dos refugiados, mas acabara na manifestação a dar o seu apoio ao movimento em prol da liberdade artística no Brasil. Fotografei-o, como dezenas de outras pessoas, a olhar para o cartaz que lhe tinham colocado nas mãos e que com certeza o artista chinês não saberia ler, um desenho de uma mulher nua e grávida entre duas frases: “A história da sexualidade é a história da humanidade. Conheça a sua história” e “Vá ao MASP”. Noutro placard, exibido por um manifestante próximo, lia-se: “Amor à arte, amor ao próximo.” As vozes oscilavam entre “o povo sem medo, sem medo de censura” e o mais batido “Fora Temer”, as duas palavras de ordem contra o Governo brasileiro, que demonstravam bem que este é também um conflito político.
Duas raparigas no passeio faziam uma performance à volta de um texto que se tornou, entretanto, um manifesto: uma gritava, com um megafone, as palavras que também se liam no poster que segurava enquanto a outra respondia “sim!” a cada grito: “Arte”, “sim!”; “liberdade”, “sim!”; “democracia”, “sim!”; “performance”, “sim!”; “cinema”, “sim!”; “música”, “sim!”; “pintura”, “sim!”; “teatro”, “sim!”; “gravura”, “sim!”; “política”, “sim!”; “debate”, “sim!”; “sexo”, “sim!”; “rua”, “sim!”; “vermelho”, “sim!”; “fala”, “sim!”; “escola”, “sim!”; “opinião”, “sim!”; “dança”, “sim!”; “vídeo”, “sim!”; “preto”, “sim!”; “poesia”, “sim!”; “pixo [graffiti]”, “sim!”; “escultura”, “sim!”; “viver”, “sim!”.
Quando finalmente se abriram as portas do museu, fez-se uma enorme fila com muitas das pessoas que, ainda de t-shirt, tinham estado na manifestação. Parte do público mimetizava a transgressão de um dos temas da exposição, inscrevendo a ambiguidade sexual no próprio corpo, como os homens que surgiram maquilhados e de vestido. Um dos seguranças não deixava que o uniforme lhe tolhesse a sua identidade trans. A juventude do público da inauguração era também evidente — afinal é o próprio MASP que está a procurar envolver entre os seus “amigos” e “patrocinadores” as gerações mais novas, e mais mulheres.
Subverter a história da arte
Nove temas estruturam as mais de 250 obras segundo critérios que procuram subverter três paradigmas definidores da história da arte mais tradicional. Em primeiro lugar, a cronologia. Obras realizadas no século XVIII estão ao lado de outras feitas há poucos anos — um São Sebastião de Perugino (c. 1500), o santo que tal como o David de Miguel Ângelo foi apropriado como ícone gay, colocado na parede junto a uma fotografia de Robert Mapplethorpe, o fotógrafo nova-iorquino que nas décadas de 1970 e 1980 veio dar visibilidade ao homoerotismo, à cultura gay e a vários modos de transgressão sexual.
Em segundo lugar, a subversão das hierarquias da arte, com a pintura misturada com a fotografia, o vídeo ou a gravura, mas, sobretudo, com a combinação do trabalho de profissionais, legitimados e valorizados comercialmente pelo campo artístico, com o de artistas “populares” ou naïf, como o que protagoniza uma das capas do catálogo, o pintor brasileiro autodidacta José António da Silva (a outra capa disponível é a de Nicolas Poussin, numa obra do século XVII que pertence ao acervo do museu).
A terceira forma mais evidente de a exposição questionar paradigmas artísticos é feita em relação ao género dos artistas escolhidos, procurando equilibrar o número de homens e mulheres artistas, mas também escolhendo obras em que esteja latente o desejo sexual feminino, como acontece no vídeo da australiana Tracey Moffatt, que trabalha sobre o momento — erótico — em que homens surfistas vestem e despem o fato antes e depois de entrarem no mar.
Tanto a observação e representação do desejo como a do corpo nu foram, sobretudo, uma prerrogativa do olhar masculino: quer o desejo de homens sobre mulheres, intrínseco ao cânone, de Ticiano a Édouard Manet ou a Pablo Picasso; quer o desejo de homens sobre homens, como a exposição também revela através de múltiplas formas. Dos belos corpos masculinos a passear no calçadão do Rio de Janeiro, apanhados desprevenidos pela lente fotográfica e homossexual de Alair Gomes (e também voyeur, como a câmara de filmar de Moffatt), às muitas “banhistas” dos séculos XIX e XX, mulheres nuas apreendidas pelo olhar e pelo pincel de Edgar Degas ou Pierre Bonnard. Afinal, como me disse Lilia Schwarcz, evocando uma das nove secções da mostra — Voyeurismos —, somos todos voyeurs: o artista, o curador e o público.
As mulheres nuas do MASP
A pressão pública dos últimos meses levou o MASP a procurar aconselhamento jurídico que o protegesse de potenciais ataques. Na exposição Erótica, dedicada ao pintor brasileiro Pedro Correia de Araújo (1881-1955), que foi inaugurada em Agosto e entretanto já terminou, o museu substituiu a interdição de idade pela ocultação de alguns conteúdos. Este artista, que viveu entre o Brasil e a França e fez do nu feminino um dos seus temas centrais, teve alguns dos seus desenhos tapados com um pano. Os visitantes, obrigados a levantar a flanela negra para espreitar o oculto, protagonizavam — numa performance imprevista — o único gesto verdadeiramente erótico da exposição. “Só isto?”, interrogavam-se, depois de verem estes desenhos de mulheres nuas, com o traço imperante do modernismo globalizado na primeira metade do século XX, parecidos com os de tantos e tantos homens-artistas que nos habituámos a ver nos mais tradicionais museus.
Entre o não mostrar e o mostrar, com “avisos” e “barreiras”, na exposição do pintor Correia de Araújo o MASP escolheu a segunda opção. O pano preto a tapar um dos mais persistentes e aceites temas da representação artística — as mulheres nuas pintadas pelo homem-artista, o pintor e a modelo-musa — parecia, ironicamente, uma intervenção, feminista e subversiva, das Guerrilla Girls, protagonistas da terceira exposição que vi no MASP.
Integrar uma exposição sobre as Guerrilla Girls na sua programação foi mais uma forma de o MASP questionar a força de um dos mais potentes paradigmas da história da arte — a masculinidade dominante na criação artística. Num gesto de autocrítica, o museu pediu às artistas deste colectivo nova-iorquino de activistas anónimas, que, desde a década de 1980, mistura humor, política e intervenção no espaço público como forma de denunciar a misoginia, o sexismo e o racismo do mundo artístico, para olharem para o seu valioso acervo de pintura europeia dos séculos XVI ao XX. E a sua resposta foi um cartaz a reproduzir a pergunta que já fora feita em 1989 a propósito da secção moderna, séculos XIX e XX, do Metropolitan Museum de Nova Iorque: “Do women have to be naked to get into the Met Museum? Less than 5% of the artists in the Modern Art Sections are women, but 85% of the nudes are female.” O mais famoso poster das Guerrilla Girls tem agora uma versão em português, com contas ligeiramente diferentes: “As mulheres precisam de estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Apenas 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos.”
Histórias brasileiras
Lilia Moritz Schwarcz, a curadora do MASP que é também historiadora e antropóloga, está ligada ao MASP desde que o museu começou a trabalhar no projecto sobre as Histórias Brasileiras. Em 2015, o MASP, dirigido pelo carismático Adriano Pedrosa, criou uma nova equipa de curadores e decidiu que não queria ser apenas mais um museu prestigiado, por onde iam passando exposições atrás de exposições, desconexas e mais ou menos aleatórias. Pararam, pensaram e programaram as histórias brasileiras que consideraram que era importante contar nos anos seguintes. Cada ano teria um tema que orientaria tudo aquilo que fosse programado — exposições, conferências, filmes, catálogos. Agora, histórias da sexualidade; a seguir, já este ano, histórias afro-atlânticas.
Conhecemo-nos há dois anos, em Londres, mas eu já acompanhava o seu trabalho há muito tempo, desde que publicou uma biografia sobre D. Pedro II, As Barbas do Imperador. À distância, fui lendo os seus livros e sabendo de algumas das exposições em que esteve envolvida, como Histórias Mestiças. O facto de conjugar a escrita e a publicação com a curadoria de exposições e edição de catálogos é uma das características da sua carreira e algo que admiro, por considerar que alguns dos trabalhos mais críticos e pertinentes — e com maior impacto — sobre colonialismo, escravatura, feminismo ou sexualidade têm sido feitos através de exposições temporárias que conjugam investigação profunda com reflexão crítica, sem descurar a relevância de serem inteligíveis por um público alargado, muito para lá dos ínfimos leitores de livros académicos.
Procurei-a em São Paulo para falarmos sobre o tema do seu último livro, uma biografia do intelectual brasileiro Lima Barreto, que já denunciava, nas primeiras décadas do século XX, a invisibilidade dos negros no Brasil (Lima Barreto: Triste Visionário, São Paulo, Companhia das Letras, 2017), uma obra que saiu em Julho e que já vendeu mais de 12 mil exemplares. Mas a nossa conversa acabou por se centrar em tudo o que acontecera naquela semana no MASP e em tudo o que acontecera no Brasil entre o início de 2015 — data em que a exposição começara a ser pensada e preparada — e Outubro de 2017 — data da sua inauguração num contexto em que as artes adquiriram um poder subversivo inesperado.
Lilia Schwarcz explicou como o projecto Histórias Brasileiras “tem um lado antropológico e histórico muito forte”, sendo que uma das “histórias” da icónica avenida é ser o cenário do desfile LGBTQ mais antigo do Brasil. A exposição, considera, é toda ela “arrojada”, mas algumas obras são mais susceptíveis de polémica do que outras.
Nove histórias da sexualidade
No primeiro dos nove núcleos da exposição, Corpos Nus, confrontamo-nos com as variações sobre um tema clássico que continua presente na arte contemporânea. Há uma multiplicidade de corpos, feitos em diferentes momentos históricos e em geografias distintas. Corpos indígenas, por exemplo: desde a índia Moema, uma personagem do indigenismo romântico brasileiro pintada por Victor Meirelles (1866) que terá morrido na praia na sequência do seu amor por um colono português, à índia modernista da pintora brasileira Anita Malfatti (1917), passando pelo índio yanomami da fotógrafa Claudia Andujar (1974).
Nos Totemismos expõem-se objectos sem autoria nem data que partilham o espaço com o trabalho de artistas contemporâneos. Vêem-se, por exemplo, esculturas — fragmentos do corpo — africanas, ameríndias, pré-colombianas e ex-votos brasileiros em forma de órgãos sexuais ao lado da conhecida fotografia a preto e branco que Robert Mapplethorpe fez de Louise Bourgeois, na altura com 78 anos, em que a artista, com um sorriso pícaro, exibe debaixo do braço uma das suas peças — uma enorme escultura de um pénis. Noutra secção da mostra, Bourgeois surge como autora e não como representada. As suas belíssimas aguarelas avermelhadas, pintadas pouco antes da sua morte, em 2010, aparecem no tema Jogos Sexuais, ao lado das gravuras eróticas japonesas do início de Oitocentos.
Numa parede próxima, está a obra de maiores dimensões da exposição — um Nicolas Poussin pertencente ao acervo do museu, de 1634-38. Himeneu Travestido Assistindo a Uma Dança em Honra de Príapo é o “primeiro travesti”, como disse Schwarcz, pois, para se aproximar da sua amada, veste-se de mulher para entrar numa festividade em honra do deus da fertilidade em que apenas elas podiam participar. Quando o MASP fez o restauro da obra em 2014, descobriu como o falo desenhado na estátua de Príapo tinha sido coberto de tinta. Censuras de outros tempos que agora voltam a emergir. Em Religiosidades encontramos Gaye com Folhas Gu (2015), de Ayrson Heráclito, fotografia onde o torso nu representa a divindade Ossain do Candomblé, senhor das folhas e das florestas, que, com elas, realiza curas e milagres (foto da capa deste suplemento).
Linguagens, Performatividades de Género, Mercados Sexuais e Políticas do Corpo e Activismos (que o catálogo considera “cada vez mais urgentes”) são os outros núcleos de uma exposição exigente que requer tempo e concentração por parte do público, tanto para ver as obras como para ler os textos que, numa tradição expositiva que privilegia a história sobre a estética, acompanham cada uma delas.
A exposição queer de Porto Alegre
Pouco mais de um mês antes de inaugurar Histórias da Sexualidade, outra exposição brasileira, a Queermuseu — Cartografia da Diferença na Arte Brasileira, fora inesperadamente fechada. O Centro Cultural do Banco Santander da cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cedera às pressões para encerrar esta mostra dedicada à diversidade sexual, manifestadas sob a forma de uma petição pública assinada por milhares de pessoas que acusavam as obras expostas de incitamento à pedofilia e à zoofilia (por causa de um quadro de Adriana Varejão que, segundo o curador Gaudêncio Fidélis, é uma reflexão sobre o colonialismo), e ainda de pôr em causa os valores da “família brasileira”. O movimento Escola sem Partido já tinha feito acusações semelhantes a propósito de reformas na educação implementadas pelo anterior Governo PT, primeiro de Lula da Silva e depois de Dilma Rousseff. Apresentando-se como apolítico, insurgira-se, por exemplo, contra a discussão de questões de género nas salas de aula.
O Brasil contemporâneo está também aqui dividido — por um lado, o activismo e pensamento queer ou trans é muito sofisticado e audível, como tive oportunidade de verificar nas paredes que os estudantes enchem de palavras nas faculdades de Literatura e de História da USP; por outro lado, a LGBTQ-fobia, ou seja, a discriminação e mesmo violência contra aqueles que são percebidos como “diferentes”, continua viva no quotidiano e mais legitimada pela actual cultura política.
O movimento de censura às artes, cultura e educação que em Porto Alegre assumira uma força inusitada, levando ao fecho da exposição, teve inúmeras contra-respostas. Petições a pedir a sua reabertura, manifestações e performances de rua em várias cidades brasileiras e, já em Outubro, uma carta aberta que condenava o aumento de “ódio, intolerância e violência contra a liberdade de expressão nas artes e na educação”.
A carta apelava a que as forças democráticas lutassem contra esta crescente limitação dos direitos individuais, civis e sociais no Brasil, que estava a pôr em causa as condições de trabalho, a ameaçar a liberdade de ensino nas escolas, a protecção do meio ambiente ou a união de pessoas do mesmo sexo. Condenava ainda a violência contra as mulheres, LGBTQ, afrodescendentes e povos indígenas numa frase que me fez lembrar uma outra, escrita várias décadas antes, e exposta nas Histórias da Sexualidade do MASP. Na secção sobre Activismos, estava uma parede coberta com O Lampião da Esquina, um jornal sobre cultura homossexual brasileira publicado entre 1978 e 1981 por artistas, intelectuais e activistas, em que num número de 1979, em plena ditadura militar, Abdias Nascimento escreve como “mulheres, negros, índios, homossexuais deviam lutar juntos contra a repressão”. Um apelo à interseccionalidade, ou seja, à pertinência de pensar em conjunto nas desigualdades e discriminações.
O que aconteceu em Porto Alegre teve algumas consequências positivas. Veio unir o riquíssimo mundo artístico e cultural brasileiro, dando-lhe uma certa solidariedade institucional. Como me contou Lilia Schwarcz, o MASP teve um papel fundamental na defesa pública da exposição queer. Não foi assim por acaso que a excelente antologia de textos que o MASP publicou no âmbito das suas Histórias da Sexualidade juntou um depoimento do curador da exposição Queermuseu a artigos clássicos feministas como “Por que não existiram grandes artistas mulheres?” (1971), de Linda Nochlin, que morreu uns dias depois de inaugurada a exposição.
Pouco depois do fecho inesperado da exposição de Porto Alegre, surgia nova polémica no final de Setembro, desta vez no prestigiado Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. A acusação de pedofilia regressou a propósito da performance do coreógrafo brasileiro Wagner Schwartz, que aludia à manipulação de esculturas da série Bichos (1960), de Lygia Clark. Um homem nu — o próprio artista — deitado no chão do museu, enquanto à volta várias pessoas, também pais e filhos, assistiam. Uma menina de quatro anos aproximou-se para lhe tocar num pé e depois numa mão, e a mãe acompanhou-a, sem a impedir de o fazer. O novo “caso” espalhou-se pelas redes sociais através de um vídeo.
Judith Butler ou a “bruxa feminista”
O mais recente episódio desta série de acontecimentos deu-se em Novembro e teve a académica norte-americana Judith Butler como protagonista. A filósofa e antropóloga que se tornou conhecida pela sua teoria sobre performatividades de género — que aliás deu nome a um dos núcleos da exposição Histórias da Sexualidade — foi a São Paulo enquanto organizadora de uma conferência internacional sobre democracia. Mas para as 370 mil pessoas que assinaram uma petição online contra a sua presença no Brasil, para as dezenas que se juntaram à porta de um centro cultural paulista numa manifestação de protesto e para as outras tantas que foram para o aeroporto internacional de São Paulo insultá-la no seu regresso aos Estados Unidos, Butler era uma das criadoras da “ideologia de género”, uma feminista defensora dos direitos LGBTQ e por isso um símbolo de tudo aquilo que se queria diabolizar.
À porta do SESC Pompeia, onde decorreu a conferência sobre democracia, em que Butler nem sequer era oradora, a filósofa deparou com duas manifestações, uma contra si e outra em sua defesa. Ela própria estava transformada em imagem, numa fotografia ampliada em poster em que fora acrescentado um soutien cor-de-rosa alusivo à sua identidade queer e um chapéu de bruxa. A sua representação foi queimada ao som dos gritos de “bruxa”, enquanto cruzes e bandeiras brasileiras se erguiam como estandartes. Numa altura em que a academia sente, e bem, a necessidade de ter um maior impacto social para lá do mundo restrito das publicações e conferências, um professor britânico com sentido de humor comentou no Twitter o que se passara: “Como é que podemos saber que a nossa investigação está a ter impacto? Quando uma multidão a ostentar bíblias e crucifixos queima a nossa efígie à porta do nosso seminário.”
Butler revelou o seu incómodo mas também o seu sentido de humor. Fazendo referência a um dos seus primeiros e mais conhecidos livros, de 1990, Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity (Problemas de Género, publicado em Portugal em 2017 pela Orfeu Negro), disse que os seus opositores brasileiros estavam, eles próprios, com algum “gender trouble” (confusão ou problema de género): como é que podiam combinar a sua identidade de “bruxa”, feminina, com a identidade de “trans ou gay”, masculina? Já em tom sério, sublinhou a sua tristeza pelas manifestações “antifeministas, antitrans, homofóbicas e nacionalistas” que, recorrendo às redes sociais, “se assemelhavam às formas de neofascismo que vemos emergir em diferentes lugares do mundo”. Lembravam-lhe também como a conferência da qual era organizadora — sobre o estado da democracia — fazia todo o sentido.
Pedofilia como acusação
Uma questão transversal a estes três casos — o Queermuseu, a performance do MAM e Judith Butler — foi a acusação, gravíssima, de incitamento à pedofilia. Uma das pinturas da artista Bia Leite da série Criança Viada (criança gay), mostrada na exposição de Porto Alegre, foi descrita como sendo um incitamento à prostituição infantil. Tanto o curador como a autora não só o negaram taxativamente como explicaram que a obra ia precisamente no sentido oposto — o da denúncia do bullying a que muitas crianças estão sujeitas quando não se enquadram nas características normativas de género. É a diferença vista como uma vulnerabilidade, sujeita ao insulto e à ostracização.
Finalmente, entre os vários insultos a Judith Butler, até o de “pedófila” foi gritado nas partidas do aeroporto paulista. Nas declarações feitas no regresso à Universidade de Califórnia, em Berkeley, onde é professora, Butler reiterou a sua oposição total a qualquer tipo de pedofilia, “tal como faria qualquer académica e activista feminista”.
O que estes casos também vieram revelar é a existência de dois mundos que não falam a mesma linguagem. A distanciá-los, também, as profundas diferenças no respectivo capital social e cultural. Aquilo que para uns são reflexões sobre identidades, a sua diversidade e complexidade — em formato de manifestação artística ou ensaio escrito —, para outros são ameaças a uma “identidade” una e única, projecção imaginária de um Brasil já definido. O que estas tensões também vêm tornar evidente é como os antifeminismos e LGBTQ-fobias, tão visíveis em anteriores períodos históricos, continuam latentes em muitos lugares e emergem com mais força quando o contexto os favorece.
A polarização chega à cultura
Os conflitos em relação às artes são, assim, também conflitos políticos, e a polarização é evidente — do lado que critica a censura juntam-se aqueles que estão descontentes com o actual Governo, do lado que defende a censura encontram-se muitos (mas não todos) daqueles que se identificam com o actual Governo.
Este movimento conservador, que tem vindo a tornar-se cada mais visível através das redes sociais e petições públicas, ou da acção de grupos religiosos evangélicos, de cidadãos integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), como também da intervenção de figuras de destaque na política e magistratura, é igualmente legitimado pelo Governo vigente — aquele que conseguiu afastar Dilma Rousseff através do impeachment, que muitos classificam como um golpe parlamentar e, por isso, um atentado grave à prática da democracia, tal como vêem a liderança de Temer como favorecedora de um Brasil intolerante e repressivo. Num país que viveu uma ditadura militar muito repressora entre 1964 e 1985 e que só consolidou a sua democracia com a Constituição de 1988, para muitos é também o processo democrático que está em causa.
A origem do movimento que tem nas artes e cultura dois dos seus réus surgiu, também, em oposição ao Plano Nacional de Direitos Humanos. Instituído pelo Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso ainda na década de 1990 e assinado por Lula da Silva na sua versão de 2010, o programa visava “garantir a igualdade na diversidade, com respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e laicidade do Estado”, e era também um modo de combater os lastros da longa história de desigualdades sociais, raciais e de género que ainda perduram no Brasil. Mas as suas políticas de valorização dos direitos das mulheres, de combate à discriminação de género e de orientação sexual suscitaram forte oposição.
O antifeminismo e a homofobia não só persistem como se sentem agora legitimados por um Presidente que, ao escolher um governo formado totalmente por homens brancos, mostrou logo — simbolicamente — como as questões de igualdade de género e raciais não eram a sua prioridade.
Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa