O pai, a filha e a namorada dele
O Amante de um Dia é uma história que alia a maturidade do pai e a imaturidade das miúdas, e que se desenha a partir dessa oposição. É um filme magnífico.
Antes que perguntem, não, não há nada de novo no cinema de Philippe Garrel, e os seus filmes são duma obstinação cada vez mais concentrada, quase miniatural. Mesmo as suas obsessões mais espectaculares (o Maio de 68, os duplos de Nico, o cinema mudo), que resistiram muito tempo depois de ele ter abandonado o radicalismo artístico (ou “anti-artístico”) dos seus filmes dos anos 70, parecem ter sido erradicadas desta última série, aceitando que O Amante de um Dia compõe uma trilogia, oficiosa pelo menos, com os precedentes Ciúme e À Sombra das Mulheres. Os fantasmas e os suicidas (mas não o “fantasma do suicídio”, novamente presente em pelo menos uma cena de O Amante de um Dia) parecem ter sido deixados em descanso, pelo menos por agora, desde A Fronteira da Alvorada, que também foi o último filme de Garrel com um protagonista onde se podia ver, sem demasiadas máscaras, uma hipótese de duplo do próprio cineasta (que, como é sabido, tem duplos espalhados por parte muito substancial dos seus filmes). Que sobra, então? Um olhar sobre circunstâncias amorosas, sobre a intimidade, sobre a força confusa dos sentimentos, e uma espécie de “atrito”, que pode ser só o tempo a passar, e que tem uma expressão magnífica na usura dos cenários: como em À Sombra das Mulheres também aqui há rachas e manchas de humidade nas paredes, escadas e soalhos que rangem, uma “arquitectura da pobreza” que parece funcionar sempre como um eco perturbante da evolução das personagens. Tudo filmado naquele preto e branco muito “carvão”, falsamente austero (há um lado “táctil” nestas imagens que é um luxo para o espectador), que é quase uma marca registada (e inconfundível) de Garrel, mesmo que os directores de fotografia vão mudando (Renato Berta pegou nesse preto e branco no ponto em que William Lubtchansky o tinha deixado).
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Antes que perguntem, não, não há nada de novo no cinema de Philippe Garrel, e os seus filmes são duma obstinação cada vez mais concentrada, quase miniatural. Mesmo as suas obsessões mais espectaculares (o Maio de 68, os duplos de Nico, o cinema mudo), que resistiram muito tempo depois de ele ter abandonado o radicalismo artístico (ou “anti-artístico”) dos seus filmes dos anos 70, parecem ter sido erradicadas desta última série, aceitando que O Amante de um Dia compõe uma trilogia, oficiosa pelo menos, com os precedentes Ciúme e À Sombra das Mulheres. Os fantasmas e os suicidas (mas não o “fantasma do suicídio”, novamente presente em pelo menos uma cena de O Amante de um Dia) parecem ter sido deixados em descanso, pelo menos por agora, desde A Fronteira da Alvorada, que também foi o último filme de Garrel com um protagonista onde se podia ver, sem demasiadas máscaras, uma hipótese de duplo do próprio cineasta (que, como é sabido, tem duplos espalhados por parte muito substancial dos seus filmes). Que sobra, então? Um olhar sobre circunstâncias amorosas, sobre a intimidade, sobre a força confusa dos sentimentos, e uma espécie de “atrito”, que pode ser só o tempo a passar, e que tem uma expressão magnífica na usura dos cenários: como em À Sombra das Mulheres também aqui há rachas e manchas de humidade nas paredes, escadas e soalhos que rangem, uma “arquitectura da pobreza” que parece funcionar sempre como um eco perturbante da evolução das personagens. Tudo filmado naquele preto e branco muito “carvão”, falsamente austero (há um lado “táctil” nestas imagens que é um luxo para o espectador), que é quase uma marca registada (e inconfundível) de Garrel, mesmo que os directores de fotografia vão mudando (Renato Berta pegou nesse preto e branco no ponto em que William Lubtchansky o tinha deixado).
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Há, contudo, uma nova representante da família Garrel. Sendo o segundo filme consecutivo sem Louis, O Amante de um Dia introduz Esther Garrel como vector fundamental do trio de protagonistas. É uma miúda, estudante universitária, que se muda para casa do pai (Eric Caravaca) na sequência de uma ruptura com o namorado, e que sem deixar de viver a sua história está no filme também como testemunha do relacionamento do pai com a namorada, uma miúda da idade dela (Louise Chevillotte). As relações entre este trio fazem o essencial da narrativa de O Amante de um Dia, mesmo se todos têm direito a uma certa independência e a desvios que são só deles. É, de certa forma, uma história que alia a maturidade (do pai) e a imaturidade (das miúdas), e que se desenha a partir dessa oposição — sendo que muito possivelmente é de Esther, a personagem que mais “cresce” ao longo do filme, que a câmara de Garrel está mais próxima. Mesmo com estes elementos reduzidos, as peripécias e os acontecimentos são mais que muitos, como uma tragicomédia sentimental a filmar a dificuldade dos entendimentos plenos, quando as pessoas querem coisas diferentes, têm desejos diferentes, falam, até, linguagens diferentes. Apesar de tudo, nada parece tão dramático ou tão abissal como no precedente À Sombra das Mulheres, como se Garrel fosse sensível à juventude das suas protagonistas e deixasse sempre implícito que nessa idade, aconteça o que acontecer, está ainda tudo por ganhar ou por perder, e nada é definitivo. O que resulta num filme um pouco menos grave do que os últimos, duro certamente mas não desesperado. Mas, mais uma vez, a carburar numa completa recusa da “exemplaridade”: as personagens de Garrel fazem e dizem coisas estúpidas, cruéis, impensadas, nenhuma se assume como modelo de virtudes ou reflexo da boa consciência do espectador. E é exactamente por isso que elas nos parecem extraordinariamente vivas.
Já se comparou Garrel a um velho pintor, a trabalhar por subtracção, combinando insistentemente os mesmos elementos, as mesmas cores, os mesmos motivos. É uma imagem justa. O Amante de um Dia é um filme de velho pintor, a dispor de forma ligeiramente diferente cores e motivos já bem conhecidos. Também por isso, ninguém se converterá por este filme à causa de Garrel, tal como nenhum fiel o abandonará. Quanto a nós, O Amante de um Dia é um filme magnífico.