A festa de Natal da ignorância
Os últimos dias revelaram o analfabetismo fiscal, traduzido na ignorância do que sejam os impostos, como funcionam e quais os seus fundamentos básicos.
Lamenta-se muito entre nós o analfabetismo financeiro, que conduz os ignorantes a aceitar produtos financeiros de risco, julgando-os seguros ou a endividar-se por não se aperceberem bem do custo do crédito.
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Lamenta-se muito entre nós o analfabetismo financeiro, que conduz os ignorantes a aceitar produtos financeiros de risco, julgando-os seguros ou a endividar-se por não se aperceberem bem do custo do crédito.
Os últimos dias revelaram um outro analfabetismo, o analfabetismo fiscal, traduzido na ignorância do que sejam os impostos, como funcionam e quais os seus fundamentos básicos. No caso, coube ao IVA, um imposto de funcionamento simples, ver os seus princípios torpedeados, maltratados, por comentadores de vários quadrantes, que mostraram desconhecer completamente aqueles princípios básicos, sem porém se coibirem de se pronunciar sobre o imposto e sua aplicação aos partidos políticos. Tudo veio a propósito de uma polémica lei sobre o financiamento dos partidos políticos, que o Presidente da República, no início do ano, decidiu não promulgar.
Começa logo pelo mau uso da terminologia e da confusão que resulta desse mau uso. O que significa “pagar o IVA” e “ser isento de IVA” tem de ser bem compreendido se se quer evitar confusões e asserções erróneas.
Quando vamos ao supermercado fazer compras, não estamos, se quisermos falar com rigor, pagando IVA, estamos apenas pagando preços em que está incluído o IVA. Estamos suportando o imposto que nos foi repercutido pela sociedade detentora do supermercado. Esta, sim, paga IVA, entregando ao Estado a diferença entre o imposto que incluiu no preço de venda aos seus clientes e o imposto que suportou nas compras dos bens e serviços necessários à sua actividade. Eis pois o que significa pagar o IVA.
Estar isento de IVA significa estar exonerado por lei de debitar imposto pelas operações activas, quer dizer, pelas vendas ou prestações de serviços que o operador económico efectue. No sistema do IVA europeu, as isenções estão harmonizadas, constando de uma lista comum (embora ainda existam algumas divergências entre os Estados), mas são, nas operações internas e salvo excepções que não vem ao caso analisar, isenções ditas simples — não conferem aos operadores isentos o direito a deduzir o imposto suportado nas aquisições. Os operadores isentos são assim tratados como consumidores finais — a sua posição perante o IVA é, afinal, a mesma que a que defrontamos quando vamos fazer compras ao supermercado. Suportam o IVA como parte do preço e ponto final.
Só não é assim para quem opera no comércio internacional: não só está isento de IVA nas suas vendas, como conserva o direito de deduzir o imposto que suportou na aquisição dos bens e serviços afectos à sua actividade. É o que se chama geralmente “isenção completa” ou “taxa zero” (zero rate, taux zéro), tornando efectivo o designado princípio da tributação no destino no tratamento fiscal das transacções internacionais. Assim, o exportador de pernil de porco para a Venezuela não faz acrescer IVA às facturas de venda, mas conserva o direito de deduzir o imposto que suportou nas rações dos animais, no transporte para o matadouro, etc. Daí até pode resultar — dependendo das circunstâncias — que o vendedor do pernil de porco acabe por ver devolvido, em dinheiro, a totalidade ou parte do IVA que suportou. Menos mal, já que corre o risco de não lhe serem pagas as facturas...
E então os partidos políticos? Eles são organismos isentos de IVA, de acordo com o Código do IVA e com a directiva comunitária. A isenção implica que às quotas dos seus membros não acresce imposto, como não haverá também imposto se ocasionalmente fizerem vendas ou prestarem serviços destinados a angariar fundos. Implica só isto a isenção. Está excluído, porém, que possam deduzir ou recuperar o imposto que agravou as aquisições de bens ou serviços necessários à sua actividade. Em suma, quem não paga IVA não tem direito à dedução, a não ser que opere no mercado externo.
Aconteceu, porém, que o Estado português, à margem da directiva comunitária e fora da normativa nacional do IVA, em leis especiais, entendeu dever subsidiar algumas entidades, atribuindo-lhes subvenções iguais a parte do IVA que tenham suportado nas suas aquisições. Os beneficiados foram as IPSS, a Igreja Católica e os partidos políticos. Se quisermos ser rigorosos, não se trata de devolver parte do IVA suportado; isso seria violar a disciplina comunitária. Trata-se antes de devolver um montante igual a parte do IVA suportado, ou seja, atribuir um benefício assim calculado. Em vez de lhes pagar a renda de casa, ou a energia eléctrica consumida, entendeu-se aferir o montante do subsídio através do IVA suportado por essas instituições em alguns tipos de despesas. Como é evidente, seguindo a disciplina do IVA comunitário, a restituição ou devolução seria... zero, porque tanto a Igreja, como as IPSS, como os partidos políticos estão isentos de IVA.
O que trouxe então a nova e tão polémica lei, em matéria de “devolução” do IVA? Apenas isto: enquanto a lei anterior limitava a devolução do montante de imposto suportado a certas despesas, como aliás também é o caso para as IPSS e para a Igreja Católica, a nova lei estende-a ao IVA “suportado na totalidade de aquisições de bens e serviços”.
Na totalidade das aquisições... Ou seja, a ser aprovada a lei, se um partido decidisse renovar o seu sistema informático, adquirir novo mobiliário para o gabinete do seu secretário-geral, reparar o telhado da sua sede, teria direito a ver restituído pelo Estado o montante do IVA constante das facturas que documentam essas despesas. What a wonderful world!
É uma coisa que uma universidade, um hospital público não podem conseguir, porque, legalmente, estão isentos de IVA e não dispõem de nenhum regime especial que lhes atribua subvenções do mesmo tipo.
A lei foi muito mal recebida pelo público em geral e defendida, com algum constrangimento, num comunicado subscrito por três dos partidos que aprovaram a lei. Um deles, o PCP, afirmou depois que a lei é antidemocrática e inconstitucional, o que não pode deixar de causar grande perplexidade.
Tanto quando me apercebi, duas pessoas salientaram-se na defesa, com afinco, da lei — a secretária-geral do Partido Socialista e o ex-leader do Bloco de Esquerda, o Professor Doutor Francisco Louçã.
A senhora secretária-geral equivocou-se ao afirmar que, da nova lei, não iria resultar qualquer aumento do subsídio do Estado aos partidos políticos. Como assim, senhora secretária-geral? Se, até agora, os partidos só tinham direito a ver devolvido uma parte do IVA suportado, correspondente a um conjunto limitado de despesas e, se a lei fosse aprovada, passassem a ter direito ao IVA suportado na totalidade de aquisições de bens e serviços, como poderia não resultar aumento da subsidiação? É bem claro que haveria aumento da despesa do Estado com o financiamento dos partidos, que em última análise seria pago pelos contribuintes.
O professor Francisco Louçã, num blogue que partilha com outros dois economistas, no jornal PÚBLICO, escreveu um artigo intitulado “A festa de Natal do populismo” (PÚBLICO, 30 de Dezembro de 2017, p. 45). Aí defende a nova lei de financiamento, começando logo por não se admirar que houvesse uma “consoada a malhar nos partidos e nada melhor que um concurso de porrada” (sic).
Para ele, as medidas são todas boas. Apenas lhe merece comentário desfavorável o comunicado conjunto do PS, PSD e PCP, o qual, segundo ele, “toda a gente percebe que é uma aflição tão excepcional que mete dó”. Por lapso, certamente, não menciona que o seu partido, o Bloco de Esquerda, que não assinou o comunicado, mas que aprovou a lei, considerou depois que a lei “não espelha a posição de fundo do Bloco de Esquerda sobre esta matéria” e que “não deveria existir devolução do IVA aos partidos políticos”.
O articulista analisa várias medidas constantes da lei, concluindo sempre os parágrafos a cada uma delas dedicados com expressões como “Correcto”, “Tudo correcto, não acha?”, “Pois é mesmo correcto”.
Dedica um parágrafo à única medida sobre que me posso pronunciar, porque sei alguma coisa do assunto — a tal “devolução” da totalidade do IVA aos partidos políticos. Aí tenho de o contrariar. Não acho nada correcto o que aí escreve em defesa da medida. Sobretudo não acho nada correcta, antes completamente equivocada, a justificação ou fundamentação que o professor de Economia apresenta para a devolução da totalidade do IVA. Pergunta o ilustre professor: “Se uma empresa, para fins privados, recebe a devolução, por que é que um partido, para fins públicos e escrutinados ao cêntimo, não pode receber essa devolução?”
Senhor professor, a resposta a essa sua pergunta é bem simples, basta conhecer os rudimentos do sistema do IVA. A tal empresa, quer seja pública, quer seja privada, tem direito ao que chama devolução — mas deveria antes designar por dedução do IVA suportado — pela razão simples de que debita IVA nas facturas de venda dos bens ou serviços, enquanto os partidos políticos estão isentos do imposto e não têm, portanto, direito à dedução. O direito à dedução do imposto suportado a montante (right of deduction, droit à déduction, diritto a detrazione, derecho a deducir, Recht auf Vorsteuerabzug...) constitui um elemento essencial do sistema comum europeu do IVA, que assegura a neutralidade do imposto, mas não é atribuído aos operadores isentos, a menos que efectuem transacções no mercado externo.
Ao formular aquela pergunta, dir-se-ia que o professor Louçã acha que a tal empresa privada que tem direito ao que ele chama devolução está a receber um bónus ou um benefício fiscal. Não é nada disso: é apenas a técnica básica do IVA. Se não houvesse direito à dedução, o imposto tornava-se cumulativo e impostos dessa natureza já existiram, mas há muito que foram abolidos e substituídos pelo IVA que vigora hoje em mais de 150 Estados, com a configuração que tem na UE ou próxima. Se ao articulista causa escândalo que a tal empresa privada tenha direito à “devolução” (para usar a sua terminologia) mas que seja negado direito equivalente aos partidos políticos, então ele deve revoltar-se quando tomar consciência que não têm direito a qualquer devolução as universidades e os hospitais públicos. Quando a sua universidade compra equipamento informático para a investigação ou ensino, ou quando um hospital público renova os equipamentos da unidade de cuidados intensivos, suportam IVA e não lhes assiste direito a qualquer devolução. Porquê? Pela razão simples de que nas propinas dos alunos que frequentam a universidade não incide IVA, segundo as regras europeias e nacionais e, de acordo com as mesmas regras, as taxas moderadores dos hospitais também estão isentas do imposto. Acha bem que os partidos políticos recebam devolução de IVA quando remodelam o gabinete do secretário-geral, quando os hospitais públicos, segundo a lei geral, não têm direito equivalente?
Correcto? Agora sim está correcto. Aquele infeliz parágrafo não faz jus ao título do artigo: “A festa de Natal do populismo”. É mais a festa da ignorância, em matéria de imposto sobre o valor acrescentado.
Tal como o professor Louçã, também eu abomino o populismo e não condescendo com os que o praticam. Já sou bem mais condescendente com a ignorância. Todavia, quando a ignorância aparece disfarçada de sabedoria... tendo a ser muito menos condescendente.
Wittgenstein, no seu Tratado Lógico-Filosófico, escreveu: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen.”
Correcto: é mesmo assim, quando desconhecemos um assunto, é melhor ficar calados.